Assédio judicial através de demandas opressivas e judicialização predatória
O assédio judicial realizado através de demandas opressivas é problema que, em tempos recentes, vem chamando a atenção da jurisprudência. E, há poucos dias, o tema foi objeto de deliberação do Conselho Nacional de Justiça, que, de forma contundente, manifestou-se contra a judicialização predatória.
O fenômeno pode ocorrer quando uma mesma pessoa litiga contra outra repetidamente e também quando várias ações são movidas por demandantes diferentes, de modo orquestrado, contra uma mesma pessoa. O ajuizamento de ações repetitivas e manifestamente infundadas pode revelar a existência de falsos litígios, em que vários e sucessivos processos judiciais são utilizados com o propósito de assediar alguém processual e judicialmente.
A litigiosidade falsa é estudada há algum tempo no âmbito do direito concorrencial. Nesse caso, usa-se o termo “sham litigation” para se referir ao litígio simulado, manifestado com o uso abusivo do direito de petição (não apenas através de ações judiciais, mas também em manifestações perante outros órgãos públicos), de modo repetitivo (litígio padrão, “pattern litigation”), por um agente, com o propósito de prejudicar seu concorrente.[1]
No contexto brasileiro a figura da sham litigation já foi considerada também em outras áreas, e para tratar do exercício abusivo do direito de ação, entre litigantes individuais.
Em julgado expressivo, de relatoria da eminente Ministra Nancy Andrighi, chamou-se a atenção para a necessidade de se conter o exercício abusivo do direito de ação, “em ações ou incidentes temerários, veiculem pretensões ou defesas frívolas, aptas a tornar o processo um simulacro de processo ao nobre albergue do direito fundamental de acesso à justiça”.[2]
O tema vem sendo estudado também sob a perspectiva constitucional, já que o assédio processual pode ser empregado com o propósito de impedir o exercício de direitos fundamentais, como a liberdade de expressão ou o livre exercício profissional, em que se analisa o uso estratégico de processos judiciais com o propósito de intimidar manifestações públicas (opiniões, críticas e quaisquer manifestações de pensamento), figura conhecida, no direito norte-americano, como “strategic lawsuits against public participation”.[3] Nesse caso, o direito de ação é deturpado e manipulado de modo abusivo, pois é indevidamente exercido para dissimular uma prática de perseguir insistentemente uma pessoa com o propósito de intimidá-la, impedir suas manifestações públicas, levá-la ao esgotamento, subjugá-la, retirá-la do espaço público ou, no limite, até mesmo destruí-la. Trata-se do “efeito resfriador” (“chilling effect”).[4]
O contexto brasileiro é propício a essa prática. País de dimensões continentais em que o exercício do direito de ação é ser exercido sem grandes obstáculos, pode-se facilmente engendrar o ajuizamento de múltiplas demandas contra uma mesma pessoa, em variados locais do território nacional.
Essa prática, manifestamente abusiva, deve ser evitada e repreendida pelo Poder Judiciário. Atento ao problema, o Conselho Nacional de Justiça, em 08.02.2022, aprovou “Recomendação para que os Tribunais adotem cautelas visando a coibir a judicialização predatória com os objetivos de promover o cerceamento de defesa e a limitação da liberdade de expressão”.[5]
Há Projeto de Lei em trâmite na Câmara dos Deputados, que “estabelece regras para reunião de ações judiciais em face de demandas opressivas” (PL 90/2021). Trata-se de iniciativa importante. Entendemos, de todo modo, que a Recomendação do Conselho Nacional de Justiça pode ser observada aplicando-se as regras processuais hoje em vigor, a fim de viabilizar a reunião de ações abusivas para julgamento conjunto, punindo-se seus autores.
O uso de ações judiciais de modo estratégico, como se percebe, é uma variação (ou o uso ampliado) dos litígios falsos. Diante disso, e à luz do que vimos expondo, consideramos conveniente distinguir essas duas hipóteses, ambas merecedoras de atenção.
A primeira, que talvez deva ser mais comum, é verificável quando houver processos judiciais repetitivos entre os mesmos litigantes, hipótese em que a solução para a reprimenda do abuso é facilmente identificável à luz do direito processual.
