Análise comparativa dos aspectos da coisa julgada nos ordenamentos jurídicos brasileiro, argentino, colombiano e peruano
Segundo Thiago Marrara[1], a comparação como instrumento científico possui finalidade clara:
“[...] extrair, mediante contextualização e confrontação efetiva, dados que demonstrem as vantagens e desvantagens dos objetos comparados e, com isso, permitem a formulação de contribuições ao desenvolvimento da ciência e dos sistemas jurídicos analisado.”
Partindo dessa premissa, o objetivo da presente pesquisa é examinar o instituto da coisa julgada à luz do ordenamento jurídico brasileiro (a partir da Constituição Federal e dos Códigos de Processo Civil de 1973 e 2015) em cotejo com os ordenamentos argentino, colombiano e peruano.
O método adotado neste estudo, portanto, será o comparativo e consistirá, primeiramente, no estudo de aspectos gerais da coisa julgada (i) no Direito brasileiro e, posteriormente, (ii) nos ordenamentos argentino, colombiano e peruano, para que, ao final, se viabilize o estudo comparado da matéria, ocasião em que será possível o exame de aproximações entre eles e também de distanciamentos.
No item 1, portanto, serão examinadas as principais questões a respeito da coisa julgada no ordenamento jurídico brasileiro, especialmente no que se refere à definição adotada pela doutrina, aos dispositivos dos Códigos de Processo Civil de 1973 e de 2015 que regem a matéria, à proteção constitucional da qual goza a coisa julgada e à forma pela qual pode ser desconstituída.
No item 2, na sequência, serão analisados aspectos da coisa julgada nos ordenamentos argentino, colombiano e peruano, partindo tanto da doutrina local a respeito do tema como dos dispositivos (i) do Código Procesal Civil y Comercial de la Nación argentino (e não das normas processuais das Províncias); (ii) do Código de Procedimiento Civil colombiano; e (iii) do Código Procesal Civil peruano.
Por fim, no item 3 será enfrentado o objeto deste estudo, que consiste na análise comparada do instituto da coisa julgada nos quatro sistemas analisados. Os principais pontos que serão verificados são os seguintes: (i) em quais países a coisa julgada conta com proteção constitucional; (ii) quais códigos contam com dispositivos que se dedicam a definir o que se compreende por coisa julgada; (iii) como esses países tratam dos limites subjetivos da coisa julgada; e (iv) se esses países contam com meios para a desconstituição da coisa julgada em determinadas hipóteses.
Desse modo, considerando a amplitude das questões que envolvem a figura da coisa julgada tanto no Brasil como na Argentina, na Colômbia e no Peru, e não pretendendo esgotar o tema, de grande complexidade, é que se inicia o presente estudo.
1. Breves considerações sobre aspectos da coisa julgada no direito brasileiro
No Código de Processo Civil de 2015, que recentemente entrou em vigor, a coisa julgada está definida no art. 502, que dispõe que “Denomina-se coisa julgada material a autoridade que torna imutável e indiscutível a decisão de mérito não mais sujeita a recurso” e se apresenta, no Direito brasileiro, como direito fundamental[2], porque referida no art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal, que estabelece que “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”[3].
É importante pontuar, aqui, que a redação do mencionado art. 502 do CPC/2015 é substancialmente diferente da redação do art. 467 do CPC/1973, que dispunha que “Denomina-se coisa julgada material a eficácia, que torna imutável e indiscutível a sentença, não mais sujeita a recurso ordinário ou extraordinário”.
Sobre tal alteração, José Maria Tesheiner[4] observa que houve a substituição do termo “sentença” por “decisão de mérito”. Anota que “[...] a mudança foi necessitada pela alteração do conceito de sentença, que não mais tem o significado de decisão que põe termo ao processo”[5]. Acrescenta o autor, contudo, que se manteve a ideia, implícita no Código revogado, de que só decisões de mérito produzem coisa julgada (material), e também explica que houve a substituição da palavra “eficácia” por “autoridade”.
São várias as definições da doutrina pátria a respeito do instituto. Aliás, como bem pontua Rodrigo Frantz Becker[6], a definição de coisa julgada
“[...] não encontra harmonia na doutrina e nem poderia, na medida em que o fenômeno não comporta uma definição estática, mas conceitos que o circundam com o objetivo de delineá-lo e aproximá-lo da melhor forma ao ordenamento que o recebe e o aplica.”[7]
Cândido Rangel Dinamarco[8] entende que a coisa julgada material é a imutabilidade dos efeitos substanciais da sentença de mérito, e esse status,
“[...] que transcende a vida do processo e atinge a das pessoas, consiste na intangibilidade das situações jurídicas criadas ou declaradas, de modo que nada poderá ser feito por elas próprias, nem por outro juiz, nem pelo próprio legislador, que venha a contrariar o que houver sido decidido.”
Para José Augusto Delgado[9], a entidade da coisa julgada é entendida como a sentença que alcançou patamar de irretratabilidade, em face da impossibilidade de contra ela ser intentada qualquer recurso. Conclui que “Em concepção objetiva é a que firmou, definitivamente, o direito de um dos litigantes após ter sido apurado pelas vias do devido processo legal”.
Teresa Arruda Alvim Wambier e José Miguel Garcia Medina[10] escrevem que a expressão coisa julgada deriva da expressão latina res judicata, que significa bem julgado, e impede o próprio Judiciário de se manifestar acerca daquilo que já foi decidido. Tem-se, portanto, que “Coisa julgada é a imutabilidade[11] e indiscutibilidade da determinação do conteúdo contido na decisão de mérito. Não se trata, pois, de um efeito da sentença” (MEDINA, 2017, p. 820).
Parece consenso na doutrina que a coisa julgada é manifestação do princípio da segurança jurídica, elemento essencial ao Estado Democrático de Direito, sendo que “A garantia constitucional e a disciplina legal da coisa julgada recebem legitimidade política e social da capacidade, que têm, de conferir segurança às relações jurídicas atingidas pelos efeitos da sentença”[12].
