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TJSP confirma decisão que incluiu pessoas físicas no polo ativo de recuperação judicial

Aos 16.03.2022, a 2.ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, confirmando decisão proferida aos 16.09.2021 pelo juízo da 3.ª Vara Cível da Comarca de Jundiaí no Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica n. 0011104-76.2016.8.26.0309, determinou a inclusão de seis pessoas físicas e de três pessoas jurídicas no polo passivo da Recuperação Judicial correlata, por provocação de um dos credores e mediante requerimento do administrador judicial.

Na origem, o magistrado decidiu, em síntese e especificamente em relação à desconsideração da personalidade jurídica, que o grupo econômico integrado (também) pelas recuperandas operava com o abuso referido no art. 50, caput, do Código Civil, seja pelas movimentações societárias, seja pela organização financeira, seja pela blindagem patrimonial[1].

Enfatizou o juízo de primeiro grau que todas essas condutas poderiam ser, em análise superficial, consideradas lícitas[2] (cf. dicção, inclusive, do art. 50, § 4.º, do CC). Da fundamentação da decisão se extrai que quando contextualizadas, no entanto, revelam que houve, no caso, tanto o que se compreende por desvio de finalidade como o que deve ser entendido como confusão patrimonial. Por esse motivo, constou da decisão agravada que: “Porque em recuperação que pode vir a ser superavitária e perante os ilícitos cometidos, sendo o sangramento de empresas algo que vai a um retroagir no tempo, sendo a receita dos aqui agora recuperandos advinda da atividade empresarial direta ou conexa com o grupo CBA, respondem eles sem limites específicos com seu patrimônio”.

Contra a referida decisão foi interposto o Agravo de Instrumento n. 2253364-34.2021.8.26.0000 por duas das empresas que figuraram no polo passivo da desconsideração, que foi recebido, inicialmente, sem o efeito suspensivo requerido. Nas razões recursais sustentou-se a nulidade da decisão agravada (i) por ofensa a princípio da congruência; (ii) por prolação de decisão extra petita; e (iii) em razão da teratologia decorrente da ausência de fundamento jurídico. No mérito ventilou-se a violação ao art. 50 do Código Civil e a dispositivos da Lei n. 11.101/2005.

O acórdão relatado pelo Des. Ricardo Negrão desproveu o recurso e manteve a decisão do juízo singular, fazendo constar que: “São inúmeras e pormenorizadas relações que evidenciam alterações societárias e confusão patrimonial em nítido abuso da personalidade jurídica para fins escusos” e, mais adiante, que “Afastar a r. decisão recorrida significaria acobertar atos ilícitos”.

Da fundamentação dos dois pronunciamentos se extrai, com tranquilidade, que o contexto no qual se insere a Recuperação Judicial dos devedores é absolutamente preocupante e reflete abusos que, não raramente, são praticados a partir de interpretação conveniente e distorcida da Lei n. 11.101/2005 e que, em última análise, esvaziam o conteúdo e a finalidade da norma, esculpidos também em seu art. 47. É dizer: tanto a cuidadosa decisão proferida pelo juízo de primeiro grau quanto o acórdão que a confirmou dão conta de atos que devem ser considerados como abuso da personalidade jurídica para fins de aplicação do art. 50 do Código Civil, a ensejar a desconsideração.

O caso concreto, contudo, seja porque inédito, seja porque, como dito, revela práticas recorrentes de grupos econômicos que utilizam o processo recuperacional para lesar credores, provoca importantes reflexões.

A primeira reside na potencial contrariedade desse entendimento – possibilidade de pessoas físicas figurarem no polo ativo de Recuperações Judicial – às regras da Lei n. 11.101/2005 que disciplinam quem pode pedir ou requerer Recuperação Judicial (cf., p. ex., art. 1.º e art. 48), e também à possibilidade de que pessoas físicas se tornem falidas (e não sujeitas à insolvência civil, nos termos do art. 955 do Código Civil).

A segunda consiste no fato de que, da vasta fundamentação da decisão de origem e também do acórdão, se extrai a situação de abuso da personalidade jurídica perpetrada pelos membros do grupo econômico (cf. art. 50 do Código Civil), mas não a situação de crise econômico-financeira referida no art. 47 da Lei n. 11.101/2005, cuja superação se apresenta como o principal objetivo da Recuperação Judicial.

