Lei de Improbidade Administrativa: A responsabilização pelo ato de improbidade após a edição da Lei N. 14.230 De 2021
A Lei de Improbidade Administrativa (LIA), de n. 8.429, foi aprovada em 1992, para dispor sobre as sanções aplicáveis em casos de improbidade administrativa. Antes, a Constituição Federal, no § 4.º do artigo 37, estabelecera que “os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível.” A Lei versou sobre aspectos materiais e processuais a respeito dos atos de improbidade administrativa, tendo por objetivo principal zelar pela integridade do patrimônio público e social, valendo-se do poder sancionador para tanto.
Recentemente, passou por diversas alterações em decorrência da edição da Lei n. 14.230 de 2021, dentre as quais a que diz respeito à exigência de conduta dolosa para que o agente seja responsabilizado pelo ato de improbidade, com a supressão da modalidade culposa.
Logo no artigo 1º, a nova Lei apresenta disposição expressa no sentido de que os atos de improbidade administrativa se configuram pela conduta dolosa (vide §1º), conceituando, em seguida, no §2º, o dolo como “a vontade livre e consciente de alcançar o resultado ilícito tipificado nos arts. 9º, 10 e 11 desta Lei, não bastando a voluntariedade do agente”. Ato contínuo, no §3º do mesmo dispositivo, reitera o legislador que o exercício da função ou desempenho de competências sem comprovação do ato doloso com fim ilícito afasta a responsabilidade por ato de improbidade administrativa.
Passando à uma segunda análise, estruturalmente, a LIA apresentava quatro categorias de atos de improbidade, a saber: (i) atos de improbidade administrativa que importam enriquecimento ilícito (art. 9º); (ii) atos de improbidade administrativa que causam prejuízo ao erário (art. 10); (iii) atos de improbidade administrativa decorrentes de concessão ou aplicação indevida de benefício financeiro ou tributário (art. 10-A, revogado pela Lei n.º 14.230 de 2021); e (iv) atos de improbidade administrativa que atentam contra os princípios da administração pública (art. 11).
Em relação aos atos de improbidade que implicam no enriquecimento ilícito (art. 9º) e aos que atentam contra os princípios da administração pública (art. 11), o texto legal era silente quanto à sua aplicabilidade pela conduta culposa.
No caso do enriquecimento ilícito e dos atos que atentam contra os princípios da administração pública, a ausência de expressa disposição legal quanto à modalidade culposa importava no entendimento de que a conduta típica somente restaria verificada pela conduta dolosa.
Nesta mesma linha, destaca-se a posição do Superior Tribunal de Justiça.[1]
Em contrapartida, o artigo 10 previa, expressamente, em seu texto, a possibilidade do reconhecimento do ato de improbidade administrativa pela modalidade culposa.
Sobre os atos de improbidade administrativa configurados pela conduta culposa, vale destaque à importante posicionamento do STF em decisão proferida em 01.10.2021, pelo Min. Gilmar Mendes, instruindo “que a sanção de suspensão de direitos políticos não se aplica a atos de improbidade culposos que causem dano ao erário”, suspendendo a vigência da expressão “suspensão dos direitos políticos de três a cinco anos” do inciso III do art. 12, §2º da Lei 8.429/1992.[2]
Ressalta-se que, a responsabilização pela prática do ato de improbidade administrativa, na modalidade culposa, antes da edição da Lei n. 14.230 de 2021, já sofria duras críticas doutrinárias. A este respeito, discorre o professor José Miguel Garcia Medina.[3]
Com o advento da nova lei, a modalidade culposa do artigo 10 foi suprimida. Em consonância com as disposições do artigo 1º, o ato de improbidade administrativa passa a ser constituído exclusivamente pela conduta dolosa.
No contexto apresentado, ainda que haja dano ao Estado, causado por negligência, imprudência ou imperícia, não sendo verificada a conduta dolosa, não há que se falar em improbidade administrativa. Não se confunde, por exemplo, a má gestão e a falta de zelo com a má-fé do agente público, em especial, com eventual conduta dolosa que poderia acarretar na configuração dos tipos previstos na LIA.
A questão que envolve o dolo, no entanto, vai além.
Se anteriormente o entendimento do Superior Tribunal de Justiça era no sentido de que “o ato de improbidade administrativa previsto no art. 11 da Lei 8.429/92 exige a demonstração de dolo, o qual, contudo, não precisa ser específico, sendo suficiente o dolo genérico” (destacamos), conforme excerto do AgInt no REsp 1532296 SP, acima citado, com a nova redação, o entendimento acerca da possibilidade da configuração do ato de improbidade pelo dolo genérico encontra-se superada.
Conforme a nova redação do artigo 1º, §2º, da LIA, “considera-se dolo a vontade livre e consciente de alcançar o resultado ilícito tipificado nos arts. 9º, 10 e 11 desta Lei, não bastando a voluntariedade do agente”.
Para melhor compreensão, conforme leciona o professor Luiz Flávio Gomes, enquanto o dolo genérico caracteriza-se apenas pela consciência e vontade de concretizar os requisitos objetivos do tipo, no dolo específico, além destes requisitos, faz-se necessária a presença de uma intenção especial do agente[4], neste caso, a vontade de alcançar o resultado tipificado nos artigos 9º, 10 e 11 da Lei.
