A participação de amicus curiae em casos que tramitam nos tribunais superiores e que possam gerar precedentes vinculantes.
José Miguel Garcia Medina
DOUTOR EM DIREITO, FOI INTEGRANTE DA COMISSÃO DE JURISTAS NOMEADA PELO SENADO PARA ELABORAÇÃO DO ANTEPROJETO QUE DEU ORIGEM AO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015
O Código de Processo Civil (CPC) de 2015 admite a participação de terceiros que não são parte no processo – como órgãos ou entidades especializadas e que tenham representatividade adequada – em casos que tramitam nos tribunais superiores e que possam gerar precedentes vinculantes. É o que ocorre em casos que a lei processual chama de “repetitivos”. Havendo centenas ou milhares de processos em trâmite no Brasil, pode ocorrer a seleção de um ou alguns como representativos da controvérsia para que, com base neles, o tribunal superior possa fixar uma tese a ser aplicada pelas outras cortes nos demais casos.
No julgamento do caso representativo, uma associação ou confederação, por exemplo, pode pedir para participar a fim de fornecer informações que possam influenciar a definição da tese vinculante. Por isso, essa pessoa é chamada de amicus curiae, expressão corriqueiramente traduzida para o português como “amigo da corte”.
Ocorre que essas entidades ou órgãos podem ter seu pedido de participação rejeitado pelo relator do processo que tramita no tribunal superior. Logo que o CPC de 2015 entrou em vigor, prevalecia no Superior Tribunal de Justiça (STJ) o entendimento de que o amicus curiae poderia recorrer contra essa decisão.
Na literatura jurídica, sempre defendi esse entendimento em obras nas quais comento o CPC. Essa orientação se baseia no texto do artigo 138 do Código, que expressamente dispõe que é irrecorrível apenas a decisão do relator que admite o “amigo da corte”; logo, a decisão que não o admite seria recorrível.
Esse entendimento, no entanto, posteriormente acabou sendo abandonado pelo STJ e, nos últimos dias, esse tribunal proferiu decisão sintomática a respeito (AgInt na PET no Recurso Especial 1.908.497- RN). No acórdão, a relatora do caso, ministra Assusete Magalhães, descreve a evolução da jurisprudência e da literatura jurídica a respeito, inclusive reconhecendo que admissão do recurso decorre de “interpretação literal” do artigo 138 do CPC. No entanto, a ministra informa que a jurisprudência do tribunal acabou se encaminhando em sentido oposto.
A relatora usou em decisão o julgado da Corte Especial do STJ, que por unanimidade, em 1.º/8/2018, no julgamento da Questão de Ordem no REsp 1.696.396/MT, afetado sob o rito dos recursos repetitivos, decidiu que “a leitura do art. 138 do CPC/15 não deixa dúvida de que a decisão unipessoal que verse sobre a admissibilidade do amicus curiae não é impugnável por agravo interno, seja porque o caput expressamente a coloca como uma decisão irrecorrível, seja porque o parágrafo 1.º expressamente diz que a intervenção não autoriza a interposição de recursos, ressalvada a oposição de embargos de declaração ou a interposição de recurso contra a decisão que julgar o Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas”.
Entre outros argumentos, a relatora, que foi seguida pelos demais ministros da Primeira Seção do STJ, defendeu que no caso concreto o interesse na presente intervenção é de natureza eminentemente jurídica – e não meramente institucional –, uma vez que as representadas serão direta e economicamente afetadas pela solução a ser adotada no presente feito. Tal circunstância, inclusive, é reconhecida pelas próprias requerentes.
A ministra também citou decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que ressaltou ser imprescindível a demonstração, pela entidade pretendente a colaborar com a corte, de que não está a defender interesse privado, mas, isto sim, relevante interesse público.
Embora reconheça que a jurisprudência, hoje, seja nesse sentido, continuo a defender o entendimento contrário, que é, inclusive, citada no julgamento mencionado.
A lei processual é clara no sentido de admitir recurso para que o órgão colegiado delibere sobre a admissibilidade de participação do “amigo da corte”. Além disso, a partição do amicus curiae pode aprimorar o diálogo entre os tribunais superiores e a sociedade, sobretudo em relação a temas complexos e de alto impacto na vida das pessoas, das empresas e dos próprios entes governamentais.
As decisões dos tribunais superiores que criam precedentes vinculantes atingem a vida de todos, e não apenas as daqueles que são partes no processo. Os amicus curiae podem permitir que o precedente vinculante leve em consideração fatores que as partes talvez não tenham condições de manifestar. Além disso, essa participação fortalece a função pública dos tribunais que estão na cúpula do Poder Judiciário, de gerar entendimentos que vão guiar o dia a dia da sociedade.
Texto publicado originalmente na coluna Espaço Aberto, do Estadão: https://www.estadao.com.br/opiniao/espaco-aberto/amicus-curiae/