Acordo Jedi Blue e sua perspectiva internacional
Em 2018, a então Facebook (que veio a se tornar a empresa denominada Meta) celebrou um acordo com a Google, para a utilização dos sistemas de Open Bidding da Google para a realização de leilões de seus ads (propaganda), possivelmente ofertando à Meta melhores valores que os normais de mercado para realização de um acordo que modelaria o mercado de ads de maneira a favorecer a Google e a Meta. Tal acordo foi nomeado internamente pelos empregados da Google como “Jedi Blue”.
O acordo desde logo tornou-se conhecido pelas autoridades de defesa da concorrência em razão do chamado duopólio formado pela Google e pela Meta em seus sistemas de propaganda, nominalmente em alguns dos tipos mais fortes, o chamado Search Ad (em pesquisa pela google) e o Display Ad (em utilização de cookies e em sites, majoritariamente redes sociais).
Em estudo realizado pela CMA (Competition & Markets Authority), órgão que atua na defesa da concorrência no Reino Unido) sobre o caso Jedi Blue[1], afirmou-se que a Google gerou mais de 90% do valor de tráfego de pesquisas nos últimos 10 anos. A Meta (na época, ainda Facebook), já tendo adquirido o Instagram, gerou mais da metade dos valores adquiridos pelas propagandas em tela. A maior concorrente, no caso da Google, é a Bing (da Microsoft) que ocupa entre 5 e 10% do mercado, segundo o mesmo estudo.
Assim, com os dados ingleses como exemplo (e que não se diferem muito na União Europeia e em outros lugares), verifica-se, de fato, a ocorrência do duopólio, motivo que cria preocupação com condutas que atacam a ordem econômica.
Os órgãos internacionais de defesa da concorrência referidos entendem que haveriam indícios de que o acordo realizado teria violado regras de defesa da concorrência, reconhecidas internacionalmente, tais como: a) abuso de posição dominante pelas partes; b) realização de acordo que tenta minar, ou restringir a concorrência[2].
Em similaridade com a perspectiva da União Europeia e da CMA, o Estado do Texas, nos Estados Unidos, argumentou que a Google tem um espaço muito grande no mercado de propaganda, que, supostamente, de acordo com o Estado do Texas, ocorreria em detrimento dos editores de site que têm interesse em ceder seu espaço, por consequência do monopólio[3].
Basicamente, o cerne do problema se encontra em que a Google cria e utiliza o seu próprio sistema de leilão de ads. Inicialmente, foi criado o Header Bidding (ou lance de cabeçalho), que tinha a intenção de permitir aos editores que se utilizassem do sistema para leiloar seus espaços aos interessados com a própria coordenação do editor. Com isso a Google criou o seu sistema de Open Bidding, que se utiliza dos sistemas da Google, pré-definidos, para a realização do leilão do espaço de propaganda.
Com isso, a Meta, um ano após manifestar que se utilizaria do sistema de Header Bidding para o leilão de seus ads[4], passou a utilizar o sistema da Google como intermediário da venda de seus espaços para propaganda[5].
Nesse sentido, dado o duopólio existente, a CMA teria entendido que o referido acordo poderia ocorrer de forma a lesar os outros concorrentes por não permitir que seja feita propaganda de outra maneira, manifestamente equilibrando os preços, dentre outros efeitos que lesam a concorrência e, por seguinte, o consumidor.
A problematização prossegue com a Google ofertando preços 30 a 40% maiores que a sua maior concorrente, a Bing. Isso porque a ela é “permitido” praticar esse preço em razão da sua ampla força de mercado, fazendo com que os consumidores realmente se sintam obrigados a fazer seus negócios com a Google, por acreditarem ser ela a única que realiza os serviços[6].
Ainda, demonstra a pesquisa da CMA que a Meta, por sua posição de mercado, passou a praticar preços de 5 libras esterlinas em 2011 para 60 libras até 2019, sendo considerado, tanto em razão de seus bancos de dados, tanto pelas redes sociais em si, um serviço muito forte nos display ads.
Em comunhão com essa força no mercado, a Google atua em duas frentes como intermediária, leiloando o espaço de propaganda para grupos grandes, bem como servindo para que as pessoas possam adquirir esse espaço.
Portanto, a Google é o ambiente mais interessante de leilão para ambos os lados interessados no negócio, tendo em vista sua amplitude de mercado para a oferta e também a procura dos seus serviços como intermediária. Além disso, a Google detém o próprio sistema de cookies que amplifica toda utilização de ads, chamado cookie match[7].
Ou seja, a atuação combinada da Google e da Meta consiste em agregar mais ao poder da Google em parar a utilização do Header Bidding e atuar em tentar favorecer o seu sistema próprio de Open Bidding, de maneira a monopolizar o mercado com o seu sistema intermediário.
