A aprovação do Projeto de Lei n. 1.090/2022 pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ) da Câmara dos Deputados: Possíveis modificações em regra que versa sobre a compra de estabelecimentos empresariais

José Miguel Garcia Medina¹
Mariana Barsaglia Pimentel²
O estabelecimento (empresarial) é definido pelo Código Civil (art. 1.142, caput) como um “complexo de bens organizado, para exercício da empresa, por empresário, ou por sociedade empresária”, não se confundindo com “o local onde se exerce a atividade empresarial, que poderá ser físico ou virtual” (art. 1.142, § 1.º, do Código Civil).
De acordo com Silvio Venosa e Cláudia Rodrigues, “o estabelecimento é um complexo de bens funcionalmente destinados ao exercício de atividade econômica. Trata-se de organismo econômico utilizado pelo sujeito para explorar atividade econômica ou empresa, o que é mais comum. Em outras palavras, o estabelecimento constitui o aparato instrumental que o empresário deve dispor e organizar, para adequá-lo ao exercício da empresa”³.
O estabelecimento pode ser objeto de diversos negócios jurídicos (alienação, usufruto ou arrendamento, por exemplo), prevendo o artigo 1.146 do Código Civil que, em caso de venda, “o adquirente do estabelecimento responde pelo pagamento dos débitos anteriores à transferência, desde que regularmente contabilizados, continuando o devedor primitivo solidariamente obrigado pelo prazo de um ano, a partir, quanto aos créditos vencidos, da publicação, e, quanto aos outros, da data do vencimento”.
Isso significa que há uma responsabilidade legal por sucessão, de forma que o novo adquirente se torna responsável por débitos anteriores do estabelecimento (desde que contabilizados), nos termos legais. Esta norma tem sido aplicada pela jurisprudência, conforme se depreende de julgado ilustrativo do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo⁴.
A interpretação da regra prevista no art. 1.146 do Código Civil, contudo, tem sido objeto de debates. O Enunciado n. 59 da II Jornada de Direito Comercial do Conselho da Justiça Federal estabelece que: “A mera instalação de um novo estabelecimento, em lugar antes ocupado por outro, ainda que no mesmo ramo de atividade, não implica responsabilidade por sucessão prevista no art. 1.146 do CCB”⁵. Na justificativa do Enunciado consta a impossibilidade de responsabilização, por sucessão, daquele que se instala em lugar antes ocupado por outro quando inexiste negócio jurídico de alienação do estabelecimento⁶.
Este entendimento pode ser incorporado pela legislação brasileira. É possível que haja uma alteração na regra prevista no art. 1.146 do Código Civil. Conforme noticiado pela “Agência Câmara de Notícias” em 09.04.2024, a Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ) da Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei n. 1.090/2022, de autoria do Deputado Federal Rubens Pereira Júnior⁷. O PL propõe uma modificação no art. 1.146 do Código Civil, que passaria a contar com um parágrafo único, com a redação muitíssimo semelhante à do Enunciado n. 59 acima citado⁸.
Nos termos da justificativa do Projeto de Lei,
[...] a responsabilidade por sucessão do adquirente de estabelecimento empresarial deriva de dois aspectos: a existência de um contrato de trespasse e o próprio alcance desta responsabilidade, que está adstrito às obrigações contabilizadas do alienante.
Neste sentido, caso não haja um negócio jurídico que envolva a alienação do estabelecimento (celebração do contrato de trespasse), não pode ser cogitada a responsabilidade por sucessão tratada no artigo 1146 do Código Civil.
Nestes termos, não há que se falar responsabilidade por sucessão do adquirente que não pactuou um contrato de transferência da titularidade do estabelecimento. Esta situação é corriqueira no cotidiano empresarial, podendo ocorrer quando há cessão de quotas sociais de sociedade limitada ou na alienação de controle de sociedade anônima. Nestes casos, apesar de nova administração social, o estabelecimento empresarial não muda de titular, o que afasta a incidência do artigo 1.146 do Código Civil.