Nesse sentido, o princípio a segurança jurídica desenvolve-se
“[...] consoante escreve José Joaquim Gomes Canotilho, em torno de dois conceitos basilares: o da estabilidade das decisões dos poderes públicos, que não podem ser alteradas senão quando concorrerem fundamentos relevantes, através de procedimentos legalmente exigidos; e o da previsibilidade, que ‘se conduz à exigência de certeza e calculabilidade por parte dos cidadãos’.”[13]
Ainda, para Luiz Guilherme Marinoni[14], a segurança jurídica pode ser analisada em dois aspectos, um subjetivo e um objetivo. Especificamente no plano objetivo, a segurança jurídica recai sobre a ordem jurídica objetivamente considerada, relacionada à irretroatividade e à previsibilidade dos atos estatais. Na sua dimensão subjetiva, a segurança jurídica é vista a partir da perspectiva dos cidadãos em face do Poder Público.
Então, para o autor, a coisa julgada tutela o princípio da segurança jurídica em sua dimensão objetiva, uma vez que torna as decisões judiciais definitivas e imodificáveis, e também na dimensão subjetiva, quando importa a proteção da confiança, garantindo ao jurisdicionado que nenhum outro ato estatal poderá modificar a decisão que definiu o litígio[15].
Ovídio A. Baptista da Silva[16] afirma que a coisa julgada é obrigatória aos sujeitos do processo, mas a sentença vale e existe com respeito a todos:
“[...] assim como o contrato entre A e B vale com respeito a todos, como contrato entre A e B, assim também a sentença entre A e B vale com relação a todos enquanto é sentença entre A e B. Todos, pois, são obrigados a reconhecer o julgado entre as partes; não podem, porém, ser prejudicados. Mas por prejuízo não se compreende u prejuízo de mero fato, e sim um prejuízo jurídico.”
Para Rodolfo de Camargo Mancuso[17] a coisa julgada desempenha dupla função, positiva e negativa:
“[...] positiva (ao impor sua carga eficacial em face de outra(s) relação(ões) ou situação (ões) jurídica(s) judicializadas ou não); e negativa, sendo este enfoque precipuamente processual, quando a coisa julgada opera como um pressuposto negativo, endereçado ao juiz do processo futuro [...].”
Acerca da diferenciação entre coisa julgada material e formal, tem-se que quando se considera a sentença em si mesma como ato jurídico do processo, sua imutabilidade é conceituada como coisa julgada formal[18], que ocorre quando não é mais possível, pelas vias recursais, cassar a sentença proferida ou substituí-la por outra. A diferença, portanto, consiste no fato de que a coisa julgada material[19] é a imunidade dos efeitos da sentença, que os acompanha na vida das pessoas ainda depois de extinto o processo, impedindo qualquer ato estatal, processual ou não, que venha a negá-los[20].
Nesse sentido, ainda, José Maria Tesheiner[21] afirma que
“A coisa julgada surge no momento em que a decisão transita em julgado, isto é, no momento em que ela se torna irrecorrível (coisa julgada formal); sendo de mérito a decisão, torna-se, a partir do mesmo momento, imutável o conteúdo da decisão (coisa julgada material).”[22]
Quanto aos limites subjetivos da coisa julgada, o art. 506 do CPC/2015 estabelece que “A sentença faz coisa julgada às partes entre as quais é dada, não prejudicando terceiros”. Tal dispositivo substituiu o art. 472 do CPC/1973, que dispunha que
“A sentença faz coisa julgada às partes entre as quais é dada, não beneficiando, nem prejudicando terceiros. Nas causas relativas ao estado de pessoa, se houverem sido citados no processo, em litisconsórcio necessário, todos os interessados, a sentença produz coisa julgada em relação a terceiros.”
Especificamente nas ações coletivas que visam à proteção de interesses transindividuais (aqui compreendidos os interesses ou direitos coletivos, difusos e individuais homogêneos, nos termos do art. 81 do CDC), a coisa julgada se opera conforme a previsão do art. 101 do CDC.
Sobre o tema, o Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento do RE 612.043 RG/PR, decidiu que
“A eficácia subjetiva da coisa julgada formada a partir de ação coletiva, de rito ordinário, ajuizada por associação civil na defesa de interesses dos associados, somente alcança os filiados, residentes no âmbito da jurisdição do órgão julgador, que o fossem em momento anterior ou até a data da propositura da demanda, constantes da relação jurídica juntada à inicial do processo de conhecimento” (Tema 499/STF).
Tem-se, ainda, que a coisa julgada pode ser rescindida quando presentes as circunstâncias referidas no art. 966 do CPC, ou seja, quando a decisão de mérito transitada em julgado: (i) for proferida por força de prevaricação, concussão ou corrupção do juiz; (ii) for proferida por juiz impedido ou por juízo absolutamente incompetente; (iii) resultar de dolo ou coração da parte vencedora em detrimento da parte vencida ou, ainda, de simulação ou colusão entre as partes, a fim de fraudar a lei; (iv) ofender a coisa julgada; (v) violar manifestamente norma jurídica; (vi) for fundada em prova cuja falsidade tenha sido apurada em processo criminal ou venha a ser demonstrada na própria ação rescisória; (vii) quando o autor obtiver, posteriormente ao trânsito em julgado, prova nova cuja existência ignorava ou de que não pôde fazer uso, capaz, por si só, de lhe assegurar pronunciamento favorável; (viii) for fundada em erro de fato verificável do exame dos autos.
A ação rescisória, regulada pelo art. 966 do CPC/2015 conta com prazo decadencial de dois anos contados do trânsito em julgado do último pronunciamento judicial proferido no processo, como estabelece a Súmula 401 do Superior Tribunal de Justiça.
Luiz Guilherme Marinoni[23] afirma que o dispositivo que possibilita o manejo de ação rescisória para desconstituir a coisa julgada é uma resposta do legislador à exigência de tutela normativa da parte contra os atos judiciais que, mesmo marcados por vícios graves, transitam em julgado. Afirma ainda o autor que a norma não é inconstitucional, porque admite a medida somente em hipótese de gritante falta de idoneidade do ato jurisdicional.
