Alguns efeitos da Recuperação Judicial na Execução (já ajuizada ou por ajuizar): análise da Lei n. 11.101/2005 à luz das alterações trazidas pela Lei n. 14.112/2020
Quando um devedor tem deferido o processamento de sua recuperação judicial, é muito comum que seus credores enfrentem inúmeras dúvidas a respeito dos efeitos que repercutirão na ação de execução já ajuizada ou por ajuizar, principalmente com as recentes alterações que a Lei n. 11.101/2005 sofre pela Lei n. 14.112/2020. Neste artigo, temos a finalidade de esclarecer alguns desses efeitos, levando em consideração a legislação vigente, a doutrina majoritária e o entendimento jurisprudencial existente sobre a matéria.
Neste contexto, a primeira pontuação que deve ser feita diz respeito à sujeição ou não do crédito do exequente aos efeitos da recuperação judicial. Essa definição é importante pois, a depender de como será classificado o crédito nos editais de relação de credores (arts. 52, § 1.º, inc. II, 7.º, § 2.º e 18, todos da Lei n. 11.101/2005), o credor analisará como poderá conduzir a execução, bem como identificará qual será o impacto da recuperação judicial nos autos executivos.
Via de regra, estão sujeitos à recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos (cf. art. 49, caput, da Lei n. 11.101/2005). Entretanto, com o intuito de não enfraquecer a garantia e aumentar o spread bancário[1], a Lei de Recuperações e Falências apresenta determinadas ressalvas, estabelecendo que certos créditos, mesmo que existentes na data do pedido, tais como aqueles decorrentes de adiantamento de contrato de câmbio para exportação (cf. art. 49, § 4.º, da Lei n. 11.101/2005) e aqueles de credor titular da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis, de arrendador mercantil, de proprietário ou promitente vendedor de imóvel cujos respectivos contratos contenham cláusula de irrevogabilidade ou irretratabilidade, inclusive em incorporações imobiliárias, ou de proprietário em contrato de venda com reserva de domínio (cf. art. 49, § 3.º, da Lei n. 11.101/2005), não devem se sujeitar ao feito recuperacional.
As disposições constantes do art. 49, caput, e §§ 3.º e 4.º, da LRF, determinam, portanto: (i) se o crédito está ou não sujeito aos efeitos da recuperação judicial, e, consequentemente, (ii) se deverá ou não ser pago exclusivamente através do plano e (iii) se a execução deverá ser extinta em relação à recuperanda.
Quando o crédito for sujeito aos efeitos da recuperação judicial, a execução ficará suspensa pelo prazo de 180 dias, período denominado “stay period”, “moratória” ou “de blindagem”, que poderá ser prorrogado uma única vez, nos termos do art. 6.º, § 4.º, da Lei n. 11.101/2005, não obstante a jurisprudência ter flexibilizado a possibilidade de prorrogação até a votação do plano[2]. A informação sobre a necessidade de suspensão da execução é de responsabilidade da recuperanda, e ela não implica em atração das ações executivas ao juízo em que tramita a recuperação judicial. Assim, as execuções permanecerão no juízo de origem para, sendo o caso, prosseguirem após a suspensão[3].
Por outro lado, quando se tratar de crédito não sujeito ao feito recuperacional, a execução tramitará normalmente, com a observação de que os atos de constrição contra o patrimônio da recuperanda, requeridos durante o stay period, deverão ser autorizados pelo juízo da recuperação judicial, também denominado por muitos como “juízo universal”, tendo em vista a necessidade de análise da essencialidade do bem (cf. parte final do art. 49, § 3.º, da Lei n. 11.101/2005). A despeito disso, destaca-se que parte da jurisprudência entende que mesmo com a aprovação do plano, os atos de constrição devem passar pelo crivo do juízo recuperacional, ainda que se trate de créditos não sujeitos[4].
Em contrapartida, a execução prosseguirá normalmente em relação aos sócios avalistas, devedores solidários e coobrigados em geral do crédito emitido pela devedora em recuperação judicial[5]. A manutenção integral dos deveres dos coobrigados e o prosseguimento das ações e execuções ajuizadas contra estes encontram respaldo no art. 49, § 1.º, da LRF, o qual prevê que os credores do devedor “conservam seus direitos e privilégios contra os coobrigados, fiadores e obrigados de regresso”, e que é corroborado pelo texto da Súmula 581 do STJ, segundo a qual “A recuperação judicial do devedor principal não impede prosseguimento das ações e execuções ajuizadas contra terceiros devedores solidários ou coobrigados em geral por garantia cambial real ou fidejussória”, além do entendimento jurisprudencial mais recente[6].
Ainda nesse contexto, ensina Fabio Ulhoa Coelho:
“Continuam, assim, a tramitar: (a) ações de qualquer natureza (cível ou pertinente a relação de trabalho) que demandam quantias ilíquidas; (b) reclamações trabalhistas; (c) execuções fiscais, caso não concedido o parcelamento na forma da lei específica a ser editada nos termos do art. 155-A, §§ 3° e 4º , do Código Tributário Nacional; (d) execuções promovidas por credores absolutamente não sujeitos à recuperação judicial (isto é, pelos bancos titulares de crédito derivado de antecipação aos exportadores ACC) proprietário fiduciário, arrendador mercantil ou o vendedor ou promitente vendedor de imóvel ou de bem com reserva de domínio).”[7]
Seguindo a mesma linha de raciocínio, em se tratando de crédito não sujeito aos efeitos da recuperação judicial, o credor pode ajuizar ação de execução sem quaisquer óbices, com igual ressalva de que os atos de constrição devem passar pelo crivo do juízo recuperacional (durante o prazo do stay period, no entendimento de parte da jurisprudência, e durante o cumprimento do plano, no entendimento de outra parte[8]).
