Os negócios jurídicos processuais à luz do posicionamento do STJ
Quando do julgamento do Recurso Especial n. 1.810.44/SP, a Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça, sob a relatoria do Min. Luis Felipe Salomão, proferiu acórdão – publicado aos 28.04.2021 – que estabelece, por assim dizer, premissas a partir das quais os negócios jurídicos processuais[1] devem ser compreendidos e interpretados, que podem ser extraídas, inclusive, da ementa do julgado[2].
A controvérsia, no caso concreto, orbitava em torno da validade da cláusula prevista em instrumento contratual que, em caso de inadimplemento, autorizava o bloqueio de ativos financeiros da devedora antes da sua citação e independentemente de garantia oferecida pelo credor. A decisão proferida na origem considerou que a pretensão do credor suprimia o poder geral de cautela do julgador, a quem competia o deferimento de tutela provisória de urgência para esta finalidade específica, de modo que, sendo ato privativo do magistrado, o negócio jurídico processual não se mostrava viável. A credora interpôs recurso de agravo de instrumento, o qual foi desprovido pelo TJSP, sendo o acórdão mantido, posteriormente, pelo STJ.
Nesse contexto, a primeira premissa assentada no acórdão está relacionada no fato de que a cláusula geral de negociação inserida no art. 190 do CPC/2015 deriva da liberdade negocial das partes, a qual decorre do princípio constitucional da liberdade individual e da livre iniciativa[3].
A segunda está relacionada ao princípio do autorregramento da vontade das partes no processo[4], que autoriza a flexibilização do procedimento e, ao mesmo tempo, atua no exercício do múnus público da jurisdição[5].
A terceira, por sua vez, trata dos requisitos dos negócios processuais, que são, segundo constou do acórdão (e do que se extrai do texto do art. 190 do CPC): (i) versar a causa sobre direitos que admitam autocomposição[6]; (ii) serem as partes plenamente capazes[7]; (iii) limitar-se aos ônus[8], poderes[9], faculdades[10] e deveres[11] processuais das partes; e (iv) tratar de situação jurídica individualizada e concreta.
A quarta está adstrita à posição ocupada pelo juiz no contexto do negócio jurídico processual. Constou do acórdão que “O negócio jurídico processual não se sujeita a um juízo de conveniência pelo juiz[12], que fará apenas a verificação de sua legalidade, pronunciando-se nos casos de nulidade ou de inserção abusiva em contrato de adesão ou ainda quando alguma parte se encontrar em manifesta situação de vulnerabilidade”.
A despeito da celeuma que se estabeleceu, em determinado momento[13], sobre a participação ou não do juiz dos negócios processuais como sujeito, o posicionamento da Corte Superior parece correto, sobretudo se se considerar que a interpretação gramatical do art. 190, caput, do CPC, segundo o qual “é lícito às partes plenamente capazes” celebrarem negócios processuais, autoriza a conclusão de que somente as partes figuram como sujeitos, e o juiz, também segundo prevê expressamente o parágrafo único do mesmo dispositivo, somente “controlará a validade das convenções” em hipóteses específicas[14].
A quinta premissa está vinculada a um limite imposto à vontade das partes para a celebração de convenções processuais, consistente na impossibilidade de “dispor sobre a situação jurídica do magistrado”, vez que “as funções desempenhadas pelo juiz no processo são inerentes ao exercício da jurisdição e à garantia do devido processo legal, sendo vedado às partes sobre elas dispor”.
Voltando os olhos ao caso concreto, tem-se que o acórdão, amplamente fundamentado, ao estabelecer as referidas premissas, afastou a validade de cláusula contratual que, em última análise, retirou do órgão jurisdicional a discricionariedade para verificar se, na hipótese, os requisitos para a concessão de tutela provisória de urgência (referidos no art. 300 do CPC), consubstanciada no bloqueio de ativos financeiros, se encontravam ou não presentes.
O posicionamento – acertado – externado no acórdão proferido pela 4.ª Turma do STJ, como visto, foi no sentido de que, a despeito do princípio do autorregramento da vontade das partes no processo e da sua liberdade negocial, há limites para além daqueles mencionados no parágrafo único do art. 190, que atraem o controle de validade que deve ser exercido pelo juiz. É o caso da situação jurídica do magistrado e do exercício de suas funções, como constou no decisum.
[1] Os negócios jurídicos processuais podem definidos como fato jurídico voluntário em cujo suporte fático se configura ao sujeito o poder de escolher a categoria jurídica ou estabelecer certas situações jurídicas processuais, observados os limites previstos no próprio ordenamento jurídico (NOGUEIRA, Pedro Henrique. Negócios jurídicos processuais. 2. ed. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 153).