Em se tratando de sentença inconstitucional (e por isso nula), contra ela não cabe ação rescisória. É possível à parte então valer-se da ação declaratória de nulidade da sentença (actio querela nullitatis), tendo persente que ela não perfaz a relação processual em razão do grave vício que a contaminou, o que impossibilita o seu trânsito em julgado[24]. O mesmo vale para sentença juridicamente inexistente (por exemplo, proferida sem a citação do réu, ou quando julga procedente pedido juridicamente impossível), sendo que o prazo da referida ação declaratória é imprescritível[25].
Especificamente sobre a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça sobre a coisa julgada, é possível mencionar decisões em que se reconheceu que “A ofensa à coisa julgada pressupõe a tríplice identidade entre ações, ou seja, duas demandas envolvendo as mesmas partes, causa de pedir e pedidos, o que não ocorreu no caso em exame” (v.g. AgInt no AREsp 1058301/DF, rel. Min. Raul Araújo, 4ª T., j. 27.11.2018); e que
“Na hipótese dos autos, não bastasse ter de veicular sua pretensão à desconstituição da coisa julgada em competente ação rescisória, o ora recorrente teve a oportunidade, naquela anterior ação, de produzir todas as provas que lhe fossem úteis para demonstrar a existência de fato extintivo, impeditivo ou modificativo do direito do autor, não havendo que se admitir, em ação declaratória, em claro prejuízo à segurança das relações jurídicas, a tentativa de desconstituição da coisa julgada anteriormente formada sob a alegação de que foi realizada nova perícia (v.g. AgInt no AREsp 1.263.854/MT, rel. Min. Luis Felipe Salomão, 4ª T., j. 27.11.2018).
2. Aspectos da coisa julgada nos ordenamentos argentinos, peruano e colombiano
Já tendo analisado os principais aspectos da coisa julgada no ordenamento brasileiro, impõe-se, na sequência, o breve exame dos três modelos propostos no presente estudo: (i) o argentino, a partir do Código Procesal Civil y Comercial de la Nación e não das normas das Províncias; (ii) o peruano, a partir do Código Procesal Civil; e (iii) o colombiano, a partir do Código de Procedimiento Civil.
2.1 Aspectos da coisa julgada no direito argentino
Para Pedro Lanusse[26] a função jurisdicional é a atividade desenvolvida pelo Estado para resolver conflitos de natureza jurídica que se suscitam entre duas ou mais pessoas. Essa atividade se concretiza mediante a prolação da sentença, que constitui ato processual decisório. Mediante a sentença o juiz aplica a lei, que é uma norma jurídica de caráter geral e, ao mesmo tempo, cria para as partes uma norma jurídica de caráter individual.
No mesmo sentido, parece correto afirmar que a coisa julgada, para além de se tratar de um instituto processual, constitui uma decisão política do Estado. Este, como responsável pelo serviço de justiça, é quem deve fixar as pautas de debate das controvérsias e, por consequência, é também quem deve dizer quando e em que medida uma questão não pode ser discutida novamente e quando, atendendo aos direitos envolvidos, é admissível um novo debate sobre determinado conflito[27].
Segundo Victorino Solá Torino[28], se entende por autoridade de coisa julgada a força ou eficácia obrigatória inerente à matéria da decisão judicial contida na sentença.
José María Salgado[29], por sua vez, afirma que usualmente se tem, por definição, que quando um caso decide sobre as questões postas a julgamento, e não mais é suscetível de ser alterado ou modificado por terem se esgotado os meios de impugnação, a decisão passa a ter autoridade de coisa julgada.
A exemplo do que ocorre no direito brasileiro, na Argentina também há distinção entre coisa julgada material e coisa julgada formal.
A doutrina denomina de coisa julgada formal a situação que tem lugar quando as decisões judiciais são obrigatórias e não podem ser modificadas com relação ao processo em que foram proferidas e ao estado de coisas que foram levadas em conta nesse momento, mas nada impede sua modificação em um processo posterior. A coisa julgada material ou substancial se identifica quando a sentença não só não é impugnável no mesmo processo em que foi proferida, como também é imutável, o que significa que não pode ser modificada em um processo posterior. A diferença entre a coisa julgada formal e material, assim, está nos efeitos que a sentença projeta no futuro[30].
Com relação aos limites da coisa julgada, tem-se que os objetivos estão relacionados ao objeto (fundamento da pretensão) e os subjetivos estão relacionadas às partes, de modo que se limitam os efeitos da coisa julgada com a exclusão dos terceiros, exceto nas hipóteses em que a coisa julgada produz efeitos erga omnes[31].
Especificamente com relação aos limites subjetivos da coisa julgada, Diego Exequiel Valenzuela[32] entende que a ideia de expansão dos alcances subjetivos da coisa julgada é um tema que reúne vasta complexidade e, portanto, se deve avançar meticulosa e progressivamente em busca de um mecanismo que propicie integral e real eficácia às sentenças.
Afirma-se, então, que a sentença dirime interesses contrapostos e estes, naturalmente, têm titulares. Contudo, o caso pode estar vinculado com outros interesses de sujeitos que não participaram do processo, de modo que o problema consiste então em estabelecer quais sujeitos estão submetidos à decisão que alcança força de coisa julgada. Obviamente a coisa julgada atinge os participantes diretos do processo: autor ou autores e réu ou réus (sujeitos da relação processual)[33], e também, como exceção, pode atingir a terceiros[34].
No que se refere aos limites objetivos, Rodolfo E. Witthaus[35] afirma que é evidente que as questões resolvidas expressamente pelo julgado estarão compreendidas e amparadas pela coisa julgada, que compreende, também, outras questões vinculadas ao pronunciamento. Para além delas, a coisa julgada se estende àquelas questões que por sua transcendência nas relações entre as partes poderiam resultar em litígios futuros. O autor traz então um exemplo ilustrativo: se for ajuizada ação declaratória de rescisão de contrato e a sentença declara nula ou inexistente determinada obrigação, esse pronunciamento terá força de coisa julgada para um juízo posterior, em que o mesmo demandante pretenda obter uma indenização por perdas e danos em razão do inadimplemento do mesmo contrato.
Pedro P. Lanusse[36] escreve, ainda, que se discute na doutrina argentina se toda extensão da sentença faz coisa julgada (conforme é o posicionamento de Savigny) ou se somente a sua parte dispositiva (como é o entendimento de Chiovenda). O autor conclui, contudo, que a Corte Suprema de Justicia de la Nación já decidiu que somente a parte dispositiva faz coisa julgada.