Por fim, a questão, das aqui postas, que mais vem sendo discutida atualmente, diz respeito à possibilidade ou não de o juízo da execução autorizar medidas constritivas com relação à executada recuperanda. Nos termos do § 7.º-A do art. 6.º da Lei n. 11.101/2005, é competente o juízo da recuperação judicial para decidir acerca de atos constritivos, em se tratando de créditos não sujeitos aos efeitos da recuperação judicial, somente quando verificada a ocorrência de dois requisitos cumulativos, a saber: (i) os bens sobre os quais incide a constrição devem ser bens de capital essenciais à manutenção da atividade empresarial; e (ii) o stay period deve, necessariamente, estar vigente.
Não obstante os requisitos dispostos nos artigos sejam cumulativos, boa parte da jurisprudência entende que o simples fato de os bens serem considerados de capital essencial já implica na inadmissibilidade de constrição[9].
Muito embora a Lei de Recuperações e Falências, principalmente com as alterações trazidas pela Lei n. 14.112/2020, tenha disposto de maneira clara quando é competente (ou não) o juízo recuperacional para decidir sobre os atos praticados no bojo de ação de execução, verifica-se que a jurisprudência[10], sempre em nome do Princípio da Preservação da Empresa (cf. art. 47, da Lei n. 11.101/2005), vem flexibilizando a incidência do texto de lei.
Não raro, essa flexibilização implica no aumento de execuções frustradas e de credores que não têm seu crédito devidamente adimplido, reflexamente trazendo, via de consequência, maiores óbices para a obtenção de crédito e taxas mais elevadas, resultando, enfim, em inevitável queda do desenvolvimento econômico.
Com essas breves considerações, conclui-se que, a partir do momento em que o devedor requer recuperação judicial, o credor precisa analisar minuciosamente os próximos passos a serem percorridos na cobrança de seu crédito, verificando se pode dar sequência à execução frente à recuperanda ou somente a seus garantidores, certificando-se se os atos de constrição podem ser praticados – e em relação a quais bens –, bem como tendo o cuidado, quando necessário, de requerer a efetivação dos atos de constrição ao juízo da recuperação judicial. Estando ciente dessas questões e suas eventuais consequências, o credor utilizará da melhor estratégia possível para recuperar seu crédito.
[1] Sobre o assunto: ANDREY, Marcos. Comentários aos art. 48 e 49. In: LUCCA, Newton; SIMÃO FILHO, Adalberto (coord.). Comentários à Nova Lei de Recuperação de Empresas e de Falências. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 236.
[2] TJPR, AI n. 0015405-26.2021.8.16.0000, 18.ª Câmara.Cível, Rel.: Des. Péricles Bellusci de Batista Pereira, j. 25.10.2021.
[3] Em: VIDO, Elisabete. Curso de direito empresarial. 8. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020. p. 421.
[4] TJSP, AI n. 2240535-21.2021.8.26.0000, 14.ª Câmara de Direito Privado, Rel.: Penna Machado, j. 17.11.2021.
[5] TJSC, AI n. 4008043-82.2018.8.24.0000, 3.ª Câmara de Direito Comercial, Rel.: Tulio Pinheiro, j. 04.11.2021.
[6] TJSP, AI n. 2249626-38.2021.8.26.0000, 29.ª Câmara de Direito Privado, Rel.: Mário Daccache, j. 22.11.2021; TJSP, Apelação Cível n. 1104302-93.2019.8.26.0100, 16.ª Câmara de Direito Privado, Rel.: Mauro Conti Machado, j. 22.11.2021; TJSP, AI n. 2249687-93.2021.8.26.0000, 11ª Câmara de Direito Privado, Rel.: Marino Neto, j. 19.11.2021.
[7] COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial, volume 3: direito de empresa: contratos, falência e recuperação de empresas. 18. ed. rev. e atual. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2018. p. 387.
[8] TJSP, AI n. 2229536-09.2021.8.26.0000, 37.ª Câmara de Direito Privado, Rel.: José Wagner de Oliveira Melatto Peixoto, j. 23.11.2021; TJSP, AI n. 2115427-50.2019.8.26.0000, 7.ª Câmara de Direito Privado, Rel.: Miguel Brandi, j. 17.11.2021; TJRS, Apelação Cível n. 50001885420078210016, 24.ª Câmara Cível, Rel.: Jorge Maraschin dos Santos, j. 24.11.2021.
[9] TJSC, AI n. 5020433-62.2021.8.24.0000, 4.ª Câmara de Direito Comercial, Rel.: Sérgio Izidoro Heil, j. 26.10.2021; TJSP; AI n. 2099602-95.2021.8.26.0000; 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Rel.: Sérgio Shimura, j. 19.11.2021.
[10] TJSP, Conflito de Competência Cível n. 2270685-19.2020.8.26.0000; Rel.: Daniela Cilento Morsello; Câmara Especial, j. 31/03/2021; TJRS. AI n. 50944994620218217000, Quinta Câmara Cível, Rel.: Isabel Dias Almeida, j. 29.09.2021.