Um sobrevoo sobre a governança das sociedades anônimas sob a perspectiva do acionista minoritário
por Mariana Barsaglia Pimentel
A governança corporativa pode ser conceituada como “um sistema formado por princípios, regras, estruturas e processos pelo qual as organizações são dirigidas e monitoradas, com vistas à geração de valor sustentável para a organização, para seus sócios e para a sociedade em geral”[1]. Esse sistema dá diretrizes para “atuação dos agentes de governança e demais indivíduos de uma organização na busca pelo equilíbrio entre os interesses de todas as partes, contribuindo positivamente para a sociedade e para o meio ambiente”[2].
A governança é um tema importante em matéria de Direito Societário, pois envolve o balanceamento entre os direitos e os interesses: (i) dos administradores, (ii) dos acionistas majoritários (principalmente quando presente o poder de controle), e (iii) dos acionistas minoritários. Especialmente para estes últimos, o sistema de governança fornece ferramentas de proteção, assegurando direitos e mecanismos para equalizar as relações de agência, com o estabelecimento de regras para “governantes” e de garantias para “governados”[3]. Estas ferramentas dependerão, quase sempre, do sistema do Direito Societário “vigente”, que se relaciona com a modalidade do controle predominante (concentrado ou diluído).
De acordo com Jorge Lobo, a proteção ao acionista minoritário, enquanto princípio da governança corporativa, remonta há bastante tempo no direito norte-americano, na medida em que é fundado “nos valores institucionais básicos da sociedade americana, como os da família, convivência e comunidade – as companhias financeiras, industriais, comerciais e de prestação de serviços são considerados governos na sociedade civil e não apenas empresas produtoras de bens e riquezas e molas geradoras de lucros, razão pela qual devem respeitar e atender aos interesses de seus acionistas, empregados, fornecedores, financiadores e da comunidade local e jamais usar o poder econômico e financeiro que possuem (o chamado governance structure), para impor práticas nocivas aos interesses sociais e coletivos”[4].
Segundo Marcelo Vieira von Adamek, “a proteção à minoria não é somente um imperativo ético-social; é, para além disso, uma exigência essencial ao próprio funcionamento das sociedades. Sem mecanismos de tutela dos sócios, não iriam as sociedades exercer o relevante papel de captação de recursos para a exploração e consecução de um fim comum: não haveria o fenômeno da colaboração”[5].
No Brasil, esta proteção é conferida, especialmente, pela Lei das Sociedades Anônimas (“LSA”), por documentos emitidos pela Comissão de Valores Mobiliários (“CVM”) (resoluções, instruções, pareceres, decisões) e pelo regulamento do Novo Mercado (B3). Com isso, busca-se proteger os acionistas minoritários contra os possíveis excessos praticados pelos acionistas controladores ou pelos órgãos de administração[6].
Em seu art. 109, a LSA prevê um rol de direitos essenciais (mínimos) dos acionistas individuais, dispondo que nem o estatuto social e nem a assembleia-geral poderão privar o acionista dos direitos de: participar dos lucros sociais; participar do acervo da companhia, em caso de liquidação; fiscalizar, na forma prevista na Lei, a gestão dos negócios sociais; ter prioridade/preferência para a subscrição de ações, partes beneficiárias conversíveis em ações, debêntures conversíveis em ações e bônus de subscrição; e retirar-se da sociedade nos casos previstos na Lei. O direito essencial de fiscalização (e de acesso à informação), em especial, está disciplinado na LSA através de figuras, como: (i) do conselho fiscal; (ii) dos relatórios da administração; (iii) da participação em assembleias; (iv) do direito de exigir os livros da companhia judicialmente.
Na Lei, ainda, são encontrados outros direitos conferidos aos acionistas, destacando-se o direito ao voto. Muito embora o direito ao voto não se trate de um direito essencial, está ele intrinsicamente relacionado com o direito à participação dos acionistas na tomada de decisões (direitos políticos) e há ferramentas legais que robustecem o direito de voto na perspectiva dos minoritários, tais como o voto plural, o voto múltiplo e o voto em separado.
