Indução ao consumo e os danos aos direitos da personalidade do ciberconsumidor
1 INTRODUÇÃO
Ser indivíduo participante de uma coletividade faz com que o consumo seja algo mais recorrente do que o realmente necessário, sobretudo se considerados os contornos da sociedade pós-moderna na era digital. Desde o início do século XXI, o comércio já investia em plataformas digitais de venda, mas foi com a pandemia de COVID-19 que o consumo digital se tornou ainda mais recorrente.
Não bastasse a necessidade inerente ao ser humano de consumir algo, induzindo-o a acessar o mundo digital, o comércio eletrônico (E-commerce) também faz uso de instrumentos persuasivos para convencer o usuário de que realmente precisa adquirir determinado produto ou serviço e permanecer consumindo. Por meio de tais mecanismos, como cookies e algoritmos, o comércio tem um certo grau de controle sobre a vontade do consumidor.
A pesquisa tem por objetivo geral esclarecer se os mecanismos veiculados pelo marketing para induzir o consumo viola direitos da personalidade. Os objetivos específicos são estudar a evolução do consumo para o meio digital; os mecanismos utilizados pelo comércio eletrônico para alavancar e direcionar o consumo; e aferir se as normas jurídicas acompanharam esse desenvolvimento.
O problema de pesquisa está assim formulado: os instrumentos utilizados pelo marketing e comércio digital para induzir o consumo podem violar direitos da personalidade?
O estudo considera a hipótese de que os direitos da personalidade são violados quando a vontade de consumir for manipulada e não um ato de livre escolha. Muito embora o consumidor tenha a liberdade de escolher entre adquirir ou não algo na internet, o caminho de acesso a determinado site de compra, muitas vezes, é manipulado pelo comércio digital. A indução ao consumismo, embora aceito involuntariamente como algo corriqueiro, não deveria mais fazer parte da rotina do consumidor de uma forma tão invasiva.
Para a realização do estudo, utilizou-se o método dedutivo, realizando a busca de informações em livros, artigos científicos, legislações e demais documentos aptos ao desenvolvimento da pesquisa.
O trabalho está dividido em três partes. A primeira traz os contornos dos direitos do consumidor e a migração das relações de consumo para o espaço virtual. Ademais, traz a relação de complementariedade de normas jurídicas para a proteção do consumidor.
A segunda estuda os mecanismos de indução ao consumismo, como cookies e algoritmos. Evidencia-se que os dados do consumidor são o fomento do mercado para direcionar a publicidade.
Por fim, dispõe sobre os impactos nos direitos da personalidade causados pelo consumismo induzido, bem como a ideia de que o consumidor, enquanto busca a facilidade de atingir seus objetivos de consumo, abre mão de direitos.
A pesquisa conclui pela impossibilidade de proteção do ciberconsumidor de forma integral, ainda que existam normas aplicáveis, como o Código de Defesa do Consumidor e o Código Civil. Quando se trata do consumidor no meio digital, mostra-se necessária a criação de norma específica que verse exclusivamente sobre o tema.
2 CONTORNOS DOS DIREITOS DO CONSUMIDOR E A MIGRAÇÃO DAS RELAÇÕES DE CONSUMO PARA O ESPAÇO VIRTUAL
Durante muito tempo, mais especificamente até 1990, as relações de consumo permaneceram regidas pelo Código Civil e outras normas pertinentes, sem que houvesse diretriz específica que evidenciasse o consumidor como o ponto central e vulnerável da relação de consumo.
Foi sobretudo na segunda metade do século XX, que o verdadeiro movimento consumerista teve início. Com o aumento da demanda e, consequentemente, da oferta, em razão do crescimento populacional nas metrópoles, a indústria otimizou a produção para vender mais. Passou-se, então, a pensar num modelo capaz de entregar mais produtos e serviços para um maior número de pessoas.
O aumento da produção e do mercado manifestou a desigualdade de vários modos. Seja originária de desproporção da capacidade econômica das partes, ou até mesmo da ausência de acesso e compreensão das informações sobre os aspectos da relação jurídica em que o indivíduo participava. Essa desigualdade assinalou o fenômeno da vulnerabilidade dos sujeitos compreendidos por consumidores. O desenvolvimento da sociedade do consumo despertou a necessidade de que fosse elaborado um conjunto de normas específicas que protegesse integralmente o consumidor.
