Investigação patrimonial e tecnologia: uma nova perspectiva na recuperação de crédito
por Bruno Andrioli
Ao notar o iminente default[1] do grupo Agrogalaxy, que culminaria no pedido de recuperação judicial, em 18 de setembro de 2024, o Banco ABC, antecipou o vencimento das operações e, consequentemente, bloqueou cerca de R$ 36 milhões das contas da empresa que lhe eram vinculadas.[2]
Mencionada movimentação pela instituição credora foi feita com a utilização das chamadas cláusulas covenants. Tratam-se de condições criadas pelas instituições financeiras para reduzir o risco de inadimplemento. Sua função é reduzir o risco sobre o crédito, principalmente em grandes financiamentos.[3]
Diferentemente de uma garantia em sentido estrito, na qual existe um patrimônio que responde pela dívida, tal cláusula pode prever como sanção ao descumprimento a antecipação do vencimento, como no caso narrado, além de multas e até mesmo interferência na gestão da empresa.[4]
Os fundamentos desta cláusula são associados a questões de saúde financeira da empresa que possam inviabilizar a continuidade da operação, além de outros, referentes à transparência da gestão.
Tal previsão contratual se mostrou eficiente no caso em comento, propiciando que a instituição financeira garantisse uma parcela significativa do valor tomado já no início do processo de recuperação judicial.[5]
De todo modo, o contexto apresentado aponta a importância de uma investigação preventiva pelo credor, medida mais conhecida por due diligence. Sua maior vantagem é a identificação de eventuais maquiagens contábeis e fraudes patrimoniais do tomador do crédito[6], o que é fundamental para subsidiar uma tomada de decisão assertiva pelo credor.
Com as informações obtidas por intermédio da due diligence, a depender do momento em que se tomou conhecimento, o credor pode desistir do negócio, se antes da contratação, ou adotar medidas judiciais e/ou extrajudiciais para combater a fraude, se durante a contratação, a exemplo da execução da cláusula covenant, neste caso.
Mais costumeiramente na área de recuperação de crédito, verifica-se a prática da investigação repressiva, ou seja, após o inadimplemento das operações e, até mesmo, anos após o ajuizamento das demandas executivas – em um cenário em que se busca a reversão do cenário de irrecuperabilidade do crédito.
Na investigação repressiva, o objetivo é criar teses de fraudes patrimoniais praticadas pelo devedor, trazendo elementos probatórios que subsidiem tais alegações para alcançar judicialmente o patrimônio desviado.
Para isto, as principais medidas judicias disponíveis são: a) alegação de fraude à execução ou simulação, no próprio feito executivo; b) ajuizamento de ação pauliana, no caso de fraude contra credores; e c) instauração de incidente de desconsideração da personalidade jurídica.
No caso da simulação, o objetivo é demonstrar a existência de um ato simulado, a partir de um negócio jurídico em que o alienante se desfaz formalmente de um patrimônio, mas continua o utilizando como se seu fosse.
Já na fraude à execução e na ação pauliana, a investigação auxilia na comprovação da má-fé pelo terceiro adquirente, analisando-se detalhadamente o grupo econômico e familiar do devedor para expor os vínculos entre compradores e vendedores.
De todas medidas mencionadas, a mais complexa e efetiva é o incidente de desconsideração da personalidade jurídica, porque permite trazer para o polo passivo da execução os terceiros utilizados para blindar patrimônio e conservar o fundo de comércio dos devedores.
Neste ponto, a investigação é de extrema relevância para a comprovação do abuso da personalidade, elemento requerido pelo artigo 50, caput, do Código Civil[7], que pode ser caracterizado pelo desvio de finalidade ou confusão patrimonial.
Os conceitos de desvio e confusão são relativamente abstratos e a investigação contribui sobremaneira na materialização deles, como, por exemplo, a partir da identificação da existência de um sócio oculto apontado por funcionários em uma demanda judicial. Também é possível citar postagens em redes sociais nas quais o devedor ostenta um patrimônio que formalmente não está em seu nome, ou mesmo pela demonstração de incompatibilidade entre seu padrão de vida luxuoso e os reiterados bloqueios em conta negativos.
Esse é o ponto principal, no qual o conhecimento jurídico do advogado, aliado às ferramentas tecnológicas de buscas e a habilidade no cruzamento dos dados localizados, mostram-se fundamentais para a construção de uma tese de desconsideração da personalidade robusta e efetiva. Neste cenário, a tecnologia se apresenta como aliada, pois o acesso simultâneo aos bancos de dados é fundamental para o rastreamento de ativos e a constituição de provas caracterizadoras do abuso da personalidade.
Em síntese, a investigação patrimonial é um instrumento que o credor pode utilizar, desde o momento pré-contratual, até o cenário de iminente irrecuperabilidade do crédito.
Nesta primeira etapa pré-contratual, denominada due diligence, o conhecimento sobre as informações do grupo tomador do crédito pode fundamentar uma recusa na contratação que evitará grandes prejuízos futuros –procedimento que também deve ser feito durante os contratos de longo prazo, a exemplo do caso utilizado como motivação deste texto.
Já, após o inadimplemento e/ou ajuizamento de demanda judicial, a área de recuperação de crédito se utiliza da investigação patrimonial para localizar informações e transformá-las em teses jurídicas eficazes de combate às fraudes patrimoniais.
Por fim, cabe ressaltar o papel fundamental exercido pela tecnologia no contexto apresentado, pois ela é a fonte da matéria prima construtora das teses: os dados. Isto reforça a popular expressão de que “os dados são o novo ouro”. Neste caso, os dados são mais propriamente a ferramenta de recuperação do velho ouro perdido: o crédito.
[1] Falha da empresa no cumprimento das obrigações financeiras.
[2] ROCHA. Graciliano. Como o Banco ABC notou, antes de todo mundo, cheiro de calote na Agrogalaxy. 2024. Disponível em: https://economia.uol.com.br/colunas/graciliano-rocha/2024/10/10/como-o-banco-abc-notou-antes-de-todo-mundo-cheiro-de-calote-na-agrogalaxy.htm?cmpid=copiaecola. Acesso em 11 out. 2024.
[3] REIS. Tiago. O que são covenants e como funcionam essas garantias para grandes empréstimos. 2023. Disponível em: https://www.suno.com.br/artigos/covenants/. Acesso em: 13 out. 2024.
[4] PERIN. Marcelo Sandrini. GLITZ. Frederico E.Z. Covenants em contratos de financiamento de longo prazo: uma perspectiva jurídica. Revista Jurídica Luso-Brasileira, Ano 1, 2015, nº1. Acesso em 19 out. 2024.
[5]Frise-se que, nesse contexto, ainda cabe análise do juízo competente sobre a legalidade da medida adotada.
[6] PROTIVITI. Para evitar riscos de inadimplência due diligence patrimonial. 2019. Disponível em: https://www.protiviti.com.br/prevencao-de-perdas/para-evitar-riscos-de-inadimplencia-due-diligence-patrimonial/. Acesso em 11 out. 2024.
[7] BRASIL. Lei n. 10.406.10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Brasília, DF: Presidência da República, 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm Acesso em: 19 jun. 2024.
Texto originalmente publicado no portal Migalhas: https://www.migalhas.com.br/depeso/419391/investigacao-patrimonial-e-tecnologia-recuperacao-de-credito