Não é possível suprimir as garantias reais e fidejussórias sem anuência do credor detentor, ainda que previstas no Plano de Recuperação Judicial, aprovado em assembleia-geral de credores e homologado pelo juízo recuperacional

Em outras ocasiões já fizemos algumas considerações sobre a cláusula que prevê a liberação das garantias reais e fidejussórias aos credores dissidentes[1], na qual demonstramos inclinação ao entendimento de que, em que pese a soberania da assembleia-geral de credores, suas deliberações estão sujeitas aos requisitos de validade dos atos jurídicos em geral, e, portanto, ao controle de legalidade do juízo da Recuperação Judicial.

Assim, mesmo com a novação sui generis dos créditos, nos termos do art. 59 da Lei n. 11.101/05, sempre buscamos ressaltar a expressa previsão disposta no art. 49, §1º da Lei n. 11.101/05, que dispõe que “os credores do devedor em recuperação judicial conservam seus direitos e privilégios contra os coobrigados, fiadores e obrigados de regresso”.

Esse entendimento, contudo, estava oscilando de forma muito frequente nos tribunais brasileiros. Em que pese a orientação firmada na Súmula n. 581/STJ[2] e a tese firmada pelo STJ no REsp nº 1333349/SP[3] julgado sob a sistemática dos recursos repetitivos, é verdade que, desde 2017, e sobretudo a partir da interpretação proferida pelo STJ no julgamento do RESP 1.532.943/MT, o tema vem sendo amplamente discutido, gerando maior insegurança jurídica, tanto para credores, como para devedores.

Diversos tribunais passaram a admitir a legalidade da famigerada cláusula, e outros, continuaram a rechaçá-la dos Planos de Recuperação Judicial. Deste modo, a controvérsia só aumentou, e coube ao Superior Tribunal de Justiça enfrentar novamente a questão.

Deste modo, por maioria de votos, a Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça fixou o entendimento segundo o qual não é possível suprimir as garantias reais e fidejussórias sem a anuência do credor detentor, ainda que previstas no Plano de Recuperação Judicial, aprovado em assembleia-geral de credores e homologado pelo juízo recuperacional[4].

Referido entendimento foi firmando quando do julgamento dos REsps 1.794.209 e 1.885.536, de relatoria do Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, que votou contrário à liberação das garantias e manteve o acórdão proferido pelo e. TJSP.

Segundo o Ministro Relator, não há que se falar em nulidade das cláusulas que preveem a liberação das garantias, visto não esbarrarem em nenhuma das hipóteses estabelecidas no artigo 166 do Código Civil de nulidade do negócio jurídico, bem como nos artigos 138 e seguintes do Código Civil, tratando-se, pois, de negócio jurídico válido.

Conforme destacou o Ministro Relator, a fiança, o aval e o direito de regresso são garantias pessoais, de natureza patrimonial, os quais são passíveis de transação entre as partes, já que são constituídas em direitos disponíveis. Desta maneira, o credor que compareceu à assembleia e votou favoravelmente ao plano e, portanto, à cláusula extensiva da novação aos coobrigados, renunciou validamente à garantia estipulada em seu favor, daí a eficácia do ato em relação a si.

Entretanto, não havendo manifestação do titular do crédito com inequívoco ânimo de novar em relação às garantias, não há que se falar em liberação da garantia, haja vista que a novação não se presume, dependendo da constatação do inequívoco animus novandi, nos termos do artigo 361 do Código Civil. Ademais, há expressa previsão legal de que a novação não se estende aos coobrigados (art. 49, § 1º, da Lei n. 11.101/2005).

Quanto às garantias reais, discorreu que a Lei n. 11.101/2005 é clara ao estabelecer, no artigo 50, § 1º, que, "na alienação de bem objeto de garantia real, a supressão da garantia ou sua substituição somente serão admitidas mediante aprovação expressa do credor titular da respectiva garantia". Sendo assim, não restaria dúvida quanto a imprescindibilidade de anuência do titular da garantia real para a hipótese de sua supressão, especialmente porque a lei fala na necessidade de o credor titular da garantia admitir a supressão e não na classe de credores.

Acompanharam o posicionamento do relator os ministros Marco Buzzi, Nancy Andrighi, Raul Araújo e Antonio Carlos Ferreira.

