Alteração do desenho institucional dos tribunais após relevância para REsp
Um professor pode ser uma benção ou uma maldição na vida de um aluno. Para minha sorte, em minha formação acadêmica sempre contei com grandes mestres. Um dessas bênçãos, sem dúvida alguma, foi o professor João Batista Lopes, que, dentre outras lições, me apresentou a obra de Paul Watzlawick sobre a pragmática da comunicação humana.[1] À época, chamou-me a atenção para a aplicação dessa teoria no estudo de problemas relacionados ao funcionamento das instituições jurídicas.[2]
Não é minha pretensão sintetizar, aqui, os axiomas dessa fascinante teoria, mas considero proveitoso destacar alguns de seus pontos. Eles podem explicar a dança que envolve o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça, e talvez possam também ajudar a entender senão a mudança da dança, ao menos a mudança de ritmo em que dançarão o STJ e os tribunais locais, a partir da implementação da relevância da questão federal como requisito para o recurso especial.
Voltando no tempo, recordo-me de quando o STF, há pouco mais de treze anos, decidiu que contra decisões de Turmas Recursais dos Juizados Especiais Cíveis que desrespeitassem a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça passaria a caber reclamação dirigida a esta corte.[3] O artigo 105, inciso III da Constituição não previu o cabimento de recurso especial contra decisões finais daquelas Turmas Recursais, não havendo semelhante restrição em relação ao cabimento de recurso extraordinário para o Supremo. Por paradoxal que pudesse parecer, em tese cabe recurso extraordinário contra decisões finais daqueles Juizados, mas não cabe recurso especial. Isso se justifica, consoante leciona Mancuso, em razão da importância que tem a norma constitucional: soaria inexplicável a ausência de remédio contra decisões contrárias à Constituição, mesmo que oriundas dos Juizados.[4] Que fazer, no entanto, diante de decisões das Turmas Recursais contrárias à jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça? O Supremo chegou a solução engenhosa: diante da ""inexistência de órgão uniformizador no âmbito dos juizados estaduais, circunstância que inviabiliza a aplicação da jurisprudência do STJ"", e do ""risco de manutenção de decisões divergentes quanto à interpretação da legislação federal, gerando insegurança jurídica e uma prestação jurisdicional incompleta, em decorrência da inexistência de outro meio eficaz para resolvê-la"", o STF deu novo sentido ao artigo 105, inciso I, alínea f da Constituição, ampliando o cabimento da reclamação.
Chamaram a atenção, à época, o teor das manifestações dos Ministros do Supremo, durante os debates. O ministro Marco Aurélio, por exemplo, destacou a necessidade de se adotar ""uma flexibilização maior no julgamento do extraordinário, em se tratando de impugnação a acórdão de turma recursal, porque não se tem o acesso ao Superior Tribunal de Justiça"". Com outras palavras, diante do não cabimento do recurso especial para o STJ, o Supremo, ao menos à época, tendia a ser mais condescendente com recursos extraordinários oriundos dos Juizados dos Estados.
Resgato esse passo, já distante no tempo — pois de lá para cá muito aconteceu e muita coisa mudou, na competência constitucional desses tribunais e na disciplina normativa desses recursos —, para observar que o modo como atua um dos tribunais superiores acaba interferindo na atuação do outro.[5] Isso nem sempre se apresenta de forma muito clara, e nem mesmo se pode esperar que os tribunais se manifestem a respeito, ainda que obiter dicta. Mas a observação da evolução da atuação desses dois tribunais de cúpula revela que, de algum modo, eles se influenciam reciprocamente.