Foi necessário rever os critérios de aplicação da responsabilidade ao fornecedor, de modo que o consumidor se tornasse mais protegido. O critério da presença de culpa previsto no direito civil foi relativamente deixado de lado. Nesse contexto, adotou-se o critério do risco como fundamento para imputação de uma responsabilidade objetiva ao fornecedor.
Ainda que se diga que o direito civil tenha sido deixado de lado, não parece certo falar em sua exclusão total. Na verdade, o que passa a existir entre o direito do consumidor e o direito civil é uma relação de complementaridade (MIRAGEM, 2016). Aplica-se entre as normas o diálogo das fontes, segundo o qual o ordenamento jurídico deve ser interpretado de forma unitária, não excluindo uma norma jurídica no caso de aplicação de outra (MARQUES et al., 2006).
Frente ao alargamento populacional, sobretudo com o movimento consumerista, o Estado, no dever de promover a defesa do direito do consumidor por previsão constitucional (BRASIL, 1988, art. 5.º, XXXII da CF), teve que inovar para instituir norma específica que elencasse os direitos do consumidor.
Ao elaborar o Código de Defesa do Consumidor (Lei n. 8.078/90), o legislador teve como premissa a vulnerabilidade do consumidor e, em razão desse desamparo, este deve ser o destinatário de maior proteção jurídica. Nas palavras de Rizzatto Nunes (2018, p. 43), “uma lei de proteção ao consumidor pressupõe entender a sociedade a que nós pertencemos”. Nesse sentido, o ser humano presencia uma sociedade em que o consumo deixou de ser algo para suprir as necessidades de subsistência humana para se tornar algo a preencher lacunas de demandas fictícias, subjetivamente impostas. É essa realidade que a proteção ao direito do consumidor deve se adaptar.
Lawand (2003, p. 18) pontifica que os contratos devem acompanhar as tendências que surgem na vida em sociedade, em especial, as novas tecnologias:
[...] a tipologia contratual vem sofrendo atualizações constantes e evoluindo no sentido de acompanhar as novas tecnologias que vêm surgindo. Os contratos nascem das exigências cotidianas, especializando-se de acordo com as tendências pragmáticas, estão relacionados com a vida em sociedade, que diante de sua dinamicidade transforma-se frente às novas realidades sejam elas econômicas ou políticas.
A relação jurídica de consumo é uma espécie de contrato celebrado entre consumidor e fornecedor, de modo que o primeiro adquire a obrigação de pagar o preço, enquanto o segundo assume a obrigação de entregar o serviço ou produto contratado pelo consumidor. Os contratos, no meio digital, seguem a mesma premissa.
O e-commerce, embora tenha surgido em meados de 1970 com as transações Electronic Data Interchange - EDI e Electronic Funds Transfer - EFT pelo setor bancário, teve uma expansão abrupta em 2020. A pandemia ocasionada pelo Coronavírus forçou a população a se manter em casa à mercê de aparelhos tecnológicos, crentes que esses seriam o melhor meio para permanecer conectado ao mundo externo. Por consectário, enquanto o acesso a lojas físicas estava limitado, foi necessário que o comércio se adaptasse para fazer com que o consumidor adquirisse produtos e serviços sem sair do conforto de casa.
Nos Estados Unidos, o comércio eletrônico em 2020 expandiu em 32,4%, totalizando 794,5 bilhões de dólares. Já no Brasil, o faturamento aumentou 50%. Segundo um levantamento Ebit/Nielsen, o pico de compras online aconteceu entre abril e junho, durante o auge do isolamento social na maioria das cidades brasileiras (MARTUCCI, 2021). Essa análise deixa claro que o consumidor não só migrou as compras do espaço físico para o virtual, mas também que passou a consumir mais.
Daniel Galindo (2012) traz alguns aspectos que diferenciam o consumidor tradicional do ciberconsumidor:
O ciberconsumidor diferencia-se do consumidor tradicional ou ainda do consumidor centauro, definido por Yoram Wind (2003) como um consumidor hibrido, pois transita entre o comportamento tradicional (off-line) e o comportamento ciber (online), exatamente em suas práticas de acesso e relacionamentos mediados por tecnologias e próteses que viabilizam o seu envolvimento high tech, imprescindível nas relações de consumo e de trocas com as organizações, certamente trata-se de um cidadão de Matrix.
McCUNE (2000) assevera que a internet mudou a relação dos fabricantes com o consumidor final, eliminando, em algumas situações, os intermediários (lojas de varejo), agentes de vendas e distribuidores. Com isso, entendem que podem vender diretamente ao consumidor final.