No Brasil, a matéria é disciplinada pela Lei n. 12.529/2011, que estrutura o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência, e que, nesses casos, é aplicada pelo CADE - Conselho Administrativo de Defesa Econômica. De acordo com essa Lei, constitui infração à ordem econômica a realização de atitude que “limitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência ou a livre iniciativa” e “exercer de forma abusiva posição dominante” (incisos I e IV do art. 36). Da mesma forma, na alínea “c” do inciso I do parágrafo 3.º do art. 36, dispõe a Lei que caracteriza infração econômica “a divisão de partes ou segmentos de um mercado atual ou potencial de bens ou serviços, mediante, dentre outros, a distribuição de clientes, fornecedores, regiões ou períodos”.
À luz das disposições legais acima, ao menos em tese, se poderia indagar sobre a caracterização da atuação da Google e da Meta teria sido no sentido de se utilizar de sua posição dominante para regular o mercado à sua maneira, podendo sujeitar essas empresas às penas existentes nos arts. 37 e seguintes da Lei.
Porém, em seu relatório final, a CMA manifestou uma solução diferente da aplicação de qualquer punição aos agentes econômicos.
O órgão inglês trouxe a iniciativa de criação de uma legislação específica sobre o tema, que regesse a realização das condutas de Ad Bidding, e fizesse evitar condutas anticoncorrenciais e que deixasse claros os procedimentos do leilão aos interessados. Além disso, haveria de cominar pena para aqueles que evitam a incidência da legislação a ser criada, devendo ser dado ao órgão que trata dos mercados digitais o poder de atuar aplicando a pena no caso concreto, administrativamente.
A referida proposta ainda está passando por seus procedimentos legislativos dentro do parlamento do Reino Unido[8].
De todo modo, verifica-se que a solução encontrada pela CMA pode ser a mais efetiva considerando a necessidade crescente da regulação de tipos específicos de negócios jurídicos que ocorrem dentro de sistemas e bases de dados dessas gigantes da tecnologia, afim de evitar condutas anticompetitivas.
No Brasil, parte dessa batalha decorre da Lei Geral de Proteção de Dados (Lei n. 13.709/2018), que, por sua vez, trata da transparência dos dados e dados pessoais. A referida legislação, no entanto, não trata sobre a defesa da concorrência.
Por fim, tal qual entendeu o Furman Review[9], no qual se baseou a CMA, o mercado digital carece de um código de conduta próprio em razão da necessidade de reprodução dos efeitos da defesa da concorrência dentro desse mercado, permitindo a concorrência livre e construindo uma chance de concorrência para aqueles que desejarem enfrentar o monopólio dos mercados digitais.
[1] Reino Unido. Gov.UK. 2020. Online platforms and digital advertising. Market study final report. Disponível em <https://www.gov.uk/cma-cases/online-platforms-and-digital-advertising-market-study>, Acesso em: 5 de abr. de 2022.
[2] Conforme notas citadas.
[3] Thomson Reuters. DIANE, Paresh Dave Bartz. Texas, nine U.S. states accuse Google of working with Facebook to break antitrust law. 2020. Disponível em: <https://www.reuters.com/article/us-tech-antitrust-google/texas-and-nine-other-u-s-states-sue-google-for-abusing-market-power-idUSKBN28Q2RL>, Acesso em: 6 de abr. de 2022.
[4] Meta. JAKUBOWSKI, David. Lance de cabeçalho para a web móvel: Audience Network do Facebook. 2017. Disponível em: <https://www.facebook.com/audiencenetwork/news-and-insights/header-bidding-through-partnerships>, Acesso em: 5 de abr. de 2022.
[5] O Header Bidding é um sistema em que a pessoa que tem interesse em vender um espaço de ad (propaganda) para outras pessoas possam utilizá-lo para realizar um leilão, assim, tendo total controle sobre o mesmo considerando que se trata de um sistema Open Source, e como tal, está amplamente disponível on-line e amplamente customizável para os interesses do indivíduo.
O Open Bidding é um sistema disponibilizado pela Google que admite que a pessoa interessada em vender um espaço de “ad” o faça através dos sistemas da Google, que toma controle do sistema e de todo o leilão do espaço.Mais informações sobre Open Biddind de acordo com a Google: <https://support.google.com/admanager/answer/7128453?hl=pt-BR>. Acesso em: 06 de abr. de 2022.
[6]Reino Unido. Gov.UK. Online platforms and digital advertising. Market study final report. Disponível em: <https://assets.publishing.service.gov.uk/media/5fa557668fa8f5788db46efc/Final_report_Digital_ALT_TEXT.pdf> Acesso em: Acesso em: 5 de abr. de 2022.
[7] Cookie Matching. Google. c2022. Disponível em: <https://developers.google.com/authorized-buyers/rtb/cookie-guide#:~:text=Open%20Bidding%20allows%20exchanges%20to,tables%20with%20their%20own%20bidders.>. Acesso em: 06 de abr. de 2022.
[8] Reino Unido. UK Parlament. Parlamentary Bills. Disponível em: <https://bills.parliament.uk/bills/3137/news>. Acesso em: 06 de abr de 2022.
[9] Reino Unido. FURMAN, Jason. Unlocking digital competition. Report of the Digital Competition. Disponível em:
https://assets.publishing.service.gov.uk/government/uploads/system/uploads/attachment_data/file/785547/unlocking_digital_competition_furman_review_web.pdf>. Acesso em: 06 de abr. de 2022.