Pode, no entanto, suceder que as ações judiciais sejam manejadas por diversos indivíduos em diferentes lugares e instâncias, de modo a dificultar a defesa de uma pessoa. Pense-se, por exemplo, em ações ajuizadas perante os Juizados Especiais Cíveis e a Justiça Comum, em comarcas diferentes de vários Estados do Brasil, contra um mesmo jornalista, ou um advogado, ou o autor de um livro.
Vê-se que, embora surgidas em contextos diferentes, as doutrinas sobre “sham litigation” e “strategic lawsuits against public participation” podem se apresentar concomitantemente. Em tais situações, e se manifesta a falsa litigância (isso é, o uso artificial do processo) através do assédio judicial com o propósito de intimidar a pessoa, cumprirá ao Poder Judiciário amoldar institutos concebidos para solucionar dilemas próprios de lides clássicas, ajustando-os de modo a evitar o exercício abusivo do direito de ação e a impedir que o próprio Poder Judiciário seja usado para fins contrários ao direito.
Por exemplo, havendo evidências de que muitas ações estão sendo ajuizadas concomitantemente e por várias pessoas apenas com propósito intimidatório, ainda que sob a coordenação de alguém que não se apresenta formalmente no processo, é de todo conveniente que essas ações sejam reunidas para julgamento conjunto. Trata-se de solução que deve ser observada, ainda que não se verifique, no caso, absoluta identidade entre pedido ou causa de pedir de tais ações. Recorde-se que a possibilidade de reunião de causas para julgamento conjunto, no contexto brasileiro, não se restringe à hipótese em que se configura a conexão stricto sensu. O § 3.º do artigo 55 do CPC dispõe que “serão reunidos para julgamento conjunto os processos que possam gerar risco de prolação de decisões conflitantes ou contraditórias caso decididos separadamente, mesmo sem conexão entre eles.” Essa regra pode ser aplicada, por analogia, aos casos em que se observa o assédio judicial através do ajuizamento de múltiplas demandas que tramitem em Juízos diferentes.
Em casos como os exemplificados, faltará aos demandantes interesse processual porque revelado que eles não pretendem uma autêntica tutela jurisdicional contra o réu, mas esperam obter, com o ajuizamento das ações, tão somente o efeito de silenciar as manifestações públicas do réu (“chilling effect”).[6] Essa prática, que pode ser qualificada como forma de assédio judicial (ou processual) não corresponde a um interesse processual legítimo a ser merecedor de tutela pelo Poder Judiciário.
Uma vez demonstrado que essas ações judiciais são estrategicamente movidas com o propósito de intimidar alguém em razão de atividade profissional, sua opinião ou manifestação pública, tais demandas devem ser prontamente rechaçadas, por falta de interesse processual (artigo 485, caput, VI do CPC), aplicando-se aos litigantes o disposto no artigo 80, III do Código (“Art. 80. Considera-se litigante de má-fé aquele que: [...] III – usar do processo para conseguir objetivo ilegal”).
Em alguns casos, pode-se estar até mesmo diante de feitos controlados ou financiados por sujeitos ocultos (ou não aparentes), mas mesmo estes, ainda que participem indiretamente do processo (isso é, não estejam nele presentes formalmente), também têm deveres de atuação em conformidade com a boa-fé (artigo 5.º do CPC) e de comportar-se com probidade (artigo 77 do CPC), deveres estes que dizem respeito a todos aqueles que de qualquer forma participem do processo.[7]
Vê-se, assim, que a lei processual em vigor contém disposições que, adequadamente interpretadas e aplicadas, podem inibir o assédio processual através de demandas opressivas, evitando que, através da judicialização predatória, o Poder Judiciário seja usado e manipulado para servir a vis propósitos.
