Evolução e atual aplicabilidade da teoria da distribuição dinâmica do ônus da prova
A teoria estática da distribuição do ônus da prova, inicialmente positivada no art. 333 do CPC de 1973, foi conveniente aos anseios e ideais do momento de sua criação. Influenciados pelos teóricos italianos Chiovenda e Carnelutti, os legisladores brasileiros entenderam por praticamente copiar os dispositivos existentes na legislação italiana e portuguesa, de modo que, no direito processual brasileiro, levando-se em consideração o interesse das partes, estruturou-se a regra pela qual ao autor cabe provar o fato constitutivo de seu direito, enquanto que ao réu cabe provar o fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor. Pode-se dizer, assim, que o legislador de 1973 pouco se preocupou com a efetivação do direito fundamental à prova, mantendo como absoluta regra sobre a qual decorrem inúmeras exceções.
Muita coisa mudou, desde então. Os processos eram menos complexos quando comparados aos da atualidade. A ideia que se tinha sobre direitos subjetivos era outra e nada se falava acerca de direitos difusos e da dificuldade – ou impossibilidade – de se observar a regra da distribuição estática em tais casos. Percebeu-se, então, “que, de algum modo, mudanças legislativas são insuficientes para se dar conta de tal demanda” e, ainda, que “aplicar a lei ao fato como se isso fosse algo aritmético, já não funciona mais”.[1]
Sobre a insuficiência da regra da distribuição estática do onus probandi para abarcar toda e qualquer situação, aduz Alexandre Freitas Câmara:
Este é texto normativo muito tradicional no direito processual civil brasileiro, mas que é claramente insuficiente para explicar todas as situações. É que de sua leitura ressalta a (falsa) impressão de que em um processo só poderiam ser discutidos quatro tipos de fato: constitutivo do direito, impeditivo do direito, modificativo do direito e extintivo do direito. Assim não é, porém.[2]
A necessidade de mudança foi confirmada com a promulgação da Constituição Federal de 1988 e com o fortalecimento da ideia de Estado Constitucional Democrático de Direito. O Estado, por meio da jurisdição, tem o dever de proteger os direitos fundamentais não somente por meio do processo, mas também durante o processo.[3]
Notava-se que, durante a instrução probatória, em algumas situações, era muito difícil à parte onerada realizar a produção da prova, caracterizada, muitas das vezes, como diabólica. Para solucionar a questão, foi desenvolvido, de início, um mecanismo que permitia a inversão do ônus da prova, em casos determinados, normalmente quando predominava a hipossuficiência de uma parte em relação à outra. O exemplo de inversão mais comum pode ser verificado no inciso VIII, do art. 6.º, do CDC. Outras hipóteses de inversão, além do mais, foram criadas pelo legislador e pela jurisprudência[4], reconhecendo que, em ocasiões específicas, atribuir o onus probandi ao autor significaria, na prática, julgar os pedidos precoce e injustamente em seu desfavor.[5]
Percebe-se, desse modo, que a inversão do ônus da prova foi concebida com o intuito de ampliar o material probatório de determinados casos, a fim de obter decisões mais justas. Ocorre que, na prática – em que pese a boa intenção contida no escopo da inversão do ônus da prova e as evidentes progressões na busca da efetiva tutela jurisdicional e do acesso à justiça, sobretudo no âmbito das relações consumeristas –, a inversão nada mais é do que a manutenção da distribuição estática, com a única diferença de que a parte originalmente encarregada da produção da prova dela se desincumbe, transferindo o ônus exclusivamente à parte contrária. Restavam mantidos, portanto, a universalização e o abstracionismo característicos do princípio estático, sendo esta a principal diferença da inversão prevista no CDC para a inovação da distribuição dinâmica trazida pelo CPC/2015.[6]
Com a finalidade de dar cabo à problemática do ônus da prova, foi desenvolvida a “teoria de las cargas probatórias dinâmicas” pelo argentino Jorge W. Peyrano, na década de 90[7], trazendo como fundamento central a ideia de que o ônus da prova deve ser atribuído àquele que tem chance de produzi-la mais facilmente, e não àquele que, por imposição legal, deve necessariamente produzi-la, apesar da dificuldade de fazê-lo.
De acordo com tal teoria, o próprio processo pressupõe um dinamismo, devendo todas as posições processuais, também, serem vistas de forma dinâmica, não fazendo mais sentido, na atualidade, que o ônus seja distribuído estaticamente, em toda e qualquer hipótese.
A teoria da distribuição dinâmica do ônus da prova carrega por base os princípios da efetividade da prestação jurisdicional, da veracidade, da boa-fé, da lealdade e da solidariedade, e defende a análise do caso concreto para, somente então, imputar-se o ônus da prova a determinada parte, escolhendo aquela que tem mais possibilidade de realizá-la.
A ideia concebida por Peyrano foi recepcionada com bons olhos tanto por doutrinadores, que defendiam sua positivação no ordenamento processual, quanto pelos tribunais, que, antes mesmo da previsão legal, passaram a adotar, de forma recorrente, o método dinâmico, sendo a possibilidade de dinamização finalmente incluída nos §§ 1.º e 2.º do art. 373, com a edição do CPC de 2015.
