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Superendividamento e mínimo existencial

As alterações normativas promovidas pela Lei nº 14.181/2021 no Código de Defesado Consumidor (CDC) estabelecem a necessidade de preservar-se o mínimoexistencial do devedor por ocasião da celebração de convenções, evitando-se o seusuperendividamento. E dispõem, também, que o conteúdo e a extensão do que sedeve considerar mínimo existencial é algo que viria a ser disciplinado em normaregulamentadora. Essa regulamentação foi realizada pelo Decreto nº 11.150/2022,que entrará em vigor 60 dias após a sua publicação.
O texto legal exigia a especificação do que se deve considerar mínimo existencial,como condição para a sua efetiva aplicação. A regulamentação do tema mostrava-seindispensável para que não fosse questionada a idoneidade do quadro normativo aser utilizado para a solução de problemas que inevitavelmente haverão de surgir, nainterpretação das disposições inseridas pela Lei nº 14.181/2021.
A expressão “mínimo existencial” é vaga e indeterminada. E o recurso a uma noçãovaga deve sempre limitar-se ao indispensável. É que a ausência de melhor e maisprecisa definição normativa gera incerteza e insegurança, o que pode significarverdadeiro impedimento ao exercício do direito protegido pela lei a serregulamentada. Assim, aqueles que celebrarão suas convenções (sejam os consumidores, sejam os agentes econômicos) sentem-se inseguros quanto a sabero que poderá ser pactuado, e isso pode acabar significando um verdadeiroimpedimento à própria contratação.
O empresário, por exemplo, pode deixar de fornecer alguns tipos de produtos adeterminadas camadas sociais e econômicas, por temer que os negócios a seremfirmados venham a ser questionados ou considerados inválidos. Algo semelhantepode suceder quando uma instituição financeira deve decidir se realiza ou não umcontrato de mútuo. Nesse contexto de elevada indeterminação normativa, o déficitacabará sendo levado ao Poder Judiciário em múltiplos processos. E cada um dosmagistrados brasileiros acabará definindo, caso a caso, o que, a seu ver, haverá decorresponder ao mínimo existencial, o que poderia gerar ainda mais insegurançajurídica.
O apontamento de critérios, por outro lado, antecipadamente evita controvérsias.Caso a regra não contivesse previsão precisa quanto ao montante impenhorável,certamente a sua aplicação restaria dificultada ou, até, irremediavelmenteinviabilizada. Mostrava-se indispensável, assim, regulamentar as regras inseridaspela Lei nº 14.181/2021, sob pena de se tornar a sua aplicação inexequível. Aí aimportância do decreto que acaba de ser publicado.
Embora possa ser considerado difícil definir, com absoluta precisão, o que se deveconsiderar abrangido pelo mínimo existencial, é possível indicar parâmetros básicos,seja para se afirmar que, em determinados casos, o mínimo existencial foiresguardado, seja para censurar ações em que, manifestamente, o mínimoexistencial será vilipendiado.
Por mínimo existencial deve-se qualificar aquilo que é capaz de assegurar condiçõesadequadas de existência digna. Várias disposições legais já dispunham sobre o temade modo esparso e vinham sendo aplicadas pela jurisprudência, e esses dadospoderiam servir de parâmetro. Assim, por exemplo, considera-se válida a cláusulaque autoriza o desconto em conta corrente de prestações de empréstimo a até 30% da remuneração líquida percebida pelo devedor (STJ, REsp 1584501). Nesse caso, jáse está diante de parâmetro oferecido pela legislação que trata dos empréstimosconsignados, que acabaram sendo excluídos pelo decreto.
De todo modo, a regra regulamentadora poderia valer-se de outro percentual,distinto do citado (por exemplo, indicando percentual determinado da remuneraçãolíquida do consumidor e limitando-o a um número de salários-mínimos). A regraregulamentadora optou por definir, como mínimo existencial, a renda mensal doconsumidor pessoa natural equivalente a 25% do salário mínimo vigente na data depublicação do decreto (isso é, em 27/07/2022), o que representa o montante de R$303,00. A opção poderá ser objeto de críticas, seja por se considerar esse montantemuito baixo, seja porque a noção de mínimo existencial pode variar, a depender dasnecessidades de cada pessoa. No entanto, a definição de um valor preciso pelaregulamentação oferece parâmetro para as partes firmarem seus negócios cientesdos limites que haverão de obedecer.
A regulamentação promovida pelo decreto excluiu de seu âmbito de incidênciaalgumas modalidades de contrato, como, por exemplo, os relativos a empréstimos efinanciamentos com garantias reais e os decorrentes de operação de créditoconsignado regido por lei específica. No caso do crédito consignado, a matéria écuidada pela Lei nº 10.820/2003, que vem sendo alterada por várias disposições,como a recente Lei nº 14.431, de 3 de agosto.
A coerência de um sistema é condição para a realização da justiça do ordenamentojurídico (considerada a justiça em seu valor igualdade). Um sistema incoerente, aoinvés de realizar a justiça, acaba conduzindo à criação de soluções díspares, anti-isonômicas e, portanto, injustas. Pode-se mesmo dizer que o elevado grau deincerteza decorrente da ausência de regulamentação poderia gerar um quadroinconstitucional, pois contrário à segurança jurídica (base do Estado de Direito) egerador de soluções díspares e atentatórias à isonomia entre consumidores (o queviola o direito fundamental à igualdade).

Veículo: https://valor.globo.com/legislacao/noticia/2022/09/13/superendividamento-e-minimo-existencial.ghtml 


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