José Miguel Garcia Medina é doutor e mestre em Direito, professor titular na Universidade Paranaense e professor associado na UEM. Integrou a Comissão de Juristas nomeada pelo Senado Federal para elaboração do anteprojeto que deu origem ao Código de Processo Civil de 2015. Sócio do escritório Medina Guimarães Advogados. E-mail:
[1] Em caso paradigmático julgado pela Suprema Corte dos EUA, o juiz Douglas afirmou (em tradução livre): “Uma reclamação, que um tribunal ou agência pode considerar sem fundamento, pode passar despercebida; mas pode surgir um padrão de alegações repetitivas e infundadas, o que leva o investigador a concluir que os processos administrativos e judiciais foram abusados. Essa pode ser uma linha difícil de discernir e traçar. Mas, uma vez desenhado, o caso é estabelecido que o abuso desses processos produziu um resultado ilegal, ou seja, efetivamente barrando o acesso dos réus às agências e tribunais. Na medida em que os processos administrativos ou judiciais estão envolvidos, ações desse tipo não podem adquirir imunidade buscando refúgio sob a égide da ‘expressão política’.” (California Motor Transport Co. v. Trucking Unlimited, 404 U.S. 508, 1972; tradução livre do original a seguir: “One claim, which a court or agency may think baseless, may go unnoticed; but a pattern of baseless, repetitive claims may emerge which leads the factfinder to conclude that the administrative and judicial processes have been abused. That may be a difficult line to discern and draw. But once it is drawn, the case is established that abuse of those processes produced an illegal result, viz., effectively barring respondents from access to the agencies and courts. Insofar as the administrative or judicial processes are involved, actions of that kind cannot acquire immunity by seeking refuge under the umbrella of ‘political expression.’”). Também a doutrina brasileira analisa o tema à luz do direito concorrencial (cf., dentre outros, Bruno Braz de Castro, Sham litigation: o abuso do direito de petição com efeitos concorrenciais, Revista do IBRAC – Direito da Concorrência, Consumo e Comércio Internacional, v. 18, p. 58-74, jul.-dez. 2010).
[2] Afirmou-se, ainda: “O ardil, não raro, é camuflado e obscuro, de modo a embaralhar as vistas de quem precisa encontrá-lo. O chicaneiro nunca se apresenta como tal, mas, ao revés, age alegadamente sob o manto dos princípios mais caros, como o acesso à justiça, o devido processo legal e a ampla defesa, para cometer e ocultar as suas vilezas. O abuso se configura não pelo que se revela, mas pelo que se esconde. Por esses motivos, é preciso repensar o processo à luz dos mais basilares cânones do próprio direito, não para frustrar o regular exercício dos direitos fundamentais pelo litigante sério e probo, mas para refrear aqueles que abusam dos direitos fundamentais por mero capricho, por espírito emulativo, por dolo ou que, em ações ou incidentes temerários, veiculem pretensões ou defesas frívolas, aptas a tornar o processo um simulacro de processo ao nobre albergue do direito fundamental de acesso à justiça” (STJ, REsp 1.817.845/MS, rel. p/ Acórdão Min. Nancy Andrighi, 3.ª T., j. 10/10/2019). Em seu voto, a eminente Ministra Nancy Andrighi afirma, ainda: “A despeito de a doutrina da sham litigation ter se formado e consolidado enfaticamente no âmbito do direito concorrencial, absolutamente nada impede que se extraia, da ratio decidendi daqueles precedentes que a formaram, um mesmo padrão decisório a ser aplicado na repressão aos abusos de direito material e processual, em que o exercício desenfreado, repetitivo e desprovido de fundamentação séria e idônea pode, ainda que em caráter excepcional, configurar abuso do direito de ação. A excepcionalidade de se reconhecer eventual abuso do direito de acesso à justiça deve ser sempre ressaltada porque, em última análise, trata-se um direito fundamental estruturante do Estado Democrático de Direito e uma garantia de amplíssimo espectro, de modo que há uma natural renitência em cogitar da possibilidade de reconhecê-lo em virtude da tensão e da tenuidade com o próprio exercício regular desse direito fundamental. Respeitosamente, esse não é um argumento suficiente para que não se reprima o abuso de um direito fundamental processual, como é o direito de ação. Ao contrário, o exercício abusivo de direitos de natureza fundamental, quando configurado, deve ser rechaçado com o vigor correspondente à relevância que essa garantia possui no ordenamento jurídico, exigindo-se, contudo, e somente, ainda mais prudência do julgador na certificação de que o abuso ocorreu estreme de dúvidas.”
