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Impenhorabilidade de salário e equiparados: razões, exceções e o credor de honorários advocatícios sucumbenciais

O processo de execução, meio judicial disponibilizado ao credor para satisfazer seu crédito, rege-se, entre outros, pelo princípio da responsabilidade patrimonial, segundo o qual o devedor “responde com todos os seus bens presentes e futuros para o cumprimento de suas obrigações, salvo as restrições estabelecidas em lei” (art. 789 do CPC). À primeira vista, o dispositivo parece promissor ao credor, sugerindo muitas possibilidades de constrição contra o patrimônio do devedor; passando o enfoque à ressalva da parte final da norma, o cenário se torna limitado, o que é confirmado quando se chega ao rol (não taxativo) dos bens considerados impenhoráveis, previsto no art. 833 do CPC.

         A partir dessa proteção, cujo sabido intuito é resguardar o devedor de uma expropriação que lhe possa deixar à beira da indignidade, mostra-se interessante – porque de grande relevância prática – analisar uma limitação em especial, atinente ao salário do devedor (e seus equivalentes), prelecionada no art. 833, inc. IV, do CPC, assim como as relativizações dessa limitação, as quais advêm da própria legislação ou são acrescentadas pela jurisprudência, em um sinal de esforço para aproximar o processo da sua finalidade precípua, grosso modo, a satisfação do direito material da parte.

Com efeito, o tema é rotineiro no foro, e dinheiro é o bem mais visado em processos de execução de quantia certa – contando com a preferência legal (art. 835, inc. I, do CPC) –, porque é objeto que detém alta liquidez quando comparado a outros. Cresce, também, o interesse na discussão ao entorno da constrição do salário, porquanto, no mais das vezes, o devedor não possui outra expressão patrimonial, senão seu próprio rendimento. Portanto, convém examinar o tratamento a uma das “restrições estabelecidas em lei”, apontando quando a literalidade da restrição legal poderá ceder, e alertando, por fim, para um julgamento que poderá legar ao tema mais uma exceção à regra da impenhorabilidade do salário.

Inicialmente, tomando em consideração a letra da lei, tem-se que se consideram impenhoráveis os salários e outras verbas de semelhante caráter (verbi gratia, vencimentos, subsídios, proventos de aposentadoria etc.). De modo geral, a doutrina explica que o regime de impenhorabilidades (não só do salário nem só aquele do art. 833 do CPC) é um consectário da densificação infraconstitucional da dignidade da pessoa humana (art. 1.º, inc. III, da CF), funcionando como a garantia de um “mínimo existencial” ao devedor, uma proteção àquela parte do seu patrimônio sem a qual sua subsistência digna poderia ficar comprometida.

A própria lei, no entanto, excepciona a impenhorabilidade que impôs. No que interessa ao salário, preconiza o § 2.º do art. 833 do CPC que esta verba (e equiparadas) poderá ser penhorada quando (i) se estiver diante de cobrança de prestação alimentícia e (ii) se tratar de importâncias excedentes a 50 (cinquenta) salários-mínimos mensais.

É fácil perceber o descompasso entre a lei e a realidade, pois se admite a constrição do que sobejar a 50 (cinquenta) salários mínimos, descuidando-se ser este um patamar muito elevado para o padrão brasileiro.  Sensível à falta de proporcionalidade do calibre legislativo e atenta à pouca utilidade prática que referida norma teria, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça passou a permitir mitigações à impenhorabilidade do salário.

Em 2018, a Corte Especial daquele Tribunal, em Embargos de Divergência, sufragou o entendimento de que “[s]ó se revela necessária, adequada, proporcional e justificada a impenhorabilidade daquela parte do patrimônio do devedor que seja efetivamente necessária à manutenção de sua dignidade e da de seus dependentes” (v.g. STJ, REsp n. 1.582.475/MG, Corte Especial, Rel. Min. Benedito Gonçalves, j. 03.10.2018; g. n.). Não que antes disso já não fosse possível encontrar, em algumas Turmas, sólidos precedentes em prol desta tese. Porém, parece ter sido naqueles Embargos que as divergências foram sopesadas e superadas.