Em que pese existência da distinção entre o conceito de consumidor tradicional e ciberconsumidor, não há óbice para que a norma jurídica existente aplicável ao consumidor tradicional, em especial o Código de Defesa do Consumidor, seja também aplicado ao ciberconsumidor. Essa assertiva, contudo, não descarta a possibilidade de que um novo regramento jurídico, ainda mais específico e que garanta maior proteção, seja criado com enfoque no meio virtual.
Não se deve ignorar, no entanto, as dificuldades as dificuldades que existem para regular as relações intersubjetivas no ciberespaço (FACHIN, 2021), especialmente no que tange às relações de consumo. Essas dificuldades, porém, não afastam a necessidade de se estabelecer um certo grau de regulação das relações de consumo.
Para se reinventar e manter a roda do consumo girando, o comércio fez e ainda faz o uso de mecanismos que coletam dados dos clientes, como cookies e algoritmos, no intuito de traçar um perfil de consumo e manter o relacionamento “empresa x consumidor” de forma continuada. Embora seja algo aparentemente vantajoso, registrar as preferências do usuário não tem apenas pontos positivos.
3 COOKIES E ALGORITMOS COMO MECANISMOS DE INDUÇÃO AO CONSUMISMO
É muito comum pesquisar sobre determinado produto em alguma plataforma e, na sequência, aparecerem na tela do computador inúmeros anúncios sobre o mesmo item, ou similares, em redes sociais ou em outros sites visitados posteriormente. Isso ocorre porque os cookies de publicidade foram aceitos pelo usuário quando adentrou no site e, mesmo sem checar, aceitou as preferências sugeridas pelo próprio site.
Nesse contexto, algo que chama a atenção é que o pop-up que serviria - ou deveria servir - para coletar a autorização do usuário sobre o uso de determinados cookies. Mas, na maioria das vezes, está localizado estrategicamente em partes do site que tornam impossível a navegação e identificação do conteúdo. Isso porque eles ficam alocados de forma a ocultar o assunto que o usuário procura, assim é necessário aceitar ou recusar as preferências para que aquele pop-up deixe de existir e atrapalhar a visualização do conteúdo.
Vale ressaltar, todavia, que, para Bauer (1966), o alvo das agências de publicidade não é um ser indefeso. O consumidor sabe o que quer e somente se deixa persuadir quando lhe convém. Dentro dessa perspectiva, tentar convencê-lo através de “vantagens psicológicas” é legítimo. De acordo com o autor, não se trata de manipular os consumidores, mas de oferecer-lhes aquilo que desejam e que não necessariamente se limita a elementos estritamente materiais. A linha de pensamento de Bauer se distingue do momento atual vivenciado em um imbróglio digital.
Kotler (2012), por sua vez, apresenta um modelo que demonstra os fatores psicodinâmicos internos e externos que atuam sobre o consumidor, tais como fatores culturais, sociais, pessoais e psicológicos. Uma necessidade passa a ser um motivo quando alcança um nível de intensidade suficiente para levar uma pessoa a agir. Três das mais conhecidas teorias sobre a motivação humana — as de Sigmund Freud, Abraham Maslow e Frederick Herzberg — trazem diferentes implicações para a análise do consumidor e a estratégia de marketing.
Sigmund Freud, segundo a interpretação de Kotler (2012), concluiu que as forças psicológicas que formam o comportamento dos indivíduos são basicamente inconscientes e que ninguém chega a entender por completo as próprias motivações. Abraham Maslow (1954) depreendeu que as pessoas tentam satisfazer as mais importantes em primeiro lugar, e depois vão em busca da satisfação da próxima necessidade.
Frederick Herzberg (1966) desenvolveu a teoria de dois fatores, que distingue os “insatisfatores” (fatores que causam insatisfação) e os “satisfatores” (fatores que causam satisfação). Em outras palavras, um manual de instruções de má qualidade não teria utilidade nenhuma, então seria um insatisfator, enquanto que o satisfator seria, no contexto do presente estudo, a publicidade direcionada.
Os indivíduos do século XXI, em sua maioria, tendem a escolher o que é mais confortável e exige-lhes menos esforço para atingi um objetivo, especialmente quando se fala em comprar. É muito mais conveniente fazer o pedido de alguma refeição por aplicativos de delivery do que sair para jantar em algum restaurante. Ocorre que, ao longo de diversos pedidos, as preferências por determinados estabelecimentos ficam salvas nos apps e podem ser utilizadas para direcionar as próximas compras.
