Herança digital: entre a teoria e a prática
A ""herança digital"" está entre os temas mais debatidos pela civilística nacional na contemporaneidade, em especial após a pandemia de Covid-19, que afetou a sociedade nas mais diversas esferas e desencadeou um aumento da utilização das plataformas e ferramentas online.
O direito, que sofre direta influência das transformações sociais e históricas, apreendeu muitas das questões que guardam relação com a sucessão digital e que, ao fim e ao cabo, trazem em si dois temas que ouvimos falar com frequência nos últimos dois anos: a morte e a internet.
Não obstante a importância da matéria, não há no direito brasileiro previsão legal que verse sobre a transmissibilidade do ""ativo digital"" após a morte de seu titular ou, ainda, sobre ""o tratamento das informações constantes na rede após a morte do usuário""[1].
E a referida transmissão do denominado acervo digital —que é composto por redes sociais, arquivos em nuvem, plataformas de streaming, canais no YouTube, sites, e-mails, etc.[2] — perpassa não só pela mensuração e exploração econômica do conteúdo digital deixado pelo falecido, mas também pelas situações jurídicas existenciais decorrentes da sucessão.
Com efeito, ""a privacidade e a intimidade da pessoa devem ser protegidas mesmo após a sua morte"". ""Pense-se, por exemplo, em mensagens íntimas trocadas entre usuários titular de contas em rede social. Nesse caso, não se está diante de bem que integra a herança que, como tal, é transferida com a morte do de cujus (saisine)[3].""
Recentemente, no âmbito do Juizado Especial Cível da Comarca de Santos (SP), foi concedido ao pai de um jovem falecido o direito de acessar os arquivos salvos na ""nuvem"" do celular pertencente ao de cujus[4]. Nos termos da sentença, proferida nos autos nº 1020052-31.2021.8.26.0562 de Tutela Antecipada Antecedente e que será publicada em 21/1/2022:
""As circunstâncias que envolvem o caso estão devidamente comprovadas [...], restando claro o interesse de seus familiares no acesso aos dados armazenados por ele, notadamente fotos e outros arquivos de valor sentimental, como últimas lembranças que possuem dele. Também se extrai do referido documento que o requerente não deixou filhos, de modo que, na ordem sucessória do artigo 1.829 do Código Civil, seus genitores são seus legítimos herdeiros[5].""
A decisão, apesar de levar em conta os anseios dos familiares em luto, não se debruçou sobre a vontade (não) manifestada do de cujus e sobre os direitos da personalidade do falecido (em especial sobre a sua privacidade e intimidade), que, via de regra, pertencem ao seu titular e não são transmissíveis aos herdeiros. Além disso, deixou-se de considerar que, dentre as fotos e vídeos constantes na nuvem, é possível que se encontrem arquivos enviados por terceiros ao de cujus com a expectativa de que o acesso seria apenas de quem os recebeu[6].
Neste aspecto, a vontade dos usuários acerca do “destino” do acervo digital pode ser manifestada através de testamento ou codicilo, ou, ainda, perante as próprias plataformas digitais. A Apple, por exemplo, disponibiliza o recurso denominado “legado digital”, através do qual permite designar uma ou mais pessoas para serem “herdeiros digitais” com acesso à conta do iCloud (nuvem) em caso de falecimento do titular. Do mesmo modo, o Facebook permite que seus usuários escolham determinada pessoa para o gerenciamento da conta em caso de morte.
Em que pese as ferramentas disponíveis, são raros os casos daqueles que antecipadamente deliberam sobre a transmissibilidade do seu acervo digital após a sua morte.
A matéria aqui debatida não tem resolução ou resposta simples e comporta discussões que perpassam por temas como: proteção de memória da pessoa falecida, exploração econômica do acervo digital, sucessão de criptomoedas, dentre outros. As questões que se colocam perante os operadores do direito são muitas e demandarão um repensar sobre o direito sucessório e sobre o direito digital como um todo.
[1] LEAL, Lívia Teixeira. Internet e morte do usuário: a necessária superação do paradigma da herança digital. Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil. Belo Horizonte, v. 16, p. 181-197, abr./jun. 2018. p. 184.
[2] WASQUES, Vitória Gabriela; GARCIA, Daiene Kelly. Herança Digital: Um desafio para o Direito Sucessório. Revista de Iniciação Científica e Extensão da Faculdade de Direito de Franca. v.5, n.1, dez. 2020. p. 845-866. p. 846.
[3] MEDINA, José Miguel Garcia. Constituição Federal comentada. 7.ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2022. p. 92.
[4] Notícia disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-jan-14/pai-obtem-justica-acesso-aos-arquivos-iphone-filho-morto. Acesso em 15.01.2021.
[5] Trecho da sentença proferida nos autos n. 1020052-31.2021.8.26.0562.
[6] Cf. comentado, também, por Joyceane Menezes em sua página do Instagram: https://www.instagram.com/p/CYuFrSyrncC/?utm_source=ig_web_copy_link. Acesso em 15.01.2021.