No Código Procesal Civil y Comercial de la Nación não há uma definição expressa do que se deve compreender por coisa julgada[37], mas há, como não poderia deixar de ser, alguns dispositivos que fazem referência ao instituto.
O art. 114, por exemplo, estabelece que a sentença fará coisa julgada a favor ou contra o devedor citado, tenha ele comparecido ou não (aqui, aparentemente, existe uma compatibilidade com o instituto da revelia).
O art. 347 dispõe que só se admitirão como preliminares as seguintes exceções: (i) incompetência; (ii) falta de capacidade do demandante, do demandado ou de seus representantes; (iii) falta de legitimidade do autor ou do réu; (iv) litispendência; (v) defeito legal no modo de propor a demanda; (vi) coisa julgada; (vii) transação, conciliação ou desistência do direito; e (viii) as defesas temporárias consagradas em leis gerais.
O art. 347, 9, ainda prevê que para que a exceção da coisa julgada seja “procedente”, o exame integral das duas contendas deve demonstrar que se trata do mesmo assunto submetido à decisão judicial, de modo que a outra sentença tenha resolvido o que constitui a matéria deduzida no novo juízo. No mesmo dispositivo, ao final, contém a norma de que “A existência de coisa julgada ou de litispendência poderá ser declarada de ofício pelo juiz, qualquer que seja o estado da causa”.
Na mesma linha, o art. 544, 9, estabelece que a coisa julgada é uma das únicas execuções admitidas no juízo executivo, ao lado: (i) da incompetência; (ii) da falta de capacidade das partes; (iii) da litispendência; (iv) da falsidade do título que embasa a execução; (v) da prescrição; (vi) do pagamento documentado, total ou parcial; (vii) da compensação de crédito líquido; (viii) da quitação, remição, novação, transação ou conciliação.
Ainda no que se refere às exceções (que podem ser comparadas às preliminares de mérito do direito brasileiro), o art. 349, 3, estabelece que não será aceita a exceção de coisa julgada se não se apresentar, quando da alegação, a cópia certificada da sentença respectiva. Contudo, uma vez firmada resolução que declare a “procedência” da exceção de coisa julgada, o processo será arquivado, nos termos do que dita o art. 354, 2.
Ainda, o art. 360 prevê que se for celebrado acordo na audiência de conciliação, será lavrada ata em que constará seu conteúdo e a homologação do juiz. A transação terá efeito de coisa julgada e se executará mediante o procedimento previsto para a execução de sentença.
Tendo isso em vista passa-se, então, ao estudo do modelo peruano.
2.2 Aspectos da coisa julgada no direito colombiano
Segundo María del Socorro Rueda F.[38] sobre coisa julgada pode se falar em ao menos dois sentidos. No primeiro, coisa julgada é o estado jurídico em que se encontra um assunto ou questão que tenha sido objeto de um processo; é o estado de um tema antes litigioso, quando tenha sido decidido pelos órgãos jurisdicionais de forma definitiva e irrevogável. No segundo sentido a coisa julgada se apresenta como um efeito que designa certas resoluções judiciais: é, então, o principal efeito da principal decisão do processo, que é a sentença definitiva sobre o mérito.
A mesma autora afirma coisa julgada tem efeito positivo e negativo. A função negativa da coisa julgada se traduz com a proibição do non bis in idem e supõe a preclusão de um juízo futuro sobre o mesmo objeto, a respeito do qual há decisão definitiva. A função positiva da coisa julgada consiste na vinculação que produz nos juízes a respeito de um caso futuro, de modo que, no caso de conhecer do mesmo objeto, estariam eles vinculados a aplicar a mesma solução[39].
Ainda, Miguel Enrique Rojas Gómez[40] escreve que o fato de a decisão ter transitado em julgado não implica que se torne inquestionável e imutável. Argumenta que do ponto de vista científico a única hipótese que pode torná-la imutável é a sua conformidade com a realidade e com o direito, de modo que sempre que seu conteúdo resultar de conduta ilícita de servidor ou fraude das partes e outros sujeitos processuais subsiste a possibilidade de requerer sua invalidação fazendo prevalecer a verdade e a ordem jurídica.
Nesse contexto, o recurso extraordinário de revisão está previsto no art. 332 do Código de Procedimiento Civil e foi concebido como um remédio para preservar a justiça contra a injustiça que comportam as sentenças originadas de ilicitude e fraude, ou em uma investigação deficiente e cujo resultado não está em consonância com a realidade. Esse meio de impugnação serve, portanto, para questionar o conteúdo da sentença por sua evidente dissonância com a realidade fática ou jurídica[41].
Assim, parece correto afirmar que o recurso de revisão tem por objetivo desconstituir a coisa julgada material quando se demonstra que a sentença não foi produto de debate leal a justo, mas sim de ocultamento, colusão, dolo ou fraude, caso em que não se estará diante de um novo processo, mas sim diante do mesmo, que, por ter sido anulado, deve ser resolvido mediante uma nova sentença[42].
Nos termos do art. 381 do Código de Procedimiento Civil o recurso extraordinário de revisão deve ser interposto em até dois ou em até cinco anos, a depender da hipótese de cabimento prevista nos itens do art. 380.
O Código de Procedimiento Civil colombiano, a exemplo do diploma processual argentino, também não contém um dispositivo que defina exatamente o que é coisa julgada. A inteligência de diversos artigos, contudo, auxiliam na compreensão do instituto.
O art. 93 do Código, por exemplo, prevê a possibilidade de “allanamiento a la demanda”, que pode ser traduzida como uma aquiescência ao pedido (reconhecimento do pedido) antes da prolação da sentença de primeiro grau, ocasião em que o juiz proferirá sentença em conformidade com o pedido. O art. 94, na sequência, prevê as hipóteses em que esse reconhecimento do direito do autor não é eficaz, e o item 6, expressamente, dispõe que uma das circunstâncias é quando a sentença deva produzir efeitos de coisa julgada a respeito de terceiros.