Além disso, outro meio de controle é a coleta de informações ao longo do acesso a determinadas páginas da internet por meio dos cookies, que podem ser definidos como pequenos arquivos baseados em textos fornecidos ao usuário por um site visitado, que ajuda a identificá-lo para essa página acessada. Também é usado para manter as informações de estado conforme o usuário navega por diferentes páginas em um site ou retorna a ele posteriormente. Para Xavier Pacheco (2005, p. 825), os cookies são textos colocados no navegador do usuário.
Vale ressaltar que, embora ainda seja permitido o uso de cookies, é necessário que o website disponha de forma expressa quais tipos de cookies utilizam, especialmente os de publicidade e, ainda, faculte ao internauta a opção de aceitar ou rejeitar o uso.
Não parece adequado lançar uma informação genérica como a de que “ao clicar em ‘Aceitar todos os cookies’, o usuário concorda com o armazenamento de cookies no seu dispositivo para melhorar a navegação no site, analisar a utilização do site e ajudar nas nossas iniciativas de marketing”. Em casos assim, deve-se disponibilizar ao internauta a opção de rejeitar tal armazenamento ou a possibilidade de analisar as opções.
É importante salientar que as informações genéricas disponibilizadas pelo site fazem com que o usuário aceite o direcionamento de marketing sem mesmo se atentar ao que de fato aceitou. Assim, uma navegação diária em sítios eletrônicos que deveria ser algo acessível, simples e prazeroso, torna-se algo estressante em razão da quantidade colossal de anúncios direcionados que surgem na tela, tornando muitas vezes o uso da internet algo desagradável.
O espaço virtual e as redes sociais proporcionam maior sintonia do ciberconsumidor com o mercado, facilitando o contato entre eles enquanto buscam estar constantemente conectados e produzindo informação. Essa facilidade, no entanto, nem sempre deve ser vista com bons olhos. Nem toda evolução é positiva. Nem toda tecnologia é confiável. Esta não é dotada de autonomia e pode implicar em erros e, por consectário, em danos ao usuário.
O uso de algoritmos pelo mercado, em alguns casos, pode incorrer na discriminação do consumidor. É o caso da discriminação geográfica ocasionada pelo geopricing e pelo geoblocking. Isto significa que a plataforma digital identifica a origem geográfica do consumidor e determina o preço e a oferta do produto a partir da informação obtida através dos cookies, a qual é utilizada pelo algoritmo para definir um valor mais alto ou bloquear a oferta para determinado consumidor (FORTES, 2018).
Não se pode falar em algoritmos sem mencionar, ainda que brevemente, a Inteligência Artificial (IA). Ela é uma categoria ampla que inclui subáreas como machine learning, deep learning e Natural Language Processing ou NLP – Processamento de linguagem natural (COUTINHO, 2020); e tem como matéria prima os algoritmos, ou seja, os dados dos usuários.
A IA teve seus primeiros passos na década de 1940 com a eclosão da Segunda Guerra Mundial, principalmente visando ao desenvolvimento de tecnologias bélicas e armamentos. Um dos responsáveis pelo surgimento da IA foi Alan Turing ao criar o primeiro computador operacional a partir de peças telefônicas, chamado Enigma, com o objetivo de decifrar mensagens dos alemães, que lideravam o conflito (HODGES, 2014).
Pode se considerar que a inteligência artificial atingiu um marco histórico em 1997, com a vitória do computador Deep Blue sobre o até então campeão mundial de xadrez
Garry Kasparov (IBM, 2019). A IA foi, sem dúvida alguma, um marco no início de uma revolução tecnológica em que o ser humano passou a ser desconfiado por sua própria criação: as máquinas.
Ao longo dos anos, pequenos inventos eram preparados de modo a tornar a rotina das pessoas muito mais leves e eficientes. O que não se esperava eram as infinitas possibilidades que a revolução da IA, ainda que não finalizada, proporcionaria, e seus impactos na rotina do ser humano, principalmente, do consumidor moderno. Vale ressaltar que, sendo aplicada ao presente estudo, especialmente no que se refere ao processo de persuasão sutil do consumidor, a IA auxilia na criação de uma “individualização algorítmica”. Assim, são analisados dados armazenados para a criação de um perfil padronizado.
Após atingir determinado padrão de consumo cruzando grande número de dados coletados, o mercado usa a publicidade para direcionar anúncios e conteúdos para o consumidor, induzindo-o a crer que aquele produto ou serviço é realmente necessário naquele momento, como a promoção de uma refeição em determinado restaurante que é próximo ao trabalho e “coincidentemente” seu prato preferido. O falso sentimento de necessidade e prazer em adquirir a comida preferida por um valor supostamente mais atraente – relembre-se, completamente manipulado – remete à conclusão de que o mercado tem grande poder sobre a vontade do consumidor. Via de consequência, o consumidor pode ser visto em estado de hipervulnerabilidade perante o mercado virtual.