O Ministro Marco Aurélio Bellizze abriu divergência e foi acompanhado pelos ministros Moura Ribeiro e Paulo de Tarso Sanseverino. Segundo eles, mesmo para aqueles que tenham votado contrários ao Plano de Recuperação Judicial, a cláusula que afasta as garantias é válida e eficaz para todos os credores da classe, haja vista a soberania dos credores. Nesta linha, considerando que a representação dos credores se dá de maneira coletiva, restringir a supressão das garantias, tal como previsto no Plano de Recuperação Judicial aprovado pela assembleia-geral, apenas aos credores que tenham votado favoravelmente nesse sentido, seria conferir tratamento diferenciado aos demais credores da mesma classe, o que iria de encontro à deliberação majoritária.

Além dos dois entendimentos supracitados, o ministro Luís Felipe Salomão apresentou uma terceira via de posicionamento, ao propor uma solução intermediária para a questão. Quanto a garantia fidejussória, a concordância do credor é necessária, por força do disposto no artigo 49, §1º, da Lei n. 11.101/2005, contudo, quanto aos direitos reais de garantia, deve-se observar os efeitos do Plano de Recuperação Judicial, pois todos os seus elementos podem ser alterados, substituídos e até suprimidos. Referido posicionamento restou isolado no julgamento.

Conforme já expressado anteriormente, concordamos com o entendimento fixado pelo relator, Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva. A nosso ver, não restam dúvidas de que o artigo 49, §1º, da Lei n. 11.101/2005 expressamente restringiu a novação do crédito ao devedor em Recuperação Judicial, não estendendo os efeitos aos devedores solidários.

A fixação do entendimento ora noticiado é de extrema relevância, pois, como o próprio Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva destacou, além do entendimento contrário ser notadamente conflitante com o espírito da Lei n. 11.101/2005 e com as novas previsões de financiamento trazidas pela Lei n. 14.112/2020, “o cenário de incerteza quanto ao recebimento do crédito em decorrência do enfraquecimento das garantias é desastroso para a economia do país, pois gera o encarecimento e a retração da concessão de crédito, o aumento do spread bancário, a redução da circulação de riqueza, provoca a desconfiança dos aplicadores de capitais, nacionais e estrangeiros”.

Por fim, vale ressaltar que a decisão dá sinais de estabilidade ao judiciário brasileiro, em meio a tantos posicionamentos conflitantes, eis que, no momento enfrentado, o que mais é preciso, tanto para credores como para devedores, é segurança jurídica.

 

 

[1] Disponível em .

[2] “A recuperação judicial do devedor principal não impede o prosseguimento das ações e execuções ajuizadas contra terceiros devedores solidários ou coobrigados em geral, por garantia cambial, real ou fidejussória.”

[3] “RECURSO ESPECIAL REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA. ART. 543-C DO CPC E RESOLUÇÃO STJ N. 8/2008. DIREITO EMPRESARIAL E CIVIL. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. PROCESSAMENTO E CONCESSÃO. GARANTIAS PRESTADAS POR TERCEIROS. MANUTENÇÃO. SUSPENSÃO OU EXTINÇÃO DE AÇÕES AJUIZADAS CONTRA DEVEDORES SOLIDÁRIOS E COOBRIGADOS EM GERAL. IMPOSSIBILIDADE. INTERPRETAÇÃO DOS ARTS. 6º, CAPUT, 49, § 1º, 52, INCISO III, E 59, CAPUT, DA LEI N. 11.101/2005. 1. Para efeitos do art. 543-C do CPC: ‘A recuperação judicial do devedor principal não impede o prosseguimento das execuções nem induz suspensão ou extinção de ações ajuizadas contra terceiros devedores solidários ou coobrigados em geral, por garantia cambial, real ou fidejussória, pois não se lhes aplicam a suspensão prevista nos arts. 6º, caput, e 52, inciso III, ou a novação a que se refere o art. 59, caput, por força do que dispõe o art. 49, § 1º, todos da Lei n. 11.101/2005’.”

[4] STJ. Segunda Seção – 12/05/2021 (35min – 2h55min). Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=pdZaUCVvcjQ>