O art. 97, ao seu turno, disciplina quais exceções (que podem ser traduzidas como preliminares) podem ser suscitadas pelo demandado, sendo doze no total: (i) falta de jurisdição; (ii) falta de competência; (iii) compromisso ou cláusula compromissória; (iv) inexistência do autor ou do réu; (v) incapacidade ou indevida representação do autor ou do réu; (vi) não ter o autor apresentado prova da qualidade de herdeiro, cônjuge, curador de bens, administrador da comunidade, executor e em geral a qualidade em que atue o autor ou se cite o réu; (vii) inaptidão da demanda por falta de um dos requisitos formais ou por indevida acumulação de pretensões; (viii) inadequação da via eleita; (ix) não contemplar a demanda todos os litisconsortes necessários; (x) litispendência; (xi) não ter-se ordenado a citação de outras pessoas que a lei exige; e (xii) ter-se notificado a admissão da demanda à pessoa diversa do réu. Ao final do dispositivo, ainda, o legislador incluiu a possibilidade de o réu apresentar as exceções de coisa julgada, transação e decadência.
O art. 101, parágrafo terceiro, dispõe que a conciliação e a ata que a aprova terá efeito de coisa julgada.
O art. 332 estabelece, por sua vez, que a sentença executada proferida em processo contencioso tem força de coisa julgada sempre que o novo processo verse sobre o mesmo objeto, se fundamente na mesma causa que o anterior e conte com identidade jurídica de partes. Há no mesmo dispositivo, também, a regra de que (i) a sentença proferida em ação popular produz coisa julgada erga omnes, (ii) os efeitos da coisa julgada nos processos que versem sobre questões relativas ao estado civil das pessoas se regulam pelo Código Civil colombiano e pelas leis complementares; (iii) nos processos em que se incluem pessoas indeterminadas de determinado local para que compareçam como parte, a coisa julgada surtirá efeitos em relação a todas as compreendidas naquela localização; e (iv) a coisa julgada não se opõe ao recurso extraordinário de revisão.
Norma importante é a contida no art. 333, que prevê, de modo taxativo, quais são as sentenças que não constituem coisa julgada: (i) as proferidas em processos de jurisdição voluntária; (ii) as que decidem situações suscetíveis de modificação mediante processo posterior, por autorização expressa da lei; (iii) as que declarem provada uma exceção de caráter temporal, que não impeça o ajuizamento de outro processo com a extinção da causa que deu lugar ao seu reconhecimento; e (iv) as que contenham decisão inibitória sobre o mérito do litígio.
O art. 512, então, prevê que a sentença que resolva as alegações de mérito faz coisa julgada, exceto nos casos previstos nos itens 3 e 4 do mencionado art. 333.
2.3 Aspectos da coisa julgada no direito peruano
Tendo já examinado aspectos da coisa julgada nos ordenamentos brasileiro (no item 1) e os ordenamentos argentino e colombiano (nos itens 2.1 e 2.2, respectivamente), passa-se à análise da matéria no direito peruano.
Para Roxana Jiménez Vargas Machuca[43] uma das garantias constitucionais é a imutabilidade da coisa julgada. Essa disposição consagra e protege o princípio da coisa julgada, assim como os correspondentes à segurança jurídica e à tutela jurisdicional efetiva. Tal proteção se fundamenta no direito que toda pessoa tem de que as decisões judiciais sejam observadas ou alcancem sua plena eficácia nos termos em que foram proferidas, respeitando a firmeza e a intangibilidade das situações jurídicas nelas declaradas, base da paz social e da segurança jurídica.
Jorge Luis Zubiate Herici[44], por sua vez, escreve que o processo tem natureza completamente teleológica e seu fim é o que o caracteriza: a coisa julgada, cujo fundamento, por sua vez, não é outro senão a busca da paz social mediante a solução definitiva dos conflitos, consolidando assim o direito e evitando que os processos se tornem intermináveis.
Alfredo Carrillo Lozada e Sérgio Gianotti Paredes[45] afirmam que a autoridade da coisa julgada não é um efeito imediato da própria sentença, mas, ao contrário, é uma disposição legal que atribui essa autoridade às decisões que preenchem os requisitos previstos pelo próprio legislador.
O Código Procesal Civil peruano também não conta com um dispositivo que, a exemplo do art. 502 do CPC/2015 defina o que o ordenamento considera coisa julgada. Assim como as outras legislações examinadas, contudo, há regras que auxiliam na compreensão do instituto, e que serão brevemente mencionadas.
A primeira norma que menciona “coisa julgada” no diploma peruano é o art. 123, que disciplina quanto uma decisão adquire autoridade de coisa julgada. São as hipóteses seguintes: (i) quando não cabem contra ela outros meios de impugnação além dos já resolvidos; e (ii) quando as partes renunciam expressamente à interposição de meios de impugnação ou deixam transcorrer o prazo sem apresentá-los. O dispositivo ainda trata dos limites subjetivos da coisa julgada e estabelece que a coisa julgada só alcança as partes. Há a hipótese de alcançar também a terceiros cujos direitos dependem dos direitos das partes ou terceiros de cujos direitos dependem os das partes, se tiverem sido citados na demanda.
O art. 178, logo na sequência, dispõe que é possível ajuizar uma ação de conhecimento (dentro do prazo de seis meses contados da data que a decisão adquiriu status de coisa julgada) pugnando pela nulidade de uma sentença ou de um acordo celebrado pelas partes e homologado pelo juiz que põe fim ao processo, alegando que o processo tramitou com fraude ou conluio, afetando o direito de um devido processo, cometido por uma ou ambas as partes, pelo juiz ou pelo juiz e pelas partes. Pode mover a ação o terceiro que se considere diretamente prejudicado pela sentença que fez coisa julgada.
Especificamente sobre esse ponto, Jorge Luis Zubiate Herici[46] afirma que a doutrina admite sem exceção e com discrepâncias que não vão além do aspecto estritamente processual, a possibilidade de requerer em ação própria a nulidade da coisa julgada nos casos em que as garantias do devido processo legal tenham sido violadas de modo excepcional e extremamente grave. Acrescenta, ainda, que única possibilidade de revogar uma sentença transitada em julgado obtida com a violação de garantias da administração da justiça seria mediante o ajuizamento da ação de amparo.
