Novos critérios aplicáveis à cláusula de foro de eleição contratual e sua influência na autonomia privada das partes
por Isadora C. Pereira Fortunato Andrade
A cláusula de eleição de foro autoriza as partes, em determinadas situações, a elegerem o foro que entendem como o mais viável para solucionar possíveis litígios advindos da relação contratual. Tal possibilidade já contava com expressa previsão na legislação brasileira, estando disciplinada no art. 111 do CPC/1973 [2] e, posteriormente, no art. 63 do CPC/ 2015, atualmente vigente.
O referido artigo do Código de Processo Civil em vigor previa, até meados do ano de 2024, de forma geral, que as partes poderiam modificar a competência territorial a seu critério, elegendo, desde que constasse em instrumento escrito, o foro em que seriam propostas eventuais ações advindas do contrato celebrado.
Entretanto, em 04 de junho de 2024 foi promulgada a Lei n. 14.879, que fez alterações importantes na redação do art. 63 do CPC, modificando o parágrafo primeiro do referido dispositivo, bem como acrescentando o parágrafo quinto.
Com a nova redação, o parágrafo primeiro do art. 63 passou a ter critérios mais rígidos para a eleição do foro competente para julgar as demandas oriundas de relações contratuais, visto que estabeleceu que o foro deve guardar, necessariamente, relação com o domicílio ou residência das partes ou com o local da obrigação.
Ainda, a nova redação do parágrafo primeiro trouxe uma exceção no que se refere à relação consumerista, vez que, nesse caso, poderá ser mantida no foro mais favorável ao consumidor, ainda que este não guarde relação com o negócio jurídico celebrado, o local da obrigação ou o domicílio das partes.
Ainda, com o acréscimo do parágrafo quinto ao dispositivo, é possível que o juiz, de ofício, decline a competência, em casos que a ação tenha sido ajuizada em juízo que não tenha relação com as partes do contrato, tendo em vista que tal prática é considerada abusiva [3].
Dessa forma, as alterações trouxeram uma pertinência geográfica para a cláusula do foro de eleição dos contratos, bem como impactou tanto a relação contratual em si, como seus efeitos processuais [4].
A Lei n. 14.879/24 vem gerando debates, uma vez que as alterações realizadas no art. 63 do CPC podem ser vistas como contrárias à autonomia privada das partes.
Advinda dessa autonomia privada, tem-se, ainda, a liberdade de contratar, que surgiu com o intuito de que as pessoas celebrem contratos entre si, criando normas que regulamentem essa relação de maneira eficaz.
Tal conceito é de extrema relevância no direito contratual, sendo um de seus principais fundamentos, tendo em vista que é através do exercício da autonomia privada que são criadas as cláusulas que regerão aquele determinado negócio jurídico [5]. Este princípio, ainda, tem fundamento na própria Constituição Federal, em seu artigo 5.º, inciso II, guardando relação com a liberdade do indivíduo e o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana [6].
Levando-se em consideração tais premissas, a conclusão que se chega é a de que o Estado não pode ou, ao menos, não poderia intervir nas escolhas feitas pelos contratantes no exercício legítimo de sua autonomia. Ao contrário, deveria o Estado atuar no sentido de evitar abusos que, de alguma forma, obstem o exercício desse direito [7].
No entanto, as modificações, da maneira como foram feitas, podem ser vistas como uma forma de o Estado limitar a autonomia privada das partes, no que se refere à escolha do foro de eleição no âmbito contratual.
Quanto à justificativa, o autor do Projeto de Lei n. 1.803/2023, o Deputado Federal Rafael Prudente (MDB-DF), menciona que as alterações vieram em uma tentativa de “desafogamento” de alguns foros que são escolhidos de forma aleatória, como o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT), por exemplo, com o intuito de beneficiar uma das partes envolvidas ou, então, para que a demanda tramite em um foro mais eficiente [8].
Esse é, inclusive, um posicionamento que já vinha se formando, antes mesmo da vigência da lei, vez que o próprio TJDFT vinha proferindo decisões que tornavam ineficazes as cláusulas de foro de eleição que não tinham pertinência com a obrigação discutida (v.g. TJDFT, Processo n. 0730366430228070000, 3.ª Turma Cível, Rel.: Des. Roberto Freitas Filho, j. 17.11.2022) [9].
Entretanto, em determinados casos, como, por exemplo, em negócios jurídicos celebrados entre empresas, a escolha do foro é importante, principalmente em razão da busca por juízos especializados, que ofereçam maior eficiência aos processos que envolvem a matéria.