Neste mesmo sentido, temos no art. 11, §1º da nova lei que “somente haverá improbidade administrativa, na aplicação deste artigo, quando for comprovado na conduta funcional do agente público o fim de obter proveito ou benefício indevido para si ou para outra pessoa ou entidade” (destacamos).
Curiosamente, o legislador optou, no §2º do mesmo dispositivo, por expressar que a disposição do parágrafo anterior se aplica “a quaisquer atos de improbidade administrativa tipificados nesta Lei e em leis especiais e quaisquer outros tipos especiais de improbidade administrativa instituídos por lei”, trazendo ampla abrangência quanto à necessidade da presença do dolo específico na configuração do ato de improbidade administrativa, também em outros diplomas legais.
Em uma última análise, e não menos importante, insta salientar que eventuais condutas adotadas pelos agentes públicos que afetem a integridade do patrimônio público e social, desacompanhadas da conduta dolosa, não necessariamente passarão impunes, considerando a possibilidade de responsabilização nas esferas cível, penal e administrativa.
Sobre o tema. Evandro Guedes e Thallius Moraes lecionam que as sanções previstas na LIA “não possuem natureza penal, mas sim natureza civil ou política (ou político-administrativa), e são aplicadas independentemente das sanções penais, cíveis e administrativas previstas na legislação específica.”[5]
Ainda sobre este viés, Alexandre Mazza conceitua as sanções decorrentes da aplicação da LIA como uma quarta esfera de responsabilização, ao lado das esferas civil, penal e administrativa, estas denominadas, em sua análise, como uma tríplice responsabilidade do agente público.[6]
O próprio artigo 12 da Lei, seja em sua redação original ou mesmo na atual, prevê que as sanções aplicadas ao agente público que comete o ato ímprobo, não são correlatas às sanções penais, civis e administrativas previstas em legislação específica, podendo, inclusive, ser aplicadas de forma cumulativa.
Diante de todas as alterações legislativas ora postas, verifica-se que as modificações decorrentes da Lei n. 14.230 de 2021 são substanciais e extremamente importantes para a análise da responsabilização pela prática do ato de improbidade administrativa, em especial pela exclusão da modalidade culposa do texto legal e também pela necessidade de verificação do dolo específico.
[1] PROCESSUAL CIVIL. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. PARA A TIPIFICAÇÃO DAS CONDUTAS DOS RÉUS COMO UNCIRSA NAS PREVISÕES DA LEI DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA, É NECESSÁRIA A DEMONSTRAÇÃO DO ELEMENTO SUBJETIVO. AGRAVO INTERNO NÃO PROVIDO. [...] O entendimento do STJ é no sentido de que, para que seja reconhecida a tipificação da conduta do réu como incursa nas previsões da Lei de Improbidade Administrativa, é necessária a demonstração do elemento subjetivo, consubstanciado pelo dolo nos tipos previstos nos artigos 9º e 11 e, ao menos, pela culpa nas hipóteses do artigo 10. 6. É pacífico o entendimento do STJ no sentido de que o ato de improbidade administrativa previsto no art. 11 da Lei 8.429/92 exige a demonstração de dolo, o qual, contudo, não precisa ser específico, sendo suficiente o dolo genérico. (STJ – AgInt no REsp: 1532296 SP 2015/0114249-0, Relator: Ministro Herman Benjamin. Data de Julgamento: 28/11/2017, T2 – Segunda Turma. Data de Publicação: DJe 19/12/2017). (g.n)
[2] BRASÍLIA, Supremo Tribunal Federal. Medida Cautelar na ADI n. 6678 DF 0048100-62.2021.1.00.0000. Relator: Min. Marco Aurélio. Brasília-DF. 01 out. 2021. DJE 05 out. 2021. Disponível em: . Acesso em 23 mar. 2022.
[3] “Isso porque, segundo pensamos, para que se esteja diante de um ato de improbidade administrativa exige-se a conjugação de três elementos: ilegalidade, imoralidade, desonestidade (cf. o que escrevemos em Ação civil pública – Improbidade administrativa, Doutrinas Essenciais de Direito Administrativo, vol. 7, nov./2012, p. 995-1014, e em O ônus da prova na ação de improbidade administrativa, Revista dos Tribunais, v. 867, jan./2008, p. 1015-1017).. A ideia de desonestidade deve nortear a legislação infraconstitucional, já que a Constituição, no §4.º do art. 37, fala em sanção por ato de improbidade, e não se concebe que um ato possa ser considerado ímprobo sem desonestidade. Falar-se em “improbidade culposa”, assim, é uma ficção legal, de duvidosa constitucionalidade.” (MEDINA, José Miguel Garcia. Constituição Federal Comentada. 7 ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022. p. 372).
[4] GOMES, Luiz Flávio. Qual a diferença entre dolo genérico e dolo específico? Jusbrasil, 2011. Disponível em <https://professorlfg.jusbrasil.com.br/artigos/121924731/qual-a-diferenca-entre-dolo-generico-e-dolo-especifico>. Acesso em 23 mar. 2022.
[5] GUEDES, Evandro; MORAES, Thallius. Devo Saber – Direito Administrativo. Cascavel: AlfaCon, 2017. p. 337
[6] MAZZA, Alexandre. Manual de Direito Administrativo. 9 ed. São Paulo: Saraiva, 2019, p. 1302.