A inteligência do art. 328 estabelece que a conciliação surte o mesmo efeito que a sentença que tem autoridade de coisa julgada. Mesma norma está contida no art. 337, que prevê que a transação que põe fim ao processo tem autoridade de coisa julgada, e também no art. 470 que prevê que a ata da audiência de conciliação devidamente assinada pelos intervenientes e pelo juiz equivale a uma sentença com autoridade de coisa julgada.
O art. 344, ao seu turno, estabelece que a decisão que defere a desistência da pretensão produz efeitos de uma demanda infundada com autoridade de coisa julgada.
O art. 446 regula as exceções e defesas prévias (semelhantes no direito brasileiro, como dito, às matérias preliminares). São elas: (i) incompetência; (ii) incapacidade do demandante ou de seu representante; (iii) representação defeituosa ou insuficiente do demandante ou do demandado; (iv) obscuridade ou ambiguidade no modo de propor a demanda; (v) falta de esgotamento da via administrativa; (vi) falta de legitimidade do demandante ou do demandado; (vii) litispendência; (viii) coisa julgada; (ix) desistência da pretensão; (x) conclusão do processo por conciliação ou transação; (xi) decadência; (xii) prescrição extintiva; e (xiii) convenção de arbitragem. Os efeitos dessas exceções estão contidos no art. 451, que no item 5 dispõe que no caso de acolhimento da exceção de coisa julgada a ação será anulada e o processo se dará por concluído.
É importante mencionar, ainda, que a Consitucion Politica del Peru de 1993 protege a coisa julgada no seu art. 139, 2, que regula os princípios da administração da Justiça e prevê que são princípios e direitos da função jurisdicional:
“A independência no exercício da função jurisdicional. Nenhuma autoridade pode assumir causas pendentes ante o órgão jurisdicional e nem interferir no exercício de suas funções. Tampouco pode tornar sem efeito decisões que transitaram em julgado, nem interromper procedimentos em trâmite, nem modificar sentenças e nem retardar sua execução. Estas disposições não afetam o direito de graça nem a faculdade de investigação do Congresso, cujo exercício não deve, contudo, interferir no procedimento jurisdicional nem surtir algum efeito jurisdicional”.
3. Análise comparativa dos quatro sistemas: aproximações e distanciamentos
Examinados aspectos da coisa julgada nos ordenamentos brasileiro (no item 1), argentino (no item 2.1), colombiano (no item 2.2) e peruano (no item 2.3), passa-se à análise comparada do instituto.
Inicialmente, é importante ponderar que a previsão do art. 5.º, XXXVI, da Constituição da República Federativa do Brasil, que estabelece que “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada” e eleva a coisa julgada à condição de direito fundamental, não se repete nas Constituições de todos os demais países.
A Constitución Política de Colombia, de 1991, e a Consitución de la Nación Argentina, de 1994[47], não contemplam qualquer dispositivo nesse sentido. A Constitucion Politica del Peru, de 1993, no entanto, em seu art. 139, 2, que regula os princípios da administração da Justiça, prevê que são princípios e direitos da função jurisdicional:
“A independência no exercício da função jurisdicional. Nenhuma autoridade pode assumir causas pendentes ante o órgão jurisdicional e nem interferir no exercício de suas funções. Tampouco pode tornar sem efeito decisões que transitaram em julgado, nem interromper procedimentos em trâmite, nem modificar sentenças e nem retardar sua execução. [...].”
Outro ponto importante a se considerar é que os diplomas processuais argentinos[48], colombiano e peruano não contam com dispositivo semelhante ao art. 502 do CPC/2015 (correspondente ao art. 467 do CPC/1973), que define o que o legislador compreende por coisa julgada: “Denomina-se coisa julgada material a autoridade que torna imutável e indiscutível a decisão de mérito não mais sujeita a recurso”.
É necessário levar em conta, contudo, que, a despeito de não haver definição expressa nos Códigos, as legislações, nos dispositivos relacionados à matéria, fazem referência ao instituto e disciplinam, algumas vezes de forma mais robusta e em outras de modo mais tímido, qual é o seu alcance e a sua importância.
Com relação aos limites subjetivos da coisa julgada, o Brasil conta com a regra prevista no art. 506 do CPC/2015, que dispõe que “A sentença faz coisa julgada às partes entre as quais é dada, não prejudicando terceiros” e, no que se refere especificamente às demandas coletivas, com a norma inserida no art. 101 do CDC.
De modo semelhante, o art. 123 do Código Procesal Civil peruano trata dos limites subjetivos da coisa julgada e estabelece que a coisa julgada só alcança as partes. Há a hipótese de alcançar também a terceiros cujos direitos dependem dos direitos das partes ou terceiros de cujos direitos dependem os das partes, se tiverem sido citados na demanda.
Como visto, o art. 332 do Código de Procedimiento Civil colombiano prevê que a sentença executada proferida em processo contencioso tem força de coisa julgada sempre que o novo processo verse sobre o mesmo objeto, se fundamente na mesma causa que o anterior e conte com identidade jurídica de partes. Há no mesmo dispositivo, também, a regra de que (i) a sentença proferida em ação popular produz coisa julgada erga omnes, (ii) os efeitos da coisa julgada nos processos que versem sobre questões relativas ao estado civil das pessoas se regulam pelo Código Civil colombiano e pelas leis complementares; (iii) nos processos em que se incluem pessoas indeterminadas de determinado local para que compareçam como parte, a coisa julgada surtirá efeitos em relação a todas as compreendidas naquela localização; e (iv) a coisa julgada não se opõe ao recurso extraordinário de revisão.
O Código Procesal Civil y Comercial de la Nación da Argentina não conta com qualquer norma que de algum modo discipline o alcance subjetivo da coisa julgada.