De tal forma, nos casos em que adotada a dinamização do ônus da prova, o processo deixa de ter como característica central a vontade das partes, que foi durante tanto tempo marca do processo liberal dispositivo, para buscar um processo cooperativo, tanto entre as próprias partes quanto entre o magistrado e as partes, sem que, todavia, haja prevalência de qualquer desses sujeitos.
Em suma, para que o método de distribuição dinâmica do ônus da prova obtenha êxito, pondo fim à antiga discussão sobre a melhor forma de distribuição e garantindo o efetivo acesso à justiça, necessária se faz a observância dos seguintes requisitos: a) análise do caso concreto para verificação de eventual desigualdade; b) análise das condições das partes em relação à produção das provas; e c) obediência ao princípio do contraditório e da motivação das decisões judiciais[8]. Tais pressupostos, porém, não são únicos, cabendo ao julgador estar atento às mudanças da sociedade, nunca fugindo da análise do caso concreto.
Em se tratando de aplicação prática, como se mencionou, os tribunais já vinham adotando de forma reiterada a distribuição dinâmica para determinados casos, em que pese a ausência de dispositivo legal expresso até a vigência do CPC atual[9]. Sobrevindo a norma do art. 373, § 1.º, a jurisprudência, agora amparada em dispositivo de lei, vem largamente utilizando da teoria das cargas probatórias dinâmicas em variadas situações, como nos casos de responsabilidade civil por erro médico[10], de ações coletivas de consumo[11] e de defesa dos interesses de condôminos[12].
A doutrina cita, também, outras hipóteses em que o ônus da prova pode ser distribuído de forma dinâmica, a exemplo das seguintes:
(...) a) lesões pré-natais: a prova de que a doença do recém-nascido deriva do acidente que a suma mãe sofreu quando em gestação, não pode ser dela exigida, para a procedência da ação ressarcitória; b) atividades perigosas ou de responsabilidade pelo perigo: tal hipótese não pode ser tratada como as outras, pois, guarda inúmeras peculiaridades, não podendo do autor se exigir a prova da causalidade entre a atividade e o dano; c) responsabilidade por violação de dever legal: de igual modo, ao autor não pode ser imposta prova do nexo entre a violação do dever legal e o dano sofrido.[13]
São incontáveis, na prática, os casos em que pode ser procedida a distribuição dinâmica, cabendo aqui a ressalva, contudo, de que a regra no Direito Processual Civil Brasileiro continua sendo a prevista no caput do artigo 373 do CPC. Cabe ao magistrado, amparado pelo intuito cooperativo que deve prevalecer entre as partes, na análise do caso concreto, ponderar qual dos métodos trará melhores soluções, na busca da efetiva prestação da tutela jurisdicional e do acesso à justiça.
[1] MEDINA, José Miguel Garcia. Direito processual Civil Moderno. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 69.
[2] CÂMARA, Alexandre Freitas. O Novo Processo Civil Brasileiro. São Paulo: Atlas, 2015, p. 230/231.
[3] MEDINA, José Miguel Garcia. Direito processual Civil Moderno. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 72.
[4] Menciona-se, aqui, v.g., a inversão do ônus da prova decorrente do princípio da precaução, em situações de danos ao meio ambiente, no sentido de que, não havendo certeza sobre o causador do dano ambiental, cabe ao suposto autor do dano o ônus de provar que adotou conduta precavida e que não ensejou riscos ao meio ambiente. A propósito, o enunciado da Súmula 618/STJ: “A inversão do ônus da prova aplica-se às ações de degradação ambiental”.
[5] LEONARDO, Rodrigo Xavier. Imposição e Inversão do Ônus da Prova. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 218.
[6] CABRAL, Antônio do Passo; CRAMER, Ronaldo. Comentários ao Novo Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 579.
[7] Cumpre aqui registrar que a teoria desenvolvida por Peyrano é exclusiva nos moldes por ele propostos, contudo, a ideia que a compõe já havia sido tratada por outros autores, quando se discutia a adoção da teoria estática do ônus da prova, a exemplo de Jeremy Bentham, que, em sua obra, já defendia a imputação do onus probandi à parte que o suportasse com menos dificuldades, após a análise do caso concreto.
[8] LOURENÇO, Haroldo. Teoria Dinâmica do Ônus da Prova no novo CPC. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo, Método, 2015, p. 140.
[9] STJ, AgReg no AREsp n. 216.315/RS. Segunda Turma. Relator: Min. Mauro Campbell Marques. Julgado em 23/10/2012, DJe 06/11/2012.
[10] STJ, AgInt no AREsp 1757143/DF, Rel. Ministra ASSUSETE MAGALHÃES, SEGUNDA TURMA, julgado em 01/03/2021, DJe 08/03/2021.
[11] STJ, REsp 1478173/RS, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 05/11/2019, DJe 11/09/2020.
[12] STJ, AgInt no AREsp 1293126/DF, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 10/12/2018, DJe 14/12/2018.
[13] LOURENÇO, Haroldo. Teoria Dinâmica do Ônus da Prova no novo CPC. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo, Método, 2015, p. 136.