Essa hipervulnerabilidade diz respeito ao fato de que o ciberconsumidor, embora faça o uso de tecnologia para acessar produtos e serviços, é um ser humano detentor de direitos e personalidade. Ao equipará-lo ao fornecedor, em especial no meio eletrônico, o qual não se sabe se é ou não um ente dotado de personalidade, se está diante, muitas vezes, de uma relação desequilibrada que pode acarretar danos ao consumidor, mais especificamente na violação de direitos da personalidade.
4 A ESTRATÉGIA DE INDUZIR AO CONSUMO E SEUS IMPACTOS NOS DIREITOS DA PERSONALIDADE
Em princípio, deve-se reconhecer que consumir pode ser percebido como um ato para suprir determinadas necessidades de sobrevivência e convivência na sociedade, como alimentação, vestuário e moradia. Todavia, há tempos o consumo deixou de ser apenas o atendimento às necessidades básicas de sobrevivência para se tornar um preenchimento de desejos. Nesse item, será analisado como o consumo pode ser desenfreadamente manipulado pelo marketing, unicamente para suprir os desejos e não mais as necessidades do ser humano.
Há diversas teorias que esmiúçam o comportamento do consumidor, dentre elas, as mais importantes são a teoria econômica e a teoria behavorista. A teoria econômica dispõe que toda compra envolve uma escolha do consumidor e este, por sua vez, tenta extrair o máximo de retorno possível dos recursos gastos (SIMON, 1955). Em outras palavras, o que se retira da compra equivale à sua utilidade para o comprador e não ao valor do objeto.
Para Samir Alves Daura (2018), a obtenção em nível máximo da utilidade decorreria da habilidade do consumidor em se organizar e “estabelecer escolhas apropriadas ao seu próprio interesse, de acordo com uma capacidade computacional garantidora da melhor tomada de decisão, dentre todas as alternativas existentes”. Desse modo, enquanto a teoria econômica trata do consumidor racional, a teoria behaviorista substitui o homem racional por um ser moldado pelo ambiente por intervenção de estímulos, recompensas e punições (WATSON, 1971). Estes são propiciados pelo meio e constroem a organização do comportamento do usuário, independentemente de qualquer processo interno, racional ou não.
Longe de avaliar sistematicamente as opções que lhe são oferecidas, o consumidor apenas aprende, como um animal condicionado, a responder, favoravelmente ou não, a determinados estímulos. Seu comportamento é governado por fatores que escapam ao seu controle; que podem ser identificados e, eventualmente, manipulados por cientistas (CHAUVEL, 1999).
A utilidade do produto ou serviço deixou de bastar, abrindo espaço para que a satisfação não só das necessidades, mas também dos desejos seja algo maximizado pelos consumidores (BENNETT; KASSARJIAN, 1975, p.24). Passa-se a viver em uma sociedade de controle em que o convívio social é reduzido, e a maior parcela do tempo é gasta consumindo.
Quando se fala em consumo no meio virtual, não se limita a compras específicas no e-commerce. Fala-se, principalmente, do consumidor bystander, que não necessariamente adquire diretamente um produto, mas trafega na rede de forma aparentemente gratuita e faz uso do que é oferecido pela mídia, como é o exemplo das redes sociais.
Essa manipulação da autonomia do consumidor no ambiente das novas tecnologias, com constante violação da sua privacidade, pode elevar o consumidor digital – aquele que “concorda” com apenas um click com as políticas de privacidade das plataformas, sites e aplicativos digitais – à condição de consumidor hipervulnerável (VERBICARO, 2020).
Não se sabe até que ponto o ciberconsumidor está protegido. Sabe-se, contudo, que o limite se identifica quando os padrões ético-constitucionais de convivência de mercado de consumo são violados ou, ainda, quando contraria o próprio sistema difuso de normas, legais e regulamentares, de proteção do consumidor. Nesse contexto, potencializam-se as possibilidades de violação de direitos da personalidade.
Os direitos da personalidade, no entendimento de Carlos Alberto Bittar (2015, p. 37), são direitos reconhecidos à pessoa humana, tomada em si mesma e em suas projeções na sociedade, protegidos no ordenamento jurídico exatamente para a defesa de valores inatos ao homem, como a vida, a higidez física, a intimidade, o segredo, o respeito, a honra e a intelectualidade.
