Precedentes judiciais: quando vinculam?
A preocupação com a oscilação jurisprudencial e o seu combate por meio da valorização dos pronunciamentos das Cortes superiores vêm de muito antes do código processual civil vigente. Porém, foi nele que essa valorização recebeu seus melhores contornos, com um tratamento mais sistematizado. Daí se falar que atualmente vigora um autêntico “sistema de precedentes”, direcionado a auxiliar na solução de conhecidos desafios, entre os quais, o de atenuar a existência de decisões conflitantes no âmbito dos Tribunais locais, o de resolver com celeridade as demandas de massa e o de viabilizar, de modo geral, uma prestação jurisdicional que atenda melhor aos princípios da isonomia, da legalidade, da segurança jurídica.
Enfocando a indesejada dispersão jurisprudencial, costuma-se advertir que, quando a mesma situação fática é decidida por juízes de forma distinta, acaba sendo transmitida à sociedade a mensagem de que ambas as partes têm (ou podem ter) razão, propulsionando o ajuizamento “lotérico” de lides. Bruno Dantas alerta que, “se todos podem ter razão, até mesmo quem, por estar satisfeito com o tratamento jurídico que sua situação vinha recebendo, não havia batido às portas do Judiciário, terá forte incentivo a fazê-lo” (Direito Fundamental à previsibilidade das decisões judiciais. Revista Justiça e Cidadania, Rio de Janeiro, n.149, jan./2013, p. 29-30). E há quem diga, como Rodolfo Camargo Mancuso, que o fortalecimento do direito pretoriano, quando alcança uniformidade e coerência, gera um efeito preventivo geral (Sistema Brasileiro de Precedentes. 3. ed. rev., ampl. e atual. Salvador: JusPodivm, 2019, p. 686), provocando um desestímulo à judicialização de teses contrárias e economizando a atuação jurisdicional ao anunciar o antecipado fracasso caso levadas às portas do Judiciário.
Por isso, a importância e a utilidade dos precedentes judiciais já é praticamente um dogma. A questão que se coloca é saber quando esses pronunciamentos deverão ser seguidos, pois não basta existirem, precisam ser reproduzidos de modo que alcancem seu objetivo. E a resposta à questão é: depende. A partir do art. 927 do CPC, que trouxe um rol de pronunciamentos e frisou que “Os juízes e tribunais [os] observarão [...]”, passou a haver um embate na doutrina sobre se aqueles precedentes seriam, ou não, vinculantes, isto é, se deveriam ser sempre seguidos.
Detalhando o debate, tem-se que a interpretação do art. 927 do CPC é disputada por diferentes correntes, cujas concepções podem ser assim sintetizadas: a) todos os pronunciamentos deste artigo são vinculantes; b) vinculantes seriam apenas os pronunciamentos que permitem o uso da Reclamação (art. 988 do CPC) em caso de desobediência; c) vinculariam apenas os que têm esse efeito em razão de seu regime jurídico específico (vide controle de concentrado de constitucionalidade, súmulas vinculantes etc.); d) força vinculante só se pode admitir quando atribuída pela Constituição, de modo que, caso se diga que o art. 927 do CPC queira dar força vinculante, ter-se-á um dispositivo inconstitucional; e) em razão do papel constitucional dos Tribunais superiores, todas as suas decisões devem ser vistas como vinculantes, e não só as referidas no art. 927 do CPC.
De todo modo, parece prevalecer a compreensão de que o art. 927 do CPC estabeleceu um rol de precedentes vinculantes. A essa conclusão se chega, por exemplo, pelo art. 121-A do Regimento Interno do STJ, que, referindo-se ao art. 927 do CPC, alude a precedentes qualificados de estrita observância pelos Juízes e Tribunais. Em igual sentido, o enunciado 170 do Fórum Permanente de Processualistas Civis: “As decisões e precedentes previstos nos incisos do caput do art. 927 são vinculantes aos órgãos jurisdicionais a eles submetidos. ”
Além disso, no julgamento do Recurso Especial n. 1.655.722/SC, essa compreensão foi aplicada pelo Superior Tribunal de Justiça em caso em que se discutia sobre a possibilidade de se rescindir decisão que divergiu de sua jurisprudência, desejando o autor da rescisória a desconstituição da coisa julgada ao argumento de que o entendimento exarado por aquele Tribunal deveria ser obedecido. Em vista disso, decidiu o Superior Tribunal de Justiça que “embora todos os acórdãos exarados pelo STJ possuam eficácia persuasiva, funcionando como paradigma de solução para hipóteses semelhantes, nem todos constituem precedente de eficácia vinculante. [...] a coisa julgada só há de ser rescindida, com base no art. 485, V, do CPC/73, acaso a controvérsia seja solucionada pelo STJ em sentido contrário ao do acórdão rescindendo, por meio de precedente com eficácia vinculante (art. 927 do CPC/15), que unifica a interpretação e aplicação da lei”. Portanto, extrai-se deste julgado que, ao menos para o STJ, só são obrigatórios os precedentes inseridos no art. 927 do CPC (no mesmo sentido, decisões proferidas pelo STJ nos seguintes casos: AgInt no AREsp n. 1.491.017/SP, j. em 28.08.2020 e AgInt no AREsp n. 1.907.813, j. em 13.12.2021).
