Herança digital: o avanço da tecnologia e a necessidade de regulamentação Giovanna Ramos Fachini
É de consenso geral que a pandemia que estamos enfrentando transformou absurdamente o modo como as pessoas utilizam as tecnologias digitais a seu favor. Até aqueles que antes tinham pouco interesse no mundo virtual passaram a valer-se de diversos aplicativos e ferramentas, não só pela sua praticidade, mas também pelas necessidades decorrentes da Covid-19.
Atualmente, quase metade da população é ativa em alguma rede social. Dentre as mais conhecidas, como Instagram, Facebook e LinkedIn, são cerca de 4 bilhões de usuários ativos gerando conteúdo e, consequentemente, armazenando patrimônio virtual em suas redes e nuvens, como fotos, vídeos, áudios, mensagens, moedas virtuais, senhas de banco, dentre outros.
Muitos de nós, no novo contexto imposto pela pandemia, já nos habituamos com o emprego cada vez maior da tecnologia. Entretanto, muitos ainda não refletem sobre o que deve ser feito com todo esse patrimônio virtual acumulado, depois que a pessoa vem a falecer.
A chegada de novas tecnologias encaminhou grandes mudanças e discussões para o Direito e, no âmbito do Direito das Sucessões, a cada ano vem aumentando os debates relacionados à transmissão da herança digital.
No Direito Sucessório, quando a pessoa morre sem deixar testamento, seus bens são divididos entre os chamados herdeiros necessários. Neste caso, normalmente se tratam de bens de valor econômico e a transmissão tem regulamentação muito específica pelo Direito Civil brasileiro.
Já o patrimônio virtual pode ter cunho unicamente afetivo, como por exemplo o perfil de uma pessoa falecida em uma rede social, mas também pode ser um bem de alto valor econômico, como uma página com muitos seguidores e alta rentabilidade, moedas virtuais, músicas inéditas, entre outros.
Ocorre que grande parte desse patrimônio virtual, sob o ponto de vista de alguns, não se enquadra no conceito de herança dado pelo Código Civil, e, portanto, a sucessão desse patrimônio não estaria regulada pela legislação brasileira.
Em que pese o § 2.º, do artigo 1.857 do Código Civil dispor que “são válidas as disposições testamentárias de caráter não patrimonial, ainda que o testador somente a elas se tenha limitado”, o problema surge quando o proprietário dos bens digitais não expõe sua vontade por meio de um testamento.
Para os casos de ausência de testamento, duas correntes se formaram: (i) a primeira, considera necessária a transmissão da herança digital aos herdeiros legítimos; (ii) a segunda corrente defende que é impossível a transmissão automática da herança digital por ofensa aos direitos da personalidade do de cujus.
Tendo em vista a falta de legislação específica a respeito, tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei n. 3.050/2020, que visa incluir a herança digital no Código Civil. A proposta tem por finalidade transmitir aos herdeiros todos os conteúdos, contas e arquivos digitais do autor da herança.
O desafio que se coloca ao intérprete e aplicador da lei processual, a nosso ver, está em prever a transmissão da herança digital sem que isso implique em ofensa aos direitos da personalidade e aos preceitos da Constituição Federal. Afinal, nem todas as pessoas gostariam que seus herdeiros tivessem acesso às suas redes sociais, conversas privadas e a todo acervo virtual criado pela pessoa após sua morte.
E você, já parou para pensar sobre isso? Qual seria seu desejo post mortem? Esse é um tema de que, mais cedo ou mais tarde, cada um de nós terá que se ocupar: como disciplinar, em vida, o patrimônio digital que deixaremos.