Há, ainda, os denominados direitos formais e substanciais de minoria[7] constantes na LSA, citando-se, por exemplo: (i) a possibilidade de acionistas minoritários convocarem assembleias-gerais em determinadas hipóteses; (ii) a obrigatoriedade de um conselho de administração nas companhias de economia mista, assegurando-se à minoria o direito de eleger um dos conselheiros, se maior número não lhes couber pelo processo de voto múltiplo; (iii) a possibilidade de instalação do conselho fiscal, quando o funcionamento não for permanente, a pedido de acionistas que representem, no mínimo, 0,1 (um décimo) das ações com direito a voto, ou 5% (cinco por cento) das ações sem direito a voto; (iv) o direito de os titulares de ações preferenciais sem direito a voto, ou com voto restrito, eleger, em votação em separado, 1 (um) membro e respectivo suplente para o conselho fiscal (sendo que igual direito tem os acionistas minoritários, desde que representem, em conjunto, 10% ou mais das ações com direito a voto); (v) a faculdade, conferida aos acionistas que representem, no mínimo, 10% (dez por cento) do capital social com direito a voto, esteja ou não previsto no estatuto, de requerer a adoção do processo de voto múltiplo para eleição de conselheiros[8]; (iv) a exigência de maioria qualificada ou de unanimidade para a aprovação de determinadas deliberações (consideradas fundamentais para a companhia)[9].
Faz-se pertinente mencionar, também, alguns instrumentos – legais e contratuais – de proteção aos acionistas minoritários, tais como: (i) o acordo de acionistas previsto no art. 118 da LSA (que pode conferir mais direitos do que aqueles previstos em lei ou no estatuto social, como o direito de tag along); (ii) os comitês de auditoria; (iii) a garantia de contratação a valores de mercado (art. 156 da LSA); (iv) a proibição ao abuso de direito de voto e ao voto proferido em conflito de interesse – e a consequente responsabilização do agente que praticou o ato ilícito; (v) a proibição de prática de atos com abuso de poder pelo acionista controlador – e a consequente responsabilização do controlador; (vi) os deveres e responsabilidades dos administradores, especialmente o dever de lealdade.
Por fim, também se inserem dentre os mecanismos legais de proteção aos direitos dos acionistas minoritários, as ações de responsabilidade contra os administradores (art. 159 da LSA) e contra o controlador (art. 246 da LSA). Tratam-se de ações sociais ut universi (que não excluem as ações diretas[10]) previstas e reguladas especificamente pela Lei das Sociedades Anônimas.
A primeira delas cabe à companhia, mediante prévia deliberação da assembleia-geral, e tem por escopo responsabilizar o administrador pelos prejuízos causados diretamente ao patrimônio da sociedade (e indiretamente aos acionistas). Há dois pontos de destaque na regulamentação desta ação que se relacionam com a possibilidade de exercício de direitos por acionistas minoritários: (i) a previsão contida no § 3.º, segundo a qual “qualquer acionista poderá promover a ação, se não for proposta no prazo de 3 (três) meses da deliberação da assembleia-geral”; (ii) a previsão contida no § 4.º, segundo a qual “se a assembleia deliberar não promover a ação, poderá ela ser proposta por acionistas que representem 5% (cinco por cento), pelo menos, do capital social”.
A segunda demanda tem por finalidade responsabilizar o controlador (pessoa física ou jurídica) à reparação dos danos causados à companhia por atos praticados com infração aos deveres e responsabilidades previstos nos arts. 116 e 117 da LSA. Esta demanda cabe a acionistas que representem 5% (cinco por cento) ou mais do capital social ou a qualquer acionista, desde que preste caução pelas custas e honorários de advogado devidos no caso de o pedido ser julgado improcedente. Nesta hipótese, em substituição processual, o acionista pleiteia direitos de titularidade da companhia (e recebe um prêmio, caso saia vitorioso).
Ambas as demandas são importantes ferramentas de proteção dos acionistas contra atos ilícitos praticados pelos administradores e controladores.
Assim, de tudo o que se expôs neste breve relato, é possível concluir que o Direito Societário Brasileiro dispõe de diversas regras e mecanismos que servem para a proteção do acionista minoritário no contexto da governança corporativa. Estas ferramentas são fundamentais para garantir gestões justas e transparentes nas companhias – mantendo a confiança dos titulares das ações, dos investidores e do próprio mercado.
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[1] IBGC. Código das Melhores Práticas de Governança Corporativa. 6.ª ed. 2023. p.17.
[2] IBGC. Código das Melhores Práticas de Governança Corporativa. 6.ª ed. 2023. p.17.