O desfecho obtido atenua uma desproporcional proteção conferida ao devedor. Naquele julgamento, pontuou-se que “o credor tem direito ao Estado de Direito, ao acesso à ordem jurídica justa, ao devido processo legal processual e material. De outro, também o devedor tem direito ao devido processo legal, que preserve o mínimo existencial e sua dignidade”. Outro respaldo de altura constitucional ao credor parece estar na garantia constitucional de “razoável duração do processo”, porque, data venia, não adiantaria falar em razoável duração do processo sem se preocupar, também, com a satisfação de seu objeto, para a qual sua instrumentalidade é vocacionada. Enfim, há direitos fundamentais em jogo, circunstância que sempre convida a pensar no postulado da concordância prática, princípio de hermenêutica que propõe ao intérprete buscar a exegese que permita a coexistência harmônica, equilibrada, entre os direitos em conflito. Por mais esta perspectiva, o entendimento que prevaleceu se mostra adequado.

E, a confirmar que conclusão distinta traria incômoda e desarrazoada consequência, o Relator do voto vencedor observou que, se quaisquer salários fossem integralmente impenhoráveis, sem olvidar do teto de 50 (cinquenta) salários-mínimos, “estar-se-ia chancelando o comportamento de qualquer pessoa que, sendo servidor público, assalariado ou aposentado, ainda que fosse muito bem remunerada, gastasse todas as suas rendas e deixasse de pagar todas as suas dívidas, sem qualquer justificativa”.

Como não poderia ser diferente, não se fixou parâmetros objetivos para distinguir quando será possível a constrição da remuneração do devedor. Trata-se de questão casuística, sempre dependente das circunstâncias concretas, que revelarão se o salário recebido pelo devedor comporta parcial penhora. Em suma, pode-se dizer que o STJ acabou por admitir uma exceção implícita à impenhorabilidade do salário quando a penhora de parte da remuneração do devedor não for capaz de atingir a dignidade ou a subsistência dele e de sua família, entendimento este que favorece a dinâmica do processo executivo ao aumentar a possibilidade de se alcançar a realização do direito postulado em juízo.

Paralelamente, um outro tema afim será, em breve, tratado em termos pretensamente definitivos pelo STJ. Como visto, a penhora de salário já é excepcionada, por lei, para o credor de prestação alimentícia. Discute-se, mais além, se os honorários advocatícios de sucumbência se incluiriam nesta exceção legal, dado o seu caráter alimentar.

É certo que o credor de verbas sucumbenciais, caso se depare com devedor que receba alta remuneração, já tem à sua disposição a tese de mitigação da impenhorabilidade do salário, mencionada acima. Todavia, o tema que será julgado pela Corte, a depender do seu resultado, poderá expandir as suas possibilidades. Isso, porque, se enquadrado seu crédito na exceção a que alude o § 2.º, restará desnecessário, a princípio, investigar se o devedor percebe uma remuneração avantajada ou não. O debate está pautado no Tema n. 1.153 do Tribunal.

Vale adiantar, contudo, que esse mesmo debate já foi travado pela Corte Especial, mas não sob o rito dos recursos repetitivos. Precisamente, no REsp n. 1.815.055/SP, em que prevaleceu a compreensão de que o caráter alimentar dos honorários advocatícios de sucumbência não permite equipará-los, integralmente, às verbas de natureza alimentícia.

A diferenciação entre “natureza alimentar” e “natureza alimentícia” se sustentaria porque esta última expressão estaria ligada, na história da técnica legislativa brasileira, às obrigações de prestar alimentos familiares, indenizatórios ou voluntários, envolvendo relações em que o credor é reconhecidamente vulnerável, aspecto que não acompanharia, por natureza, o credor de verba alimentar. Entre as diferenças de tratamento legal destacadas na sobredita decisão, acham-se as possibilidades de, para as verbas de natureza alimentícia, (i) penhorar bem de família (art. 3.º, inc. III, Lei n. 8.009/90), (ii) decretar a prisão civil (art. 528, § 3.º, do CPC) e (iii) estabelecer rito processual específico (arts. 528 a 533, ou 911 a 913, todos do CPC, c/c a Lei n. 5.478/68), entre outras que não são estendidas às que possuam apenas natureza alimentar (v.g., STJ, REsp n. 1.815.055/SP, Corte Especial, Rel. Nancy Andrighi, j. em 03.08.2020).

De qualquer forma, a nova apreciação tende a conferir maior acatamento à solução que vier, que, tratada em sede de recurso repetitivo, tornarão (ao menos em tese) menos frequentes decisões com entendimentos díspares por parte das instâncias ordinárias, considerando o disposto no art. 927, inc. III, do CPC.

Por fim, a despeito do julgamento realizado em 2020, interessou comentar o tema outra vez o fato de que aquele resultado se deu por apertada maioria (7x6) e sob ausência de um dos integrantes da Corte, detalhes que, talvez, indiquem insegurança quanto ao que virá. 

 

 


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