No que se refere especificamente às possibilidades de desconstituição da coisa julgada em determinadas hipóteses, o ordenamento brasileiro, como dito, conta com a figura da ação rescisória, disciplinada no art. 966 do CPC/2015, que autoriza seja rescindida a decisão de mérito quando: (i) for proferida por força de prevaricação, concussão ou corrupção do juiz; (ii) for proferida por juiz impedido ou por juízo absolutamente incompetente; (iii) resultar de dolo ou coração da parte vencedora em detrimento da parte vencida ou, ainda, de simulação ou colusão entre as partes, a fim de fraudar a lei; (iv) ofender a coisa julgada; (v) violar manifestamente norma jurídica; (vi) for fundada em prova cuja falsidade tenha sido apurada em processo criminal ou venha a ser demonstrada na própria ação rescisória; (vii) quando o autor obtiver, posteriormente ao trânsito em julgado, prova nova cuja existência ignorava ou de que não pôde fazer uso, capaz, por si só, de lhe assegurar pronunciamento favorável; ou (viii) for fundada em erro de fato verificável do exame dos autos.
No Peru a doutrina admite sem exceção e com discrepâncias que não vão além do aspecto estritamente processual, a possibilidade de requerer em ação própria a nulidade da coisa julgada nos casos em que as garantias do devido processo legal tenham sido violadas de modo excepcional e extremamente grave, através de ação de amparo[49].
Nesse sentido, o art. 178 autoriza o ajuizamento de ação de conhecimento (dentro do prazo de seis meses contados da data que a decisão adquiriu status de coisa julgada) pugnando pela nulidade de uma sentença ou de um acordo celebrado pelas partes e homologado pelo juiz que põe fim ao processo, alegando que o processo tramitou com fraude ou conluio, afetando o direito de um devido processo, cometido por uma ou ambas as partes, pelo juiz ou pelo juiz e pelas partes.
A Colômbia, por sua vez, conta com o recurso extraordinário de revisão, previsto no art. 332 do Código de Procedimiento Civil, que prevê que a coisa julgada não se opõe ao recurso extraordinário de revisão (este regulado pelo art. 379).
Referido recurso foi concebido como um remédio para preservar a justiça contra a injustiça que comportam as sentenças originadas de ilicitude e fraude, ou em uma investigação deficiente e cujo resultado não está em consonância com a realidade. Esse meio de impugnação serve, portanto, para questionar o conteúdo da sentença por sua evidente dissonância com a realidade fática ou jurídica[50].
O recurso de revisão, assim, tem por objetivo desconstituir a coisa julgada material quando se demonstra que a sentença não foi produto de debate leal a justo, mas sim de ocultamento, colusão, dolo ou fraude, caso em que não se estará diante de um novo processo, mas sim diante do mesmo, que, por ter sido anulado, deve ser resolvido mediante uma nova sentença[51].
Especificamente com relação à Argentina, Rodrigo Frantz Becker[52] relembra que o país não possui um meio de impugnação para revisão da coisa julgada, como possui o Brasil (ação rescisória) e a Itália (revocazione).
As demais questões relativas à coisa julgada, assim como a sua definição pela doutrina, em geral, não apresenta grandes discrepâncias de um sistema para outro.
4. Conclusões
Propôs-se com o presente estudo a análise comparada do instituto da coisa julgada nos ordenamentos brasileiro, argentino, colombiano e peruano.
Foi possível, assim, alcançar ao menos cinco conclusões.
A primeira consiste nas vantagens de se estudar determinada matéria à luz da comparação jurídica. No caso específico do exame de aspectos da coisa julgada em países da América Latina é possível verificar o tratamento do instituto nos respectivos ordenamentos e constatar, por exemplo, avanços e retrocessos, semelhanças e diferenças e, ainda, se há espaço para melhora no Direito brasileiro, quando cotejado aos demais sistemas jurídicos.
A segunda é que, no que diz respeito ao ordenamento jurídico brasileiro, é possível afirmar que há certo avanço em relação aos sistemas argentino, colombiano e peruano. Isso porque a Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, elevou a coisa julgada ao status de direito fundamental, o que indubitavelmente acentua a sua importância; o mesmo acontece (e de forma mais tímida) somente na Constitucion Politica del Peru, de 1993. Não bastasse isso, por exemplo, o sistema processual brasileiro conta com um dispositivo que define o que deve ser compreendido por coisa julgada, que é o art. 502 do CPC/2015, o que afasta discussões doutrinárias a respeito do seu conceito e não ocorre nos outros códigos.
A terceira é que somente o Brasil possui ação própria para desconstituir a coisa julgada, que é a ação rescisória, regulada pelo art. 966 do CPC/2015. No sistema argentino não há figura semelhante. Na Colômbia os jurisdicionados podem se valer do recurso extraordinário de revisão (cabível também em outras hipóteses) e no Peru é possível mover uma ação de amparo, que não se presta somente à desconstituição da coisa julgada.
A quarta é que os limites subjetivos da coisa julgada têm tratamento semelhante em todos os ordenamentos examinados, notadamente pelo fato de que a coisa julgada material atinge todos aqueles que participaram do processo e também terceiro – sem, contudo, prejudicá-los.
A quinta é que, aparentemente, o tratamento dado à coisa julgada pelo sistema processual argentino se mostra mais sucinto e menos amplo do que o dos outros países analisados. O Código Procesal Civil y Comercial de la Nación se limita, basicamente, a disciplinar a coisa julgada como matéria de defesa do réu, sem trazer um meio de desconstituição da coisa julgada ou sem disciplinar quais são os seus limites subjetivos.
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[1] MARRARA, Thiago. Método Comparativo e Direito Administrativo. In: Revista Jurídica UNIGRAN, Dourados, v. 16, n. 32, jul.-dez. 2014. p. 35.
[2] Sobre o conceito de direitos fundamentais, José Joaquim Gomes Canotilho explica que fundamentais são todos os direitos objetivamente vigentes numa ordem jurídica concreta, garantidos e limitados no espaço e no tempo. José Afonso da Silva (1993. p. 162), no mesmo sentido, afirma que são direitos positivos, mas que encontram seu fundamento e conteúdo nas relações sociais materiais em cada momento histórico. Para o autor, sua historicidade repele a tese de que nascem pura e simplesmente da vontade do Estado, para situá-los no terreno político da soberania popular, que lhes confere o sentido apropriado na dialética do processo produtivo. (CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional. 6. ed. Coimbra: Almedina, 1993. p. 517).