[3] “O sistema de governança corporativa apoia principalmente os interesses dos acionistas como classe. No entanto, o direito societário pode — e, em certo grau, deve — também lidar com os conflitos de agência que ameaçam os interesses dos grupos de acionistas minoritários e não acionistas”. (ENRIQUES, Luca; HANSMANN, Henry; KRAAKMAN, Reinier; PARGENDLER, Mariana. A Estrutura de Governança Básica: Acionistas Minoritários e grupos não acionistas. In: KRAAKMAN, Reinier et al. A anatomia do direito societário: uma abordagem comparada e funcional. São Paulo: Editora Singular, 2018. p. 163-214. p. 163).
[4] LOBO, Jorge. Princípios de Governança Corporativa. Revista da EMERJ, v. 10, nº 37, 2007. p. 206.
[5] ADAMEK, Marcelo Vieira von. Abuso de minoria do Direito Societário. São Paulo: Malheiros, 2014. p. 52.
[6] “Os direitos da minoria qualificada são reunidos sob a forma de regras imperativas, que limitam o poder do controlador, e de direitos de bloqueio, quando o legislador, através de normas cogentes, inderrogáveis pela vontade dos acionistas, restringe, em benefício dos minoritários, a atuação dos controladores e administradores da companhia, como, por exemplo, se dá quanto: à forma especial de convocação e instalação das assembléias gerais de acionistas; à exigência peremptória de, nos avisos de convocação das assembléias gerais, constar, de forma clara e pormenorizada, as matérias que serão submetidas à deliberação; à prévia publicação dos documentos da administração; ao quorum qualificado para deliberar sobre determinadas matérias; ao uso do poder de controle; aos deveres de diligência, lealdade e informação dos administradores”. (LOBO, Jorge. Princípios de Governança Corporativa. Revista da EMERJ, v. 10, nº 37, 2007. p. 207).
[7] “Integram o rol de proteção à minoria direitos formais e direitos substanciais de minoria." Direitos formais de minoria (formelle Minderheitsrechte) são os que exigem determinado quórum de votação ou de capital para o seu exercício (propositura de ação social derivada, ação de verificação de livros etc.)." Na prática, de acordo com Herbert Wiedemann, os direitos formais de minoria destinam-se a efetivamente reforçar a posição da maioria, pois, contra a concessão de um direito de difícil exercício, são concedidos ainda mais poderes à maioria, legitimando os seus atos; não são, por isso, proteções efetivas. Em contraste, efetiva e real proteção da minoria se dá através dos direitos substanciais de minoria (sachlicher Minderheitenschutz) — os quais independem de qualquer elemento quantitativo [...]” (ADAMEK, Marcelo Vieira von. Abuso de minoria do Direito Societário. São Paulo: Malheiros, 2014. p. 56)
[8] Sobre a importância de direitos como este, cita-se: “Uma maneira de proteger os acionistas minoritários é atribuir-lhes o direito de eleger um ou mais conselheiros. Mais especificamente, o direito societário pode aprimorar os direitos de eleição dos minoritários reservando assentos no conselho para acionistas minoritários ou sobrevalorizando os votos dos minoritários na eleição dos conselheiros. Ainda que elejam apenas uma fração do conselho, os minoritários ainda podem se beneficiar com o acesso à informação e, em certos casos, com a oportunidade de formar coalizões com conselheiros independentes”. (ENRIQUES, Luca; HANSMANN, Henry; KRAAKMAN, Reinier; PARGENDLER, Mariana. A Estrutura de Governança Básica: Acionistas Minoritários e grupos não acionistas. In: KRAAKMAN, Reinier et al. A anatomia do direito societário: uma abordagem comparada e funcional. São Paulo: Editora Singular, 2018. p. 163-214. p. 164).
[9] “[...] todos os países-alvos fortalecem os direitos de decisão dos acionistas minoritários quanto às decisões societárias fundamentais, impondo exigências de aprovação por maioria absoluta ou maioria qualificada”. ENRIQUES, Luca; HANSMANN, Henry; KRAAKMAN, Reinier; PARGENDLER, Mariana. A Estrutura de Governança Básica: Acionistas Minoritários e grupos não acionistas. In: KRAAKMAN, Reinier et al. A anatomia do direito societário: uma abordagem comparada e funcional. São Paulo: Editora Singular, 2018. p. 163-214. p. 164).
[10] Propostas pelos acionistas de forma individual (defendendo direito próprio).