Salienta-se que as empresas são, em regra, bem assessoradas juridicamente, afastando, portanto, sua hipossuficiência. Justamente, por terem um bom direcionamento jurídico é que optavam por foros mais eficientes e especializados [10], como aqueles vinculados ao próprio Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios e ao Tribunal de Justiça de São Paulo, por exemplo, ainda que estes não guardassem relação com o negócio celebrado.
No que se refere aos processos que já estão em andamento, as modificações legislativas acabaram por gerar certa insegurança jurídica, pois, em que pese trate-se de regra processual e, portanto, de aplicação imediata, a jurisprudência ainda não é pacífica acerca da retroatividade da referida lei [11].
Alguns tribunais, como o do Distrito Federal, por exemplo, entendem que a lei deve ser aplicada de forma imediata, inclusive em ações que já estavam em curso (v.g. TJDFT, Agravo de Instrumento n. 0719209-05.2024.8.07.0000, 2.º Turma Cível, Rel.: Des. Fernando Antônio Tavernad Lima, j. 17.07.2024)
A contrario sensu, alguns tribunais vêm entendendo que os efeitos dessa Lei não devem retroagir nos casos em que o contrato e a ação foram iniciados antes da vigência da referida lei, como decidiu recentemente o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (v.g. TJSP, Agravo de Instrumento n. 2227130-10.2024.8.26.0000, 37.ª Câmara de Direito Privado, Rel.: Des. Afonso Celso da Silva, j. 23.09.2024).
Dessa forma, em que pese a Lei n. 14.879/24 tenha surgido com o objetivo de distribuir de forma mais igualitária as demandas judiciais, evitando uma sobrecarga em determinados juízos, bem como tornar mais eficaz o Sistema Judiciário, muitas vezes pode ir de encontro a outras leis e princípios aplicados ao Direito atual, como, por exemplo, a Lei de Liberdade Econômica (Lei n. 13.874/19) e o princípio da autonomia privada.
REFERÊNCIAS
[1] Advogada no setor de Recuperação Estratégica de Crédito Bancário do Escritório Medina e Guimarães; Especialista em Ciências Penais pela Universidade Estadual de Maringá; Especialista em Direito Corporativo pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná; e Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná.
[2] BRASIL, Lei n. 5.869, de 11 de janeiro de 1973. Código de Processo Civil. Brasília, DF. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l5869.htm. Acesso em: 15 out. 2024.
[3] BRASIL, Lei n. 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Brasília, DF. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm. Acesso em: 08 out. 2024.
[4] SANTANA, Davi Ferreira Avelino. Limitação à autonomia da cláusula de eleição de foro. 2024. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/408806/limitacao-a-autonomia-da-clausula-de-eleicao-de-foro. Acesso em: 07 out. 2024.
[5] ZANIN JUNIOR, Hernani. Autonomia privada e liberdade de contratar. 2009. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2009-jan-28/nao-real-distincao-entre-autonomia-vontade-liberdade-contratar/. Acesso em: 08 out. 2024.
[6] BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988 Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 08 out. 2024.
[7] RECKZIEGEL, Janaína; FABRO, Roni Edson. Autonomia da Vontade e Autonomia Privada no Sistema Jurídico Brasileiro. Revista de Direito Brasileira, [S. l.], v. 8, n. 4, p. 161–177, 2015. DOI: 10.26668/IndexLawJournals/2358-1352/2014.v8i4.2888. Disponível em: https://www.indexlaw.org/index.php/rdb/article/view/2888. Acesso em: 9 out. 2024.
[8] BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei n. 1803, de 12 de abril de 2023. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2355765. Acesso em: 10 out. 2024.
[9] MATTOS FILHO. Modificação no Código de Processo Civil limita cláusula de eleição de foro. Disponível em: https://www.mattosfilho.com.br/unico/modificacao-limita-eleicao-foro. Acesso em: 11 out. 2024.
[10] LEFOSSE. Publicada lei que limita a autonomia da vontade das partes na escolha da cláusula de eleição de foro. 2024. Disponível em: https://lefosse.com/noticias/publicada-lei-que-limita-a-autonomia-da-vontade-das-partes-na-escolha-da-clausula-de-eleicao-de-foro-2/. Acesso em: 07 nov. 2024.
[11] MAGALHÃES, Pedro; TOMAZETTE, Marlon. Artigo: A nova disciplina da cláusula de eleição de foro no CPC – Análise da modificação introduzida pela lei 14.879/24. 2024. Disponível em: https://cnbsp.org.br/2024/06/13/artigo-a-nova-disciplina-da-clausula-de-eleicao-de-foro-no-cpc-analise-da-modificacao-introduzida-pela-lei-14-879-24-por-pedro-magalhaes-e-marlon-tomazette/. Acesso em: 07 out. 2024.