Muitos desses direitos estão previstos Constituição Federal. São eles: a liberdade de expressão (art. 5, inciso IX); a honra, a intimidade, a vida privada e a imagem das pessoas (art. 5, inciso X); a inviolabilidade do domicílio (art. 5, inciso XI); e a inviolabilidade de correspondência (art. 5, inciso XII). A violação de qualquer desses direitos enseja o dever de indenizar por dano material, moral ou à imagem. Vale destacar que são abusivas as práticas que atentarem contra a dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III, da CF).
Nessa perspectiva, o Código Civil oferece diretrizes jurídicas mais específicas para solucionar questões práticas envolvendo direitos da personalidade. Ele estabelece que tais direitos são intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária (art. 11). Assim, o Código protege o direito à vida (art. 15); o direito à integridade do corpo (arts. 13 e 14); o direito ao nome (arts. 16 e 18), incluindo a proteção do pseudônimo (art. 19); o direito à honra e à imagem (arts. 17 e 20); e o direito à vida privada (art. 21).
A revolução consumista líquido-moderna, nas palavras de Bauman (2008, p. 59), fez com que as pessoas se tornassem aparentemente mais felizes do que as pessoas que fizeram parte da sociedade sólido-moderna ou era pré-moderna. Não é plausível adentrar no assunto acerca da modernidade líquida sem mencionar a arquimetáfora utilizada por Michel Foucault (1987). O Panóptico de Jeremy Bentham era uma torre localizada no centro de prisões em que os presos eram observados por alguém que se encontrava na torre, mas os presos não faziam ideia de quem os estava observando e se realmente estavam sendo observados.
É possível aplicar a intenção do Panóptico como uma analogia à vigilância atual ocasionada pela tecnologia. O mercado é como se fosse o vigilante e os presos seriam os consumidores. A vigilância perpétua é necessária para a aplicação da disciplina, assim como o registro contínuo de cada indivíduo, de modo que essas informações sejam enviadas obedecendo a uma hierarquia.
Segundo Bauman (2008, p. 79), ""ser membro da sociedade de consumidores é uma tarefa assustadora, um esforço interminável e difícil”. Há certo medo do indivíduo em não se adequar. O mercado de consumo, então, aufere vantagem desse medo para produzir bens de consumo que prometem auxiliar na confiança do consumidor para enfrentar esse desafio de adequação.
Na era atual das redes sociais, está o intercâmbio de informações pessoais. Os usuários ficam felizes por revelarem detalhes íntimos de suas vidas pessoais e por compartilharem fotografias. Esse compartilhamento se mostra preocupante, visto que, por uma necessidade de inclusão na sociedade, os consumidores abrem mão de direitos da personalidade. Nesse sentido, o poder de decisão do consumidor está evidentemente afetado pela mídia manipuladora. Muito embora ainda tenha a liberdade de escolher, o caminho que o consumidor percorre até chegar ao fim da compra não é por livre-arbítrio. Os anúncios de determinado produto que aparecem na tela durante a navegação em determinado site, de certo modo, é traçado de forma manipuladora para induzir o ato de consumir.
Niklas Luhmann (2005, p. 83) assevera sobre a manipulação pela publicidade:
a publicidade tenta manipular, ela trabalha de forma pouco sincera e pressupõe que isso seja um pressuposto. Ela assume, por assim dizer, o pecado mortal dos meios de comunicação - como se dessa maneira todos os demais programas pudessem ser salvos. Talvez seja esse o motivo pelo qual a publicidade jogue com cartas abertas.
O consumo tornou-se não só importante, mas o verdadeiro propósito da existência humana (BAUMAN, 2008, p. 38-39). “Ter” mais do que “ser” se tornou a ambição de uma grande maioria das pessoas que se satisfaz mediante o consumo (SILVA, 2000, p. 266). O comportamento do consumidor, sobretudo do ciberconsumidor é sutilmente manipulado, ainda que não se dê conta disso.
De certo modo, há muito proveito por ambas as partes na relação de consumo, seja pelo consumidor ou pelo fornecedor. Entretanto, o desequilíbrio informacional, bem como os objetivos distintos com o uso da tecnologia, remete ao maior número de vantagens ao mercado do que ao ciberconsumidor, embora este último acredite que é ele quem aufere maior proveito com inúmeras facilidades do consumo virtual.