Assim, o projeto proposto delimita acertadamente a aplicação da norma civil em apreço, estabelecendo que esta não incidirá quando não houver transferência da titularidade do estabelecimento empresarial⁹.
A norma visa resguardar o novo ocupante do estabelecimento nas hipóteses em que há a mera instalação de um novo estabelecimento (em lugar antes ocupado por outro) e não a efetiva transferência da titularidade do estabelecimento anterior.
O Projeto de Lei n. 1.090/2022 deverá seguir ao Senado, salvo se houver recurso para votação pelo Plenário da Câmara dos Deputados¹⁰.
¹Advogado. Sócio fundador do escritório Medina Guimarães Advogados. Doutor e mestre em Direito das Relações Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP). E-mail:
²Advogada. Sócia diretora da área de Direito de Família e Planejamento Patrimonial e Sucessório do escritório Medina Guimarães Advogados. Doutora e mestra em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). E-mail:
³VENOSA, Sílvio de S.; RODRIGUES, Cláudia. Direito Empresarial. 12. ed. Rio de Janeiro: Atlas, 2024. E-book. p. 39. Disponível em: https://app.minhabiblioteca.com.br/reader/books/9786559776139/. Acesso em: 12 abr. 2025.
⁴“EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL – Duplicata mercantil - Inclusão de terceira empresa no polo passivo da execução, sob o argumento de que houve sucessão empresarial – Empresas que desempenham a mesma atividade e estão localizadas no mesmo endereço – Comprovação de que houve efetiva transferência do estabelecimento comercial, considerados seus bens corpóreos e incorpóreos - Documentos carreados aos autos que são capazes de demonstrar sucessão empresarial – Inteligência do artigo 1.146, do Código Civil - RECURSO NÃO PROVIDO”. (TJSP, AI n. 2233024-06.2020 .8.26.0000, Relator.: Renato Rangel Desinano, 11ª Câmara de Direito Privado, j. 31/01/2021)
⁵FEDERAL, Conselho da Justiça. II Jornada de Direito Comercial. Enunciado 59.Disponível em: https://www.cjf.jus.br/enunciados/enunciado/782. Acesso em 15 abr. 2025.
⁶FEDERAL, Conselho da Justiça. II Jornada de Direito Comercial. Enunciado 59.Disponível em: https://www.cjf.jus.br/enunciados/enunciado/782. Acesso em 15 abr. 2025.
⁷AGÊNCIA CÂMARA DE NOTÍCIAS. CCJ aprova nova regra de sucessão para compra de estabelecimento comercial. Disponível em: https://www.camara.leg.br/noticias/1149011-ccj-aprova-nova-regra-de-sucessao-para-compra-de-estabelecimento-comercial/. Acesso em: 12 abr. 2025.
⁸“A mera instalação de um novo estabelecimento, em lugar antes ocupado por outro, ainda que no mesmo ramo de atividade, não implica responsabilidade por sucessão prevista no caput deste artigo”. (BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei n. 1.090/2022. Acrescenta parágrafo único ao artigo 1.146 da Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002, para tratar da responsabilidade por sucessão do adquirente de estabelecimento empresarial. Brasília: Câmara dos Deputados, 2022. Disponível em: Https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2162838&filename=PL%201090/2022. Acesso em: 12 abr. 2025).
⁹BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei n. 1.090/2022. Acrescenta parágrafo único ao artigo 1.146 da Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002, para tratar da responsabilidade por sucessão do adquirente de estabelecimento empresarial. Brasília: Câmara dos Deputados, 2022. Disponível em: Https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2162838&filename=PL%201090/2022. Acesso em: 12 abr. 2025.
¹⁰AGÊNCIA CÂMARA DE NOTÍCIAS. CCJ aprova nova regra de sucessão para compra de estabelecimento comercial. Disponível em: https://www.camara.leg.br/noticias/1149011-ccj-aprova-nova-regra-de-sucessao-para-compra-de-estabelecimento-comercial/. Acesso em: 12 abr. 2025.