[2] “RECURSO ESPECIAL. PROCESSO CIVIL. LIBERDADE NEGOCIAL CONDICIONADA AOS FUNDAMENTOS CONSTITUCIONAIS. CPC/2015. NEGÓCIO JURÍDICO PROCESSUAL. FLEXIBILIZAÇÃO DO RITO PROCEDIMENTAL. REQUISITOS E LIMITES. IMPOSSIBILIDADE DE DISPOSIÇÃO SOBRE AS FUNÇÕES DESEMPENHADAS PELO JUIZ. 1. A liberdade negocial deriva do princípio constitucional da liberdade individual e da livre iniciativa, fundamento da República, e, como toda garantia constitucional, estará sempre condicionada ao respeito à dignidade humana e sujeita às limitações impostas pelo Estado Democrático de Direito, estruturado para assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais e a Justiça. 2. O CPC/2015 formalizou a adoção da teoria dos negócios jurídicos processuais, conferindo flexibilização procedimental ao processo, com vistas à promoção efetiva do direito material discutido. Apesar de essencialmente constituído pelo autorregramento das vontades particulares, o negócio jurídico processual atua no exercício do múnus público da jurisdição. 3. São requisitos do negócio jurídico processual: a) versar a causa sobre direitos que admitam autocomposição; b) serem partes plenamente capazes; c) limitar-se aos ônus, poderes, faculdades e deveres processuais das partes; d) tratar de situação jurídica individualizada e concreta. 4. O negócio jurídico processual não se sujeita a um juízo de conveniência pelo juiz, que fará apenas a verificação de sua legalidade, pronunciando-se nos casos de nulidade ou de inserção abusiva em contrato de adesão ou ainda quando alguma parte se encontrar em manifesta situação de vulnerabilidade. 5. A modificação do procedimento convencionada entre as partes por meio do negócio jurídico sujeita-se a limites, dentre os quais ressai o requisito negativo de não dispor sobre a situação jurídica do magistrado. As funções desempenhadas pelo juiz no processo são inerentes ao exercício da jurisdição e à garantia do devido processo legal, sendo vedado às partes sobre elas dispor. 6. Recurso especial não provido”. (STJ, REsp 1810444/SP, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 23/02/2021, DJe 28/04/2021)
[3] A respeito: DIDIER JR., Fredie. Princípio do respeito ao autorregramento da vontade no processo civil. In: CABRAL, Antonio do Passo; NOGUEIRA, Pedro Henrique (Org.). Negócios Processuais. Salvador: Juspodivm, 2015. p. 19-25, p. 20.
[4] Assim: MIRANDA, Pontes de. Comentários ao Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1996. t. 3, p. 56.
[5] Sobre o assunto: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim et al. Breves comentários ao Novo Código de Processo Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 352.
[6] Nesse sentido: DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil: introdução ao direito processual civil, parte geral e processo de conhecimento. 18. ed. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 385, p. 392.
[7] A respeito: CABRAL, Antonio do Passo. Convenções processuais. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 223-224.
[8] Sobre a matéria:: MARQUES, José Frederico. Instituições de Direito Processual Civil. Campinas: Millennium Editora Ltda., 1999. v. 2, p. 263-265.
[9] A respeito: DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil: introdução ao direito processual civil, parte geral e processo de conhecimento. 18. ed. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 385.
[10] Assim: MEDINA, José Miguel Garcia. Novo Código de Processo Civil comentado: com remissões e notas comparativas ao CPC/1973. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017, p. 312.
[11] Sobre esse ponto específico: DINAMARCO, Cândido Rangel; LOPES, Bruno Vasconcelos Carrilho. Teoria geral do novo processo civil. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2017, p. 167.
[12] Nesse sentido: THEODORO JUNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil: teoria geral do direito processual civil, processo de conhecimento e procedimento comum. 58. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017. v. 1, p. 486.
[13] Antonio do Passo Cabral, p. ex., dedica parte considerável de sua obra para justificar que o juiz não pode ser parte das convenções processuais porque não possui capacidade negocial. Fundamentando sua posição com base na “Teoria Pura do Direito”, de Hans Kelsen, o autor explica que a capacidade negocial é o poder jurídico conferido pela ordem jurídica aos indivíduos para que, em conformidade com as normas jurídicas e com a sua autonomia e liberdade, produzam normas jurídicas individuais. Assim, esta prerrogativa não é própria da função jurisdicional e apenas as partes, que falam em nome dos seus interesses, possuem capacidade negocial para estipular regras de procedimento ou criar, modificar e extinguir situações jurídicas processuais. (CABRAL, Antonio do Passo. Convenções processuais. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 223). Lorena Miranda Santos Barreiros, por outro lado, reconhece a participação do juiz como sujeito dos acordos processuais. Para a autora, não se nega que o Estado-juiz não possui liberdade tal como as partes, mas, segundo seu entendimento, a diferença de “poder de autorregramento” é mais quantitativa do que qualitativa. Afirma, assim, que como (i) o sistema processual reconhece aos sujeitos processuais, incluindo o juiz, o dever de buscar a solução mais adequada do conflito; (ii) o Estado-juiz é o maior guardião dos escopos públicos do processo; e (iii) o juiz deve encampar modificações processuais unilateralmente, não pode ser negado ao órgão jurisdicional participar de acordo processual com a mesma finalidade. (BARREIROS, Lorena Miranda Santos. Convenções processuais e poder público. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 208).
[14] Neste sentido: (i) THEODORO JUNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil: teoria geral do direito processual civil, processo de conhecimento e procedimento comum. 58. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017. v. 1, p. 486; e (ii) AVELINO, Murilo Teixeira. A posição do magistrado em face dos negócios jurídicos processuais. Revista de Processo, São Paulo, v. 246, p. 219-238, ago. 2015.