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A teoria do adimplemento substancial: um incentivo ao inadimplemento?

A origem da “substantial performance”, remonta ao direito inglês, possuindo como paradigmas o case Boone v. Eyre, julgado em 1777; e o case H. Dakin & Co, Ltd v. Lee, julgado em 1916 (CARVALHO FILHO, Carlos Augusto de., 2019, p. 38). Considerando a sua origem notadamente em um país cuja tradição adotada é a do common law, essa teoria tem por escopo central evitar que determinado contrato seja resolvido pelo credor, quando parcela mínima da avença é descumprida pelo devedor – situação que deve ser analisada casuisticamente.

No âmbito nacional, a teoria foi introduzida pelo professor e doutrinador Clóvis Veríssimo de Couto e Silva, que definiu o adimplemento substancial como:

um adimplemento tão próximo ao resultado final, que, tendo-se em vista a conduta das partes, exclui-se o direito de resolução, permitindo tão somente o pedido de indenização"" e/ou de adimplemento de vez que aquela primeira pretensão viria a ferir o princípio da boa fé” (SILVA, 1980, p. 56).

Assim, a ideia central da teoria passou a ser utilizada com o objetivo de prestigiar os princípios da boa-fé objetiva e da função social do contrato, previstos pelos arts. 421 e 422 do Código Civil, e relativizar o art. 475 do Código Civil, se apresentando como um instituto doutrinário que, apesar de não incluído formalmente no ordenamento jurídico brasileiro, é amplamente adotado pela jurisprudência brasileira.

O e. STJ possui entendimento consolidado sobre o tema, de modo que, a teor do que julgam, o instituto “confere maior estabilidade jurídica às relações contratuais e protege os contratantes que, por motivos excepcionais e imprevisíveis, não conseguem cumprir de imediato o que foi pactuado” (STJ, 2022).

Os Recursos Especiais utilizados como paradigmas para consolidar a matéria são os seguintes: (i) REsp n. 76362/MT; (ii) REsp n. 293722/SP; (iii) REsp n. 1051270/RS; (iv) REsp n.1581505/SC; (v) REsp n. 1622555/MG; e (v) REsp 1731193/SP. Merece especial destaque o julgamento do REsp n.1581505/SC, no qual entendeu-se pela inaplicabilidade da teoria do adimplemento substancial e, de modo fundamentado, declarou-se a necessidade de um exame qualitativo de cada caso, a fim de que seja verificada a extensão dos danos que o inadimplemento proporcionou ao credor, com vistas a não afetar o equilíbrio contratual.  

Observa-se, então, uma característica relevante a respeito da aplicabilidade da teoria, desde a sua origem, incluindo sua adoção doutrinária no Brasil e pelo e. STJ: a necessidade de verificação individual e até mesmo subjetiva do que se entenderia como parcela insignificante de cada contrato, que justifique a aplicabilidade desse instituto.

Apesar disso, a jurisprudência não descarta a utilização do critério quantitativo para uniformizar o entendimento sobre o tema. Nesta análise se considera o número de parcelas pagas ou a porcentagem do valor já quitado pelo devedor. Atualmente, o entendimento caminha no sentido de que a teoria é aplicável quando ao menos 90% do contrato já está quitado.

Não se ignora a relevância que a adoção da teoria do adimplemento substancial possui em nosso ordenamento e, apesar de sua finalidade não ser a de incentivar o não cumprimento dos contratos – tal como qualquer instituto que prescinda de uma análise extremamente subjetiva do julgador – um dos pontos de atenção acerca de sua aplicabilidade está justamente na tendência do comportamento oportunista das partes, somada à assimetria de informações dos envolvidos (notadamente as partes e o órgão Julgador).

Robert Axerold, na obra a evolução da cooperação, a partir da análise do dilema do prisioneiro, destaca que os players, considerando o seu comportamento oportunista, tendem a agir de forma a maximizar os seus próprios interesses, ainda que por condutas ilícitas, violando acordos de cooperação (AXEROLD, 2010). Se aplicado ao instituto em análise, em certa medida, é possível supor que a adoção da teoria do adimplemento substancial pelos Tribunais Pátrios se apresenta como um incentivo ao inadimplemento na medida em que – diante do comportamento oportunista (neste caso do devedor) – legitima e protege a inexecução contratual, a despeito do que fora pré-estabelecido pelas partes, favorecendo, em certa medida, a parte devedora.

Somado a essa tendência do “agir oportunista”, há que sopesar o fato de que a subsunção acerca da (in)aplicabilidade da teoria do adimplemento substancial, que passa pela análise da lógica-jurídica do contrato e a consequente definição do que se considera para cada caso: (i) uma parcela ínfima; (ii) a conduta regular das partes; (iii) ou a melhor escolha entre resolver ou conservar o contrato, é feita justamente por um julgador, o qual, na relação estabelecida processualmente, é o player que possui o menor grau de informações sobre o contrato, já que somente são levados ao seu conhecimento o que devedor e credor julgam pertinentes.

É dizer: a assimetria de informações incidente em uma teoria em que o critério subjetivo possui especial relevância conduz, em realidade, a um cenário de insegurança jurídica, mormente porque a decisão é proferida com base em informações nem sempre completas, variando substancialmente de caso a caso.

De tal modo, a solução trazida pelo julgador nem sempre será a mais eficiente para as partes envolvidas e tampouco será possível – a despeito de existir alguns critérios pré-estabelecidos na jurisprudência – uma solução justa e idêntica para os casos semelhantes, já que a análise acerca do cumprimento substancial das obrigações contratuais muda de mãos: ao invés de seguir o que está previsto contratualmente com a adoção do que foi definido como justo entre as partes, a decisão acerca da resolução ou não da avença passa para o Estado, que define se a finalidade de um contrato foi cumprida ou não, a despeito da intenção inicial do credor e do devedor ao estabelecerem a cláusula resolutiva.

Assim, a tendência da adoção de comportamentos oportunistas pelas partes e a assimetria de informações se apresentam como gargalos para que a aplicabilidade da teoria do adimplemento substancial ocorra de modo a prezar, de fato, pela estabilidade jurídica, quer seja em seu âmbito jurisprudencial ou ainda dentro das relações contratuais.

A intenção da presente reflexão não é, por certo, a de esgotar a matéria, mas, sim, fomentar o debate acerca da necessidade se levar em consideração para o estabelecimento de critérios sobre a aplicabilidade da teoria do adimplemento substancial, temas como a assimetria de informações entre partes e juízo e o comportamento de maximização de ganhos inerentes às partes.

Diante disso, ainda que se trate de um assunto cuja jurisprudência já esteja pacificada, proposições acerca da forma pela qual a teoria do adimplemento substancial é incorporada pelo nosso ordenamento jurídico devem estar em voga, ainda mais se sopesada a ausência específica de previsão legal, evidenciando a importância dos debates sobre o tema.

Referências

AXELROD, Robert. A evolução da cooperação. Tradução de Jusella Santos. São Paulo: Leopardo Editora, 2010.

CARVALHO FILHO, Carlos Augusto de. O Adimplemento substancial na execução do contrato. 2019. Tese (Doutorado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo. Disponível em: . Acesso em 30.04.2023.

SILVA, Clóvis Veríssimo do Couto e. O princípio da boa-fé no direito brasileiro e português. In: Estudo de direito civil brasileiro e português. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1980.

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Adimplemento substancial: a preponderância da função social do contrato e do princípio da boa-fé objetiva. STJ, 24 abr. 2022. Disponível em: . Acesso em 01.05.2023.


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