A possibilidade de alegar a ocorrência de fato superveniente em sede recursal
Artigo publicado originariamente na revista Consultor Jurídico, em 28/04/2023: https://www.conjur.com.br/2023-abr-28/albiero-oliveira-alegar-fato-superveniente-sede-recursal
No decorrer da prática forense, durante o trâmite de recurso perante os Tribunais de Justiça estaduais, Tribunais Regionais Federais ou até mesmo perante os tribunais superiores, não é incomum que o contexto que permeia a lide venha a se alterar em razão da ocorrência de fato superveniente, que acaba por influenciar não só a realidade dos autos na instância originária, mas também reverberar na pretensão recursal propriamente dita, podendo conferir mais veracidade aos argumentos coligidos pela parte recorrente, ou, ainda, acarretar na perda do objeto do recurso.
Inobstante a notória relevância, o Recorrente, ao alegar no bojo de seu recurso a ocorrência do fato novo que influenciará no julgamento, não raras vezes, acaba por enfrentar óbices ao seu conhecimento e discussão perante o órgão colegiado, seja em razão de suposta inovação recursal, ou também por conta de violação ao duplo grau de jurisdição, eis que, por óbvio, o fato novo não foi objeto de análise pelo Juízo de origem.
Exemplo disso se extrai de recente caso julgado pelo TJ-PR (Tribunal de Justiça do Paraná), no qual a 14ª Câmara Cível, ao julgar o Agravo de Instrumento nº 0043002-33.2022.8.16.0000, deixou de conhecer fato novo alegado pelo Agravante durante o trâmite do recurso. O argumento utilizado pelo tribunal foi no sentido de que, quando proferida a decisão agravada, o juízo da origem tinha analisado os fatos e as provas constantes nos autos até o momento do julgamento, e a matéria devolvida à análise do Tribunal seria tão somente aquela abordada na decisão recorrida, sendo infactível, portanto, a análise de fato superveniente (v.g. TJ-PR, 14.ª Câmara Cível, 0043002-33.2022.8.16.0000, relator: desembargador Francisco Eduardo Gonzaga de Oliveira, j. 8/3/2023).
Todavia, analisando a matéria sob o espectro da legislação processual, nota-se que, em primeiro grau, por força do artigo 493, do CPC, o juiz deverá levar em conta o fato novo, seja a requerimento da parte ou de ofício, desde que a sua capacidade de influir no direito vindicado também acabará por imprimir efeitos no julgamento.
Já na via recursal, em interpretação similar ao dispositivo supracitado, tem-se que o artigo 1.014, do CPC aponta como possível a parte recorrente suscitar no bojo do recurso de apelação as questões de fato não propostas perante o Juízo da causa originária, desde que seja comprovada a possibilidade de não o fazer por motivo de força maior.
O relator, inclusive, diante da ocorrência de fato superveniente à decisão recorrida — ainda não examinado nos autos, portanto — deverá intimar as partes para que se manifestem antes do julgamento do recurso (artigo 933, do CPC). Para Daniel Amorim Assumpção Neves, em sua obra Novo Código de Processo Civil (3ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2016. E-book), ""a constatação do relator poderá ocorrer de ofício ou de forma provocada por qualquer uma das partes, hipótese em que o contraditório se aperfeiçoará com a intimação da parte contrária"".
Na mesma toada, para Pedro Miranda de Oliveira, em sua obra Agravo Interno: Do Julgamento Singular ao Julgamento Colegiado (2ª ed. São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2022, p.77-78), o artigo 933, do CPC, ""vem para contemplar não só o modelo cooperativo de processo civil atualmente adotado pelo ordenamento jurídico brasileiro, mas também o princípio da vedação à decisão não surpresa"".
Feitas tais considerações que refletem, sobretudo, a realidade da matéria sob a perspectiva do Código de Processo Civil, é possível concluir que os fatos supervenientes não só podem como devem ser considerados pelo órgão julgador no momento em que proferido o pronunciamento decisório, o que é aplicável tanto aos órgãos colegiados quanto ao juízo singular.
Em termos doutrinários, e aqui valendo-se das palavras de José Miguel Garcia Medina, em sua obra Código de Processo Civil Comentado (8ª ed. revista, atualizada e ampliada, São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022, p. 1249), ao referenciar o Recurso Especial nº 500.182/RJ, ""a solução proposta tem por escopo a economia processual, para que a tutela jurisdicional a ser entregue não seja uma mera resposta a formulações teóricas, sem qualquer relevo prático. Privilegia-se, assim, o estado atual em que se encontram as coisas, evitando-se provimento judicial de procedência quando já pereceu o direito do autor ou de improcedência quando o direito pleiteado na inicial, delineado na causa petendi narrada, é reforçado por fatos supervenientes"".
Referido posicionamento continua sendo replicado na jurisprudência da Corte Superior, eis que mantém seu entendimento no sentido de que é dever do julgador tomar em consideração os fatos supervenientes que influem no julgamento da lide, seja modificando ou extinguindo o direito alegado, cujo órgão julgador, se aos novos fatos não se atentar no momento em que entregue a tutela jurisdicional, correrá o risco de torná-la discrepante aos fatos revelados e, consequentemente, inapta à justa composição da lide (v.g. STJ, REsp. 1.637.628/ES, ministra Nancy Andrighi, 3ª, j. 4/12/2018).
Por assim dizer, embora nem sempre muito bem recepcionado pelos, não há qualquer impeditivo à análise do fato superveniente no bojo recursal. Além disso, levá-lo em conta no julgamento do recurso permite ao órgão julgador uma compreensão mais profunda e acertada de todo o contexto envolvido na questão em discussão, o que, sem dúvidas, contribui para uma solução mais justa e efetiva, escopo principal da função jurisdicional.