[3] A respeito, cf., dentre outros, George W. Pring, SLAPPs: Strategic Lawsuits against Public Participation, Pace Environmental Law Review, v. 7, set./1989.
[4] Como se afirmou em julgado do STF dedicado ao “efeito resfriador” quanto à atuação parlamentar, “o debate público não pode ser paralisado sob a ameaça constante e generalizada da responsabilização penal e cível, especialmente no que se refere à manifestação de opiniões dos detentores de mandato parlamentar. O designado ‘efeito resfriador’ sobre o discurso (chilling effect) deve ser evitado, sob pena de induzir à autocensura e à mitigação do debate democrático e difusão da informação” (STF, Inq 3817, 1.T., j. 07.04.2015, trecho do voto do Min. Marco Aurélio). Afirmou-se, ainda, em outro julgado do STF: “Vale lembrar que as funções parlamentares abrangem, além da elaboração de leis, a fiscalização dos outros Poderes e, de modo ainda mais amplo, o debate de ideias, fundamental para o desenvolvimento da democracia. Naturalmente, o ideal seria que tais funções fossem exercidas sem ofensas pessoais, centrando-se nos fatos e argumentos expostos, e não em seus interlocutores. Contudo, mesmo quando tal não ocorre, quis a Constituição proteger os parlamentares da reprimenda judicial. Isso para evitar que a ameaça de persecução cível e penal gerasse um efeito resfriador de seus discursos (chilling effect) e, consequentemente, prejudicasse a livre exposição de pensamentos na esfera legislativa, vocacionada que é ao debate público. O que se tutelou, convém frisar, foi a própria democracia” (STF, RE 600.063, Pleno, j. 25.02.2015, trecho do voto do Min. Roberto Barroso). Tais considerações aplicam-se, mutatis mutandis, ao que escrevemos no presente texto. Examinamos o assunto sob a perspectiva constitucional e processual em dois de nossos livros, a Constituição Federal Comentada (7.ª edição, 2022, comentário ao artigo 5.º, caput, inciso XXXV e ao artigo 53 da Constituição) e o Código de Processo Civil Comentado (8.ª edição, 2022, comentário ao artigo 80 do CPC), ambos publicados pela Editora Revista dos Tribunais (mais informações sobre essas obras aqui).
[5] Consta da Recomendação: “Art. 1o Recomendar aos tribunais a adoção de cautelas visando a coibir a judicialização predatória que possa acarretar o cerceamento de defesa e a limitação da liberdade de expressão. Art. 2o Para os fins desta recomendação, entende-se por judicialização predatória o ajuizamento em massa em território nacional de ações com pedido e causa de pedir semelhantes em face de uma pessoa ou de um grupo específico de pessoas, a fim de inibir a plena liberdade de expressão. Art. 3o Com o objetivo de evitar os efeitos danosos da judicialização predatória na liberdade de expressão, recomenda-se que os tribunais adotem, quanto ao tema, medidas destinadas, exemplificativamente, a agilizar a análise da ocorrência de prevenção processual, da necessidade de agrupamento de ações, bem como da eventual má-fe dos demandantes, a fim de que o demandado, autor da manifestação, possa efetivamente defender-se judicialmente. Art. 4o O CNJ poderá, de ofício ou mediante requerimento, acompanhar a tramitação de casos de judicialização predatória, bem como sugerir medidas concretas necessárias para evitar o efeito inibidor (chilling effect) decorrente da judicialização predatória.” Íntegra disponível aqui.
[6] Embora por motivos ligeiramente diversos, Zulmar Duarte de Oliveira Junior e Rodrigo da Cunha Lima Freire, em texto recente, chegam à mesma conclusão (Assédio processual: o abusivo exercício do direito de demandar e o interesse processual, disponível em , acesso em 15/02/2022).
[7] A respeito, cf. Sofia Temer, Financiamento de litígios por “terceiros” (ou “third-party” funding): O financiador é um sujeito processual? Notas sobre a participação não aparente, Revista de Processo, vol. 309, p. 359-384, nov./2020.