5 CONCLUSÃO
Fazer parte da sociedade pós-moderna, imersa no mundo digital, traz facilidades incalculáveis. Em contrapartida, esse preço pode ser mais caro do que se pode ter ideia. Seria equívoco acreditar que tais facilidades integrariam o cotidiano das pessoas sem nenhuma compensação ou consequência.
A quarentena ocasionada pela recente pandemia expandiu o acesso à internet e à tecnologia. Por consectário, enquanto se via no conforto de sua casa, com acesso a mecanismos de compra com apenas alguns “clicks”, o consumidor rendeu-se aos encantos do consumo virtual por acreditar que diversas facilidades lhe seriam disponibilizadas sem custo algum.
O ser humano passou a viver em uma sociedade na qual as necessidades básicas não são mais a única justificativa para o consumo. Suprir desejos e necessidades fictícias impostas pela própria sociedade do consumo passa a ser a base para o consumo. É a essa realidade que a proteção ao direito do consumidor deve se adaptar.
Com o intuito de facilitar e agilizar a rotina das pessoas, ao longo dos anos, os estudos na área de tecnologia se aperfeiçoaram. O que não se esperava eram as infinitas possibilidades que a revolução da inteligência artificial proporcionaria, bem como os seus impactos na rotina do ser humano, principalmente, do consumidor moderno.
A inteligência artificial, alimentada por algoritmos, auxilia na coleta e análise de dados armazenados para a criação de um perfil padronizado do ciberconsumidor. Atingido determinado padrão de consumo, a publicidade é direcionada de modo a induzir o consumidor a acreditar que precisa adquirir determinado produto para fazer parte do desenvolvimento da sociedade e se sentir acolhido pelos demais integrantes da coletividade.
Embora no ordenamento jurídico brasileiro existam normas aplicáveis ao consumo virtual, não se sabe com certo grau de precisão até qual ponto o ciberconsumidor está protegido. O que se sabe é que há um limite que não pode ser ignorado e que traça uma linha entre os padrões ético-constitucionais de convivência de mercado de consumo e a proteção do consumidor.
Estudar as relações de consumo na sociedade atual, principalmente no meio virtual, traz à tona a ideia de que embora o comércio faça o uso de mecanismos indutores ao consumismo e que essa suposta manipulação possa violar direitos na personalidade, na verdade, é o próprio consumidor quem muitas vezes abre mão de tais direitos na ilusão de se sentir incluído em uma coletividade de falsos padrões.
O ciberconsumidor, imerso no mundo virtual e de consumo, na busca de satisfazer desejos travestidos de necessidades, esquece que detém direitos a serem resguardados enquanto ser humano, cedendo ao mercado o poder de manipulá-lo por meio da tecnologia, especialmente por algoritmos.
É necessário, portanto, equilibrar a relação de consumo não só no meio tradicional, mas também no meio digital, sobretudo se considerado que tal relação é cada vez mais recorrente, e o ciberconsumidor está à mercê de normas não tão específicas para sua proteção que asseguram minimamente seus direitos, especialmente os diretos da personalidade.
REFERÊNCIAS
BAUER, R. Hidden Persuaders? In: BRITT, S. H., Consumer Behavior in Theory and in Action. New Tork: John Wiley & Sons, inc., 1966, p. 6-8.
BAUMAN, Z. Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadorias. Tradução: Carlos A. M. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.
BENNETT, P. D.; KASSARJIAN, H. H. O Comportamento do Consumidor. São Paulo: Atlas, 1975.
BITTAR, C. A. Os Direitos da Personalidade. 8. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2015, p. 37.
BRASIL. Lei n. 10.046 de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm. Acesso em: 20 jul. 2022.
BRASIL. Lei 8.078 de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8078compilado.htm. Acesso em: 20 jul. 2022.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 20 jul. 2022.
CHAUVEL, M. A. A satisfação do consumidor no pensamento de marketing: revisão de literatura. In: ENCONTRO NACIONAL DA ANPAD. Anais... Foz do Iguaçu: ENANPAD, 1999.
COUTINHO, D. A. Direito digital do consumidor e algoritmos: a influência da inteligência artificial por meio de algoritmos no poder decisório do consumidor. Rio de Janeiro: Dialética, 2020.
DAURA, S. A. Behavioral economics e direito do consumidor: novas perspectivas para o enfrentamento do superendividamento. Rev. Bras. Polít. Públicas, Brasília, v. 8, n. 2, p. 567-598, 2018.