Algo parecido sucedeu, embora trilhando caminho em sentido inverso, com a evolução do sentido que a jurisprudência do Supremo dá à questão federal constitucional reflexa, ou indireta, e a consequente ampliação do âmbito de atuação do Superior Tribunal de Justiça. Explica-se:
Muitas questões federais não são puramente constitucionais ou infraconstitucionais, mas são ""mistas"". Um acórdão proferido pelo tribunal local pode violar, a um só tempo, tanto um artigo da Constituição quanto um dispositivo do Código Civil, do Código Penal, ou do Código de Processo Civil. Em tais situações, a jurisprudência do Supremo é no sentido de que o recurso extraordinário somente é cabível se a ofensa à Constituição for direta, e não reflexa ou oblíqua. Tal orientação teve início há muitas décadas, à luz do texto constitucional anterior ao hoje vigente, para não se admitir recurso extraordinário trabalhista quando, para a solução da questão constitucional, se fizesse necessário definir o sentido de disposições normativas infraconstitucionais.[6] Como manifestação mais recente dessa orientação, pode-se citar, por exemplo, a tese fixada pelo Supremo em relação ao Tema 660, quando se reafirmou o entendimento de que a alegação de violação aos princípios constitucionais da legalidade, do devido processo legal, da ampla defesa, do contraditório, dos limites da coisa julgada ou da prestação jurisdicional, se necessária a análise de normas infraconstitucionais, consiste em violação apenas reflexa ou indireta à Constituição, motivo pelo qual o recurso extraordinário é incabível.[7]
Com essa maior restrição à admissibilidade do recurso extraordinário, o STJ, por ocasião da solução de questões federais infraconstitucionais, naturalmente passou a debruçar-se com mais desenvoltura sobre fundamentos constitucionais. Trata-se de postura inevitável, já que, para se interpretar e aplicar uma disposição infraconstitucional, mostra-se necessário dar-lhe sentido e alcance compatíveis com a Constituição. Não por acaso, julgados expressivos do STJ sobre temas sensíveis assentam-se em fundamentos constitucionais. Dentre exemplos recentes, pode-se recordar o julgamento proferido pelo Superior Tribunal de Justiça acerca da continuidade de cuidados assistenciais por operadora de plano de saúde ao usuário[8] e a decisão sobre a atuação de guarda municipal como força policial,[9] em que a solução alvitrada pelo STJ foi significativamente guiada por regras e princípios constitucionais. Mas essa postura torna-se mais intensa, à medida em que o Supremo restringe, de modo bastante exacerbado, os casos em que a questão constitucional é considerada direta, e não reflexa.
O que sucederá, a partir da implementação do requisito da relevância da questão federal infraconstitucional para o recurso especial? Qualquer resposta peremptória a essa questão é descabida, uma vez que ainda não se conhece a disciplina infraconstitucional e regimental a ser observada em relação a essa condição. Mas já é possível entrever que, com a aprovação do requisito, e à medida em que determinados temas de direito federal infraconstitucional passem a não chegar ao STJ, tais assuntos passarão a merecer o tratamento normativo dado tão somente pelo tribunal local. Daí vimos afirmando, há mais de dez anos, em sucessivos estudos, que tais temas podem vir a ser ""estadualizados"" (ou ""regionalizados"", se considerados os Tribunais Regionais Federais). Os resultados são agudos. ""Como consequência, por exemplo, uma determinada cláusula contratual poderá ser considerada válida em um estado da federação, mas não em outro, a depender do sentido que cada um dos tribunais estaduais dê ao artigo 51 do Código de Defesa do Consumidor"" foi exemplo que nos pareceu útil, num dos primeiros trabalhos que publicamos na presente revista eletrônica, ainda em março de 2012,[10] e ainda nos parece atual.
Ao fim e ao cabo, tudo dependerá da interação que se der entre o STJ e os tribunais locais. Quanto maior a restrição ao cabimento do recurso especial, mais os tribunais locais se sentirão à vontade para dar à lei federal um sentido próprio, em seu âmbito de atuação, ainda que distante do dado por outros tribunais locais. O direito federal poderá restar, com o passar do tempo, bastante fragmentado, e limites haverão de ser levados em consideração, para não se colocar em risco a unidade do direito nacional. De todo modo, a limitação do âmbito de atuação do STJ implicará o inevitável redimensionamento do papel desempenhado pelos tribunais locais.
[1] Cf. Paul Watzlawick et al. Pragmática da comunicação humana (18. ed. São Paulo: Cultrix, 2011).
[2] Venho aplicando a ideia de sistema interacional em muitos de meus escritos. Cf., p.ex., Constituição Federal Comentada (Ed. Revista dos Tribunais, 7.ed., 2022), comentário ao art. 5.º da CF.
[3] STF, RE 571572 ED, j. 26.08.2009.
[4] Rodolfo de Camargo Mancuso, Recurso extraordinário e recurso especial, 8. ed., 2003, p. 74-75. Hoje, prevalece a orientação de que, como regra, as questões constitucionais veiculadas em decisões finais oriundas dos Juizados estaduais não ostentam repercussão geral (STF, Tema 797, firmado no julgamento do Ag no RE 836.819 RG/SP, j. 19.03.2015).
[5] “Toda e qualquer parte do sistema está relacionada de tal modo com as demais partes que uma mudança numa delas provocará uma mudança em todas as partes e no sistema total. Isto é, um sistema comporta-se não como um simples conjunto de elementos independentes, mas como um todo coeso e inseparável” (Paul Watzlawick et al., ob. cit., p. 112).
[6] Cf., dentre os primeiros julgados que versaram sobre o tema: STF, RE 94.673/SP, j. 10.12.1982.
[7] STF, ARE 748371, j. 07.06.2013.
[8] Tema Repetitivo 1082, REsp 1842751/RS, j. 22.06.2022.
[9] REsp 1977119/SP, j. 16.08.2022.