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Justiça negocial no âmbito penal: análise da reparação do dano como condição do acordo de não persecução penal em crimes contra a ordem tributária

por Juliana Ducatti Scodro

A Lei n. 9.099/1995 trouxe os institutos da transação penal (para infrações de menor potencial ofensivo, sendo assim consideradas as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a dois anos, cumulada ou não com multa), a suspensão condicional do processo (para infrações com pena mínima cominada igual ou inferior a um ano) e a composição civil dos danos em fase preliminar.

Trata-se de clara manifestação da ascensão da chamada justiça consensual ou negociada, que vem passando por um processo de ampliação considerado por muitos como sem volta[1] e que, inclusive, mostra influência do modelo norte-americano marcado pelo plea bargain[2]-  mecanismo pelo qual acusação e defesa podem chegar a um acordo sobre a imposição da pena, sujeito a homologação judicial.

O recente exemplo trazido pela Lei n.13.964/2019, mais conhecida como Pacote Anticrime, é verificado pela inserção do art. 28-A junto ao Código de Processo Penal, que passou a autorizar a celebração do Acordo de Não Persecução Penal (ANPP) como forma de extinção da punibilidade para infrações penais de maior gravidade, quando comparadas às abarcadas pela Lei n. 9.099/95, definidas como aquelas praticadas sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a quatro anos.

Nessa perspectiva, tendo o investigado confessado formal e circunstancialmente a prática da infração, o Ministério Público poderá propor o acordo, desde que necessário e suficiente para a reprovação e prevenção do crime, mediante a imposição das condições ajustadas cumulativa e alternadamente, nos termos dos incisos do mencionado art. 28-A. Dessa forma, o investigado afasta os riscos do resultado do processo ao confessar a prática da infração e se submeter à aplicação imediata de medidas diversas da pena privativa de liberdade.

Diante desse cenário é que se questiona acerca da aplicação desse negócio jurídico aos crimes contra a ordem tributária, como, por exemplo, os elencados nos artigos 1.º a 3.º da Lei n. 8.137/1990, bem como os tipos penais de apropriação indébita previdenciária (art. 168-A do CP), descaminho (art. 334 do CP) e sonegação de contribuição previdenciária (art. 337-A do CP).

A supressão ou redução do tributo, por exemplo, prevista no art. 1.º da Lei n. 8.137/90, tem como pena prevista a reclusão de dois a cinco anos, e multa. De igual maneira, os crimes funcionais contra a ordem tributária, previstos no art. 3.º da mesma lei, são puníveis com reclusão de um a quatro anos, além da multa.

Em uma leitura restritiva do texto inserido no CPP pelo Pacote Anticrime, tem-se que o ANPP seria de fato aplicável aos crimes tributários, eis que não acometidos por violência ou grave ameaça e com penas mínimas inferiores a quatro anos. Portanto, com exceção ao tipo penal trazido no art. 2.º da Lei n. 8.137/1990, cuja pena máxima é de dois anos – incidindo, portanto, a transação penal – está-se diante de tipos penais que se enquadram na previsão do art. 28-A.

É aqui que se traça um paralelo entre o acordo de não persecução penal e a extinção da punibilidade pelo pagamento, prevista no artigo 34 da Lei n. 9.249/1995. O entendimento jurisprudencial mais recente é exemplificado pelo julgamento do Agravo Regimental nos Embargos de Declaração no Embargo de Divergência em Agravo em Recurso Especial n. 1.717.169/SC[3], onde a Terceira Seção do e. STJ, por unanimidade, reconheceu que “o pagamento integral do tributo, a qualquer tempo, extingue a punibilidade quanto aos crimes contra a ordem tributária”.

Segundo Cezar Roberto Bittencourt e Luciana de Oliveira Monteiro[4], a quitação do débito tributário e seus encargos é a principal maneira de se regularizar a situação fiscal. Considerando o interesse do Estado em garantir, como prioridade, a satisfação de sua expectativa de arrecadação, o legislador penal estabeleceu que o pagamento da dívida tributária é uma das formas de extinção da punibilidade nos crimes relacionados à ordem tributária.

Acontece que o pagamento exigido para a extinção da punibilidade abrange, além do tributo devido, seus acessórios, incluindo correção monetária, juros e multa, enquanto que a reparação do dano elencada no inciso I, do art. 28-A, do CPP exige – quando aplicável – apenas a reparação do dano, que se limita ao dano sofrido pelos cofres públicos, de modo a não abarcar o valor cobrado a título de sanção.

Além do mais, considerando a natureza alternativa dos incisos trazidos pelo art. 28-A do CPP, a impossibilidade de pagamento integral do valor devido a título de reparação de dano não pode servir de obstáculo à formalização do acordo de não persecução penal, sendo que o ente já dispõe de meio adequado – a Execução Fiscal – para sua cobrança.

Como bem asseveram Manuela Abreu e Álvaro Augusto Orione Souza[5], ao condicionar a celebração do ANPP ao dito pagamento, teríamos uma distorção dos objetivos do Direito Penal e do Processo Penal, transformando-os em um simples instrumento para a cobrança de dívidas tributárias, em vez de utilizar os meios e recursos já disponíveis para a Fazenda Pública.

Desta forma, seja pela possibilidade de aplicação também dos incisos II a V do art. 28-A do CPP como condições alternativas à exigência do pagamento, igualmente proporcionais à infração cometida, seja pela já existência de previsão de extinção da punibilidade pelo pagamento integral do tributo e seus acessórios, ou, ainda, pela verificação de meio próprio para a execução da dívida fiscal, a reparação do dano não pode ser exigida como condição para a celebração do ANPP.

 

[1] LOPES JR., Aury. Direito processual penal. 16. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019. p. 37.

[2] NOTAS SOBRE A INSTITUIÇÃO DO PLEA BARGAIN NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA. 2023. Disponível em: <https://www.mpmg.mp.br/data/files/22/74/8C/69/F2A9C71030F448C7860849A8/Notas%20sobre%20a%20instituicao%20do%20plea%20bargain%20na%20legislacao%20brasileira.pdf>. Acesso em: 21 out. 2024.

[3] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg nos EDcl nos EAREsp n. 1.717.169/SC, Relator: Ministro Ribeiro Dantas. Terceira Seção, julgado em 12 maio 2021.

[4] BITTENCOURT, Cezar Roberto; MONTEIRO, Luciana de Oliveira. Crimes contra a ordem tributária. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2023, p. 64.

[5] ABREU, Eduardo. Reparação do dano na celebração do ANPP. Consultor Jurídico, 26 fev. 2023. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2023-fev-26/abreue-souza-reparacao-dano-celebracao-anpp/>. Acesso em: 21 out. 2024.


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