FACHIN, Z. Desafios da Regulação do ciberespaço e a proteção dos Direitos da Personalidade. Revista Jurídica (FURB), [s.l.], v. 25, n. 56, jan./abr. 2021.
FORTES, P. R. B. Contratos eletrônicos e o controle normativo dos algoritmos. In: MARTINS, P. L.; CASTRO, A. H.; RAMADA, P. C. P.; NEVES, E. A.; NUNES DA SILVA, D. M. F. Direito do Consumidor na Modernidade (Resumos Expandidos). Niterói: Editora UFF, 2018.
FOUCAULT, M. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução: Raquel R. Petrópolis: Vozes, 1987.
GALINDO, Daniel. O ciberconsumidor e sua inevitável maquino-dependência. In: SQUIRRA, S. (Org.) Cibercoms – Tecnologias Ubíquas Mídias Pervasivas. Porto Alegre: Buqui, 2012.
GRINOVER, A. P. et al. Código de Defesa do Consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009.
HERZBERG, F. Work and the Nature of Man. Cleveland: William Collins, 1966.
HODGES, A. Alan Turing: The Enigma The Book That Inspired the Film The Imitation Game. Princeton and Oxford: Princeton University Press, 2014.
IBM - International Business Machine. Deep Blue. United States: IBM, 1996. Disponível em: https://www.ibm.com/ibm/history/ibm100/us/en/icons/deepblue/. Acesso em: 24 mai. 2022.
KOTLER, P. Administração de marketing. Tradução: Sônia M. Y. 14. ed. São Paulo: Pearson Education do Brasil, 2012.
LAWAND, J. J. Teoria geral dos contratos eletrônicos. São Paulo: J. de Oliveira, 2003.
LUHMANN, N. A realidade dos meios de comunicação. Tradução: Ciro M. F. São Paulo: Paulus, 2005. p. 83.
MARQUES, C. L. Manual de direito do consumidor. 2. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009. p. 90.
MARQUES, C. L.; BENJAMIN, A. H.; MIRAGEM, B. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. 2. ed. São Paulo: RT, 2006. p. 25-58.
MARTUCCI, M. A pandemia fez o e-commerce decolar. Ainda há fôlego para mais? Disponível em: https://exame.com/negocios/a-pandemia-fez-o-e-commerce-decolar-ainda-ha-folego-para-mais/. Acesso em: 05 jul. 2022.
MASLOW, A. Motivation and Personality. New York: Harper & Row, 1954. p. 80-106.
MCCUNE, J. Yin e Yang. HSM Management, São Paulo, ano 4, n. 19, p. 110-111, mar./abr. 2000.
MIRAGEM, B. Curso de direito do consumidor. 6. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016.
NUNES, R. Curso de direito do consumidor. 12. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018, p. 43.
PACHECO, X. Guia do desenvolvedor de Delphi for .NET. São Paulo: Pearson Makron Books, 2005. 825 p.
RIBEIRO, M. C. P.; DOMINGUES, V. H. Economia comportamental e direito: a racionalidade em mudança. Rev. Bras. Polít. Públicas, Brasília: v. 8, n. 2, p. 456-471, 2018.
SANTOS, N. F. Ciberconsumidor ativista: análises e perspectivas das relações de consumo no microblog Twitter. In: CONGRESSO INTERNACIONAL DE DIREITO E CONTEMPORANEIDADE. I., 2012, Santa Maria. Anais... Santa Maria: Mídias e Direitos da sociedade em rede, 2012, 1-13.
SILVA, J. A. da. Curso de direito constitucional positivo. 19. ed. São Paulo: Malheiros, 2000. 266 p.
SIMON, H. A. A behavioral model of rational choice. The Quarterly Journal of Rational Choice, Oxford, v. 69, n. 1, p. 99-118, fev. 1955.
SQUIRRA, S. (Org.) Cibercoms – Tecnologias Ubíquas Mídias Pervasivas. Porto
Alegre: Buqui, 2012, p. 145 a 166.
TARTUCE, F.; NEVES, D. A. A. Manual de direito do consumidor: direito material e processual. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2018.
VERBICARO, D. et al. Direito do consumidor digital. In: BARROS, J. P. L. Consumidor Digital: Perspectivas. Rio de Janeiro: Lumen Juris Direito, 2020. p. 254.
WATSON, J. B. O comportamentismo. In: HERRNSTEIN, R. J.; BORING, E. G. Textos básicos de história da psicologia. São Paulo: Herder; EDUSP, 1971.
Publicado em: https://portalrevistas.ucb.br/index.php/rvmd/article/view/14010