A terceira consiste na ideia de que admitir a inclusão de pessoas físicas no polo ativo de recuperações judiciais pode dar lugar a ainda mais abusos. Não é incomum identificar grupos econômicos que se organizam sob os pontos de vista societário e patrimonial antes da Recuperação Judicial de modo a concentrar os bens da(s) pessoa(s) jurídica(s) eleita(s) como “recuperanda(s)” em terceiros, pessoas físicas ou outras pessoas jurídicas, para que não respondam pelas dívidas que serão pagas pelo plano. Caso se passe a admitir a recuperação de pessoas físicas, certamente a dinâmica atualmente aplicada se adaptará ou se aprimorará para que as pessoas físicas agora “recuperandas” também esvaziem seus patrimônios para que não sejam alcançados pelo plano e pelos credores.

É importante ressaltar, no entanto, que a impossibilidade ou a inadequação da inclusão de pessoas físicas no polo da Recuperação Judicial, sobretudo nos casos em que o abuso da personalidade jurídica é flagrante, não devem conduzir a qualquer espécie de ausência de responsabilização dos devedores – pessoas físicas e jurídicas – que agem maliciosamente com a finalidade de lesar seus credores.

Reconhecido o abuso da personalidade jurídica, consubstanciado no desvio de finalidade e/ou na confusão patrimonial (cf. art. 50, caput e §§ 1.º e 2.º, do Código Civil), os credores interessados podem direcionar a pretensão de desconsideração em suas demandas individuais, instaurando o incidente regulado nos arts. 133 a 137 do Código de Processo Civil em execuções e ações indenizatórias, por exemplo, de modo a responsabilizar pelas obrigações do devedor original todos os membros do grupo econômico que agiram com abuso, alcançando seus patrimônios.

Outra possibilidade seria destituir o devedor ou seus administradores da condução da atividade empresarial, nos termos do que prevê, por exemplo, o art. 64, inc. III e IV, da Lei n. 11.101/2005, ou a convolação da Recuperação Judicial em Falência (cf. art. 73, inc. VI, da Lei n. 11.101/2005).

O que não se pode admitir, em absoluto, é que as Recuperações Judiciais e Falências sejam ambiente para a prática indiscriminada de irregularidades de qualquer natureza, que, como dito, têm o condão de esvaziar o escopo da Lei n. 11.101/2005.



[1] A possibilidade de instauração de incidente em processo falimentar, inclusive, foi recentemente ratificada pelo Superior Tribunal de Justiça (v.g. STJ, REsp n. 1686123/SC, Rel.: Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, 3.ª T., j. 22.03.2022).

[2] A respeito: “É tudo lícito, em princípio. Compor-se em pessoa jurídica com outrem é lícito. Aqui ou nas Ilhas Virgens Britânicas. Como se diz no apenso a este, o outro incidente, é lícito formar-se pessoa jurídica para simplesmente “existir” como objeto social. É lícito ser avalista perante o banco e, portanto, devedor principal lá, mas aqui, no rol de empresas originário, dizer-se blindado pela personalidade jurídica que se compõe ou administra. É lícito até questionar-se, como ocorreu com Axé, Armazém e Savon, venda de uma cota, mas é fato que Savon está em recuperação e, pedida ela, não se poderia imaginar (novamente uma estratégia jurídica duvidosa), dizer-se que, por isso, necessário blindar, dia seguinte ao pedido, o patrimônio para fins de diminuição de riscos (fls. 2691 e seguintes, onde está expresso isso, discutam-se as datas que se quiserem, mas a data do contrato, a menção à recuperação como causa dele e, sobretudo e por fim a do registro do contrato, quebram os argumentos de Axé e Armazém de antemão). É lícita uma movimentação constante de sociedade, um pular daqui para ali, uma substituição com entrega de patrimônio gratuito como se explica melhor no incidente outro, para filhos, mas não se for dita ela onerosa, se os filhos são estudantes e jovens sem profissão, mantendo-se usufruto, compondo-se empresa que arrenda bens de outra (a Guaçu, no apenso, por exemplo)” (fl. 26 da decisão de origem).


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