STJ decide que doação de imóvel aos filhos do casal não caracteriza fraude contra credores quando a família continua residindo no bem

O reconhecimento da fraude contra credores, prevista nos arts. 158 e ss. do Código Civil, acarreta a anulação do negócio jurídico e depende da presença concomitante de três requisitos, quais sejam: (i) a anterioridade do crédito; (ii) o eventus damni; e (iii) a scientia fraudis.

A anterioridade do crédito consiste na necessidade de que, à época da celebração do negócio jurídico anulável ou ineficaz, o crédito já tenha sido constituído perante o credor, o eventus damni dispõe que a prática do negócio jurídico anulável tenha reduzido o patrimônio do devedor, levando-o à insolvência ou a agravando, e a scientia fraudis consiste no conhecimento, pelo terceiro adquirente, da situação de insolvência do devedor.

No julgamento do Recurso Especial n. 1.926.646/SP, a 3.ª Turma do Superior Tribunal de Justiça entendeu por afastar a fraude contra credores reconhecida pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo e, assim, manter a impenhorabilidade do imóvel doado pelo devedor e sua esposa aos filhos do casal.

Para tanto, fundamentou a Relatora, Ministra Nancy Andrighi, que, embora exista divergência na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça quanto à preservação da impenhorabilidade na hipótese em que o bem é alienado em fraude à execução[1] (figura que, em certos aspectos, se assemelha à fraude contra credores, já que também tem por objetivo garantir o pagamento da dívida e, quando fundada no art. 792, inc. IV, do CPC, exige, igualmente, a presença do eventus damni), cada situação particular exige uma ponderação de valores pelo julgador: de um lado, a proteção legal conferida ao bem de família, fundada no direito à moradia e no mínimo existencial do devedor e/ou sua família e, de outro, o direito à tutela executiva do credor.

Por conseguinte, assinalou a Ministra Relatora que, com o propósito de traçar diretrizes para orientar o julgador na tomada de decisões, no julgamento do Recurso Especial n. 1.227.366/RS, a 4.ª Turma do Superior Tribunal de Justiça assentou que: “O parâmetro crucial para discernir se há ou não fraude contra credores ou à execução é verificar a ocorrência de alteração na destinação primitiva do imóvel - qual seja, a morada da família - ou de desvio do proveito econômico da alienação (se existente) em prejuízo do credor. Inexistentes tais requisitos, não há falar em alienação fraudulenta.”

Isto é: a doação do imóvel considerado bem de família ao(s) filho(s) do devedor é considerada fraudulenta quando houver: (i) a alteração da destinação primitiva do imóvel; ou (ii) o desvio do proveito econômico da alienação em prejuízo do credor.

No caso sob julgamento, desde o ano de 2000 os recorrentes residem no imóvel e, embora esse bem tenha sido doado pelo devedor e sua esposa aos filhos do casal no ano de 2011, a situação fática em nada se alterou, já que o bem continuou servindo como residência da entidade familiar.

Concluiu-se, dessa maneira, que as peculiaridades do caso concreto demonstram a ausência do requisito do eventus damini e, portanto, de disposição fraudulenta, já que, antes da alienação, o imóvel já era impenhorável e continua tendo tal característica depois de experimentar uma mudança apenas formal de titularidade.

Por fim, acrescentou a Ministra que, mesmo que não se aplicasse tal raciocínio, a proteção da impenhorabilidade no caso em debate continuaria presente, tendo em vista que a esposa do devedor nunca ocupou a posição de devedora, mas se limitou a autorizar o oferecimento da garantia pessoal por parte do seu cônjuge. Nesses termos, a doação da quota pertencente à mulher (50%) não poderia ser considerada fraudulenta e estaria protegida pela impenhorabilidade.

Essa circunstância atrai, segundo constou no acórdão, a orientação firmada no julgamento do Recurso Especial n. 1.405.191/SP, também de relatoria da Ministra Nancy Andrighi, no sentido de que “A proteção instituída pela Lei 8.009/1990, quando reconhecida sobre metade de imóvel relativa à meação, deve ser estendida à totalidade do bem.”

Embora a 3.ª Turma do Superior Tribunal de Justiça tenha reconhecido a ausência de fraude nesse caso em específico, convém reforçar que os julgados das Turmas que compõem a 2.ª Seção[2], em geral, são no sentido de que, reconhecida a fraude à execução ou a fraude contra credores, deve ser afastada a impenhorabilidade do bem de família. Isto porque entende-se que o devedor que, sabendo-se insolvente, transfere sua moradia familiar com o intuito de fraudar credores, não poderia fazer jus à benesse instituída pelo art. 1.º da Lei n. 8.009/90: “o bem que retorna ao patrimônio do Devedor, em razão do reconhecimento de fraude à execução, não se reveste da impenhorabilidade prevista na Lei 8.009/90”.

Nesses termos, a discussão acerca da existência ou não de fraude contra credores, quando realizada a alienação de bem imóvel impenhorável, por se tratar de bem de família, deve ser analisada de acordo com as peculiaridades do caso em concreto.



[1] Tendo em vista que, no âmbito da 1.ª Seção do STJ, tem prevalecido o entendimento de que “mesmo quando o devedor aliena o imóvel que lhe sirva de residência, deve ser mantida a cláusula de impenhorabilidade porque imune aos efeitos da execução; caso reconhecida a invalidade do negócio, o imóvel voltaria à esfera patrimonial do devedor ainda como bem de família” (AgInt no REsp 1719551/RS, Segunda Turma, DJe 30/05/2019). No mesmo sentido: AgInt no AREsp 1190588/RS, Primeira Turma, DJe 26/03/2019; AgRg no AREsp 255.799/RS; Primeira Turma, DJe de 27/09/2013; REsp 1059805/RS, Segunda Turma DJe 02/10/2008. Lado outro, os julgados das Turmas que compõem a 2ª Seção do STJ, em geral, são no sentido de que “reconhecida a fraude à execução, deve ser afastada a impenhorabilidade do bem de família” (AgInt no AREsp 1482869/SP, Quarta Turma, DJe 07/05/2020; AgInt nos EDcl no AREsp 731.483/PR, Quarta Turma, DJe 02/04/2020; AgInt no REsp 1568157/SP, Terceira Turma, DJe 03/10/2016).

[2] (AgInt no AREsp 1482869/SP, Quarta Turma, DJe 07/05/2020; AgInt nos EDcl no AREsp 731.483/PR, Quarta Turma, DJe 02/04/2020; AgInt no AREsp 1455826/DF, Quarta Turma, DJe 03/10/2019; AgInt no AREsp 1097404/RS, Quarta Turma, DJe 28/08/2017; AgInt no AREsp 982.981/RJ, Quarta Turma, DJe 21/08/2017; AgInt no REsp 1568157/SP, Terceira Turma, DJe 03/10/2016)