Todavia, esse entendimento, além de demonstrar demasiado apego ao aspecto formal dos precedentes (descuidando-se de que o que pode ter caráter obrigatório ou persuasivo é a ratio decidendi dos precedentes), parece deixar de explorar, em maior extensão, os benefícios que a lógica de valorização dos precedentes judiciais tem a oferecer. É que, por ele, acaba-se sobrevalorizando o viés formal em detrimento do viés material dos precedentes, sendo que este último é o que realmente está na gênese do tradicional sistema de precedentes anglo-saxão.
A estabilidade da jurisprudência não é garantida apenas pelo aspecto formal de um julgado, que se obtém pela mera atribuição ex lege da alcunha de “precedente obrigatório” a determinado tipo de pronunciamento. Aliás, adverte José Miguel Garcia Medina que “o déficit qualitativo da decisão diminuirá ou, até, prejudicará o reconhecimento substancial a tal ‘precedente’, reduzindo sua ‘força’ vinculante, fazendo com que juízes não o respeitem” (in: Curso de direito processual civil moderno, 4 ed. ver., atual. e ampl. São Paulo: RT, 2018, p. 1.171). Logo, é preciso enfatizar, também e indispensavelmente, o aspecto material do precedente, que pode ser entendido como a densidade de fundamentação capaz de orientar os casos subsequentes, produzindo-se uma normativa clara para futuramente regular as situações análogas.
Dessa perspectiva, não é incorreto dizer que há proeminência do aspecto material sobre o aspecto formal dos precedentes, porque aquele existe sem este, mas a recíproca não é verdadeira. Com base nisso e relembrando que o código quer uniformidade jurisprudencial e que o papel constitucional dos tribunais superiores é ditar o sentido normativo das leis e da Constituição, é defensável que a existência de um único precedente de uma Corte superior seja suficiente para constranger juízes e tribunais locais a observarem-no na solução da lide, caso contenha fundamentação idônea (aspecto material), a despeito de ser julgado isolado que não figure entre os denominados “precedentes qualificados” do art. 927 do CPC.
Essa noção de obediência aos precedentes independentemente de obrigatoriedade legalmente imposta se identifica melhor com o tratamento original que tiveram no sistema common law, pois, como relata Rodolfo Camargo Mancuso, no “common law, os precedentes obrigam a todos, à sociedade e aos aplicadores das leis, conquanto estas não disponham sobre a obrigatoriedade, nem determinem sanções para o descumprimento” (ibidem, p. 402). De modo semelhante, Clayton Maranhão: o stare decises formalmente vinculante só exsurge em 1861 em caso julgado pela House of Lords, mas, antes disso, “ainda assim o precedente era seguido” (in: Jurisprudência, precedente e súmula no direito brasileiro. DIDIER JUNIOR, Fredie et al [coord.]. Diálogos de Teoria do Direito e Processo. Salvador: Juspodivm, 2018, p. 114).
Assim, mais proveitoso aos propósitos do art. 926 do CPC seria se tribunais e juízes compreendessem que não apenas os pronunciamentos do art. 927 do CPC os vinculam, mas qualquer precedente em sentido material das Cortes superiores. Afinal, se os resultados obtidos pelo sistema common law foram o que motivou o legislador brasileiro a importar a lógica de valorização dos precedentes, talvez para atingí-los por aqui também se deva imitar o modo como lá o aplicam, cultivando entre nós um dever de obediência que seja mais cultural do que legal.