[3] Para Luiz Guilherme Marinoni, uma interpretação literal do dispositivo constitucional poderia levar à equivocada conclusão de que a coisa julgada é protegida somente contra o legislador. Afirma o autor, assim: “Porém, a circunstância de a norma ter se referido ao legislador obviamente não quer dizer que a Constituição quis liberar o administrador e o juiz para a desrespeitarem. A norma não se ocupa do juiz porque a possibilidade de este desconsiderá-la é pouco mais do que estranha aos princípios do Estado de Direito e às regras do próprio direito processual [...]”. (MARINONI, Luiz Guilherme. Coisa julgada inconstitucional. São Paulo: Ed. RT, 2008. p. 68).
[4] TESHEINER, José Maria. Art. 502. In: STRECK, Lenio Luiz; NUNES, Dierle; CUNHA, Leonardo Carneiro da; (Orgs.). Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Editora Saraiva, 2016. p. 714.
[5] É importante observar, aqui, que a redação do art. 162, § 1.º, do CPC/1973 previa que “Sentença é o ato do juiz que implica alguma das situações previstas nos arts. 267 e 269 desta Lei”, enquanto que o art. 203, § 1.º, do CPC/2015 estabelece que “Ressalvadas as disposições expressas dos procedimentos especiais, sentença é o pronunciamento por meio do qual o juiz, com fundamento nos arts. 485 e 487, põe fim à fase cognitiva do procedimento comum, bem como extingue a execução”.
[6] BECKER, Rodrigo Frantz. Conflito de coisas julgadas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017. p. 32-33.
[7] Acrescenta o autor, ainda, que “[...] a depender da época e do sistema a coisa julgada foi (é) tratada de modo diverso, de acordo com o ordenamento e com a cultura legal do momento em que analisada, e isso certamente influencia em sua definição, devendo, portanto, ter em mente as diversas concepções possíveis acerca do instituto, com o objetivo de aplica-las no contexto devido para compreensão do que se pretende estudar”. (BECKER, Rodrigo Frantz. Conflito de coisas julgadas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017. p. 32-33).
[8] DINAMARCO, Cândido Rangel. Relativizar a coisa julgada material. In: NASCIMENTO, Carlos Velder do (Coord.). Coisa julgada inconstitucional. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2002. p. 36-37.
[9] DELGADO, José Augusto. Efeitos da coisa julgada e os princípios constitucionais. In: NASCIMENTO, Carlos Velder do (Coord.). Coisa julgada inconstitucional. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2002. p. 84.
[10] MEDINA, José Miguel Garcia; ARRUDA ALVIM WAMBIER, Teresa. Recursos e ações autônomas de impugnação. 3. ed. São Paulo: Ed. RT, 2013. p. 20-21.
[11] Sobre o conceito de imutabilidade: “A imutabilidade pode definir-se como a principal característica ou qualidade que se acrescenta aos efeitos do comando contido na parte decisória da sentença. [...] Nesta imutabilidade ou na marcante estabilidade deste comando é que consiste a coisa julgada”. (MEDINA, José Miguel Garcia; ARRUDA ALVIM WAMBIER, Teresa. Recursos e ações autônomas de impugnação. 3. ed. São Paulo: Ed. RT, 2013. p. 20).
[12] DINAMARCO, Cândido Rangel. Relativizar a coisa julgada material. In: NASCIMENTO, Carlos Velder do (Coord.). Coisa julgada inconstitucional. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2002. p. 34.
[13] MEDINA, José Miguel Garcia; ARRUDA ALVIM WAMBIER, Teresa. Recursos e ações autônomas de impugnação. 3. ed. São Paulo: Ed. RT, 2013. p. 22.
[14] MARINONI, Luiz Guilherme. Coisa julgada inconstitucional. São Paulo: Ed. RT, 2008. p. 65-66.
[15] MARINONI, Luiz Guilherme. Coisa julgada inconstitucional. São Paulo: Ed. RT, 2008. p. 67.
[16] SILVA, Ovídio A. Baptista da. Sentença e coisa julgada. 2. ed. Porto Alegre: Fabris, 1988. p. 95.
[17] MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Jurisdição coletiva e coisa julgada: teoria das ações coletivas. São Paulo: Ed. RT, 2006. p. 124.
[18] Sobre o assunto o autor ainda afirma que “Assim conceituada, a coisa julgada formal é manifestação de um fenômeno processual de maior amplitude e variada intensidade, que é a preclusão – e daí ser ela tradicionalmente designada como preclusão máxima. Toda preclusão é a extinção de uma faculdade ou poder no processo; e a coisa julgada formal, como preclusão qualificada que é, caracteriza-se como extinção do poder de exigir novo julgamento quando a sentença já tiver passado em julgado” (DINAMARCO, Cândido Rangel. Relativizar a coisa julgada material. In: NASCIMENTO, Carlos Velder do (Coord.). Coisa julgada inconstitucional. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2002. p. 38). No mesmo sentido: “Embora se assemelhem, a coisa julgada e a preclusão não se confundem. A preclusão é semelhante à coisa julgada formal, que diz respeito à imutabilidade da decisão dentro do processo em que foi proferida” (MEDINA, José Miguel Garcia. Novo Código de Processo Civil comentado: com remissões e notas comparativas ao CPC/1973. 5. ed. São Paulo: Ed. RT, 2017. p. 820).
[19] Ainda sobre o conceito de coisa julgada material, tem-se que: ““Com essa função e esse efeito, a coisa julgada material não é instituto confinado ao direito processual. Ela tem acima de tudo o significado político-institucional de assegurar a firmeza das situações jurídicas, tanto que erigida em garantia constitucional. Uma vez consumada, reputa-se consolidada no presente e para o futuro a situação jurídica co-material das partes, relativa ao objeto do julgamento e às razões que uma delas tivesse para sustentar ou pretender alguma outra situação” (DINAMARCO, Cândido Rangel. Relativizar a coisa julgada material. In: NASCIMENTO, Carlos Velder do (Coord.). Coisa julgada inconstitucional. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2002. p. 37).
[20] DINAMARCO, Cândido Rangel. Relativizar a coisa julgada material. In: NASCIMENTO, Carlos Velder do (Coord.). Coisa julgada inconstitucional. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2002. p. 38.
[21] TESHEINER, José Maria. Art. 502. In: STRECK, Lenio Luiz; NUNES, Dierle; CUNHA