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Variações recentes sobre o Prequestionamento (I): O prequestionamento de conveniência no Supremo Tribunal Federal

Em notável obra na literatura mundial, Gabriel García Márquez assim descreve a época em que se passam eventos marcantes no povoado de Macondo, que ele logo passaria a descrever: “O mundo era tão recente que muitas coisas careciam de nome e para mencioná-las se precisava de apontar com o dedo”. Trechos como este, que extraí de Cem Anos de Solidão (talvez um dos mais expressivos trabalhos do gênero literário conhecido como realismo fantástico), servem de apoio ou ponto de partida para alguns escritos que venho produzindo e que, paulatinamente, pretendo compartilhar por aqui. A maioria deles versa sobre a importância do sentido que atribuímos aos textos e como a linguagem determina o modo como interpretamos as fontes e aplicamos a norma jurídica para resolver dilemas em nosso dia a dia.

Não apenas em Macondo muitas coisas ainda não foram nominadas e para mencioná-las se precisa “apontar com o dedo”. Algo parecido ocorre com muitos fenômenos jurídicos.

Tome-se o sentido da expressão “princípio”, por exemplo. Antes de dialogar a respeito, temos que saber se estamos conversando sobre o mesmo assunto. Na doutrina e na jurisprudência, usa-se o termo para designar uma série variada de coisas que não podem ser consideradas da mesma espécie. Por exemplo, não é raro ver em textos doutrinários ou em julgados do Supremo Tribunal Federal o uso de figuras como “princípio da proporcionalidade”, “princípio da dignidade da pessoa humana” e “princípio da presunção da inocência” lado a lado, como se fossem espécies de um mesmo gênero. “Princípio”, aí, é palavra que acaba por carecer de significado, pois usada para se referir a qualquer coisa. Usa-se o termo para indicar ferramentas bastante diferentes entre si. E o que se usa para se referir a qualquer coisa serve para se referir a coisa alguma: torna-se algo inútil.

Algo parecido se dá com o prequestionamento. A expressão foi tendo o seu significado alterado ao longo da história. Em priscas eras (a primeira decisão que encontrei foi proferida na primeira metade do século passado), referia-se tão-somente à atividade realizada pelas partes perante o Tribunal a quo, antes da decisão que viria a se manifestar sobre a questão prequestionada. Depois, passou a designar toda a atividade realizada pela parte, inclusive em embargos de declaração opostos após aquela decisão judicial proferida pelo Tribunal a quo. Aqui, já estamos na segunda metade do Século XX, ocasião em que surgiram os enunciados 282 e 356 da Súmula do Supremo Tribunal Federal. A orientação sumulada passou, ela mesma, a ser interpretada como dado normativo. A partir desse entendimento, passou-se a decidir também que a questão deveria estar no acórdão final proferido pelo Tribunal a quo, e a parte teria o grave ônus de fiscalizar essa atividade jurisdicional, inclusive cuidando de provocar a supressão de omissão em embargos de declaração. Quid, se, depois de opostos tais embargos (que ganharam a alcunha de “prequestionadores”), que fazer se o Tribunal local se mantivesse inerte, sem se pronunciar sobre a questão federal? Surgiu, então, na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, a orientação de que a questão haveria de ser considerada prequestionada, ainda que não tivesse havido manifestação expressa a respeito da questão federal na decisão que seria objeto de recurso extraordinário (entendimento que, muito tempo depois, viria a ser contemplado no Código de Processo Civil de 2015, e disso tratarei no próximo artigo desta série).

Naquela época, o Supremo era outro, muito diferente do Supremo dos dias atuais. Na práxis forense, pouco ou nada se falava em princípios constitucionais ou, até, em direitos fundamentais. O cenário viria a mudar com a Constituição Federal de 1988. Mas mesmo no alvorecer na nova ordem constitucional prevalecia postura que poderá ser considerada um tanto conservadora para os estudiosos do constitucionalismo brasileiro contemporâneo. Por exemplo, ainda havia resistência quanto a aplicar-se direitos fundamentais sem a intermediação de uma regra infraconstitucional que os disciplinasse. Não faltava quem chamasse isso de ativismo judicial. Ah!, não sabiam os autores que então faziam tal crítica o que viria a suceder nas décadas vindouras. O próprio sentido do que se deve considerar ativismo acabou se perdendo.

Olhando, hoje, para o passado, é fácil identificar o caminho percorrido e as opções escolhidas pelos atores institucionais que nos fizeram chegar ao status atual. Sim, refiro-me a atores, pois o cenário foi montado por várias potestades. O espectro de atuação do Supremo foi-se ampliando em grande medida por obra de seus integrantes, mas a construção dessa obra foi sendo estimulada pelos órgãos legislativo e da administração pública.

Há muitos exemplos disso. Para ficar em um deles, cito o da disciplina normativa que cuidou do mandado de injunção no plano infraconstitucional. Regras como as previstas no art. 8.º, inc. II, e no art. 9.º da Lei 13.300/2016 deixam claro que se adotou, ali, uma visão concretista da atuação do Supremo no julgamento do mandado de injunção. Note-se bem: essa construção foi feita pelos Poderes Legislativo e Executivo, que, ao assim fazerem, deram guarida normativa àquilo que, pé ante pé, já vinha sendo historicamente escrito pelo Supremo. Esse é apenas um exemplo de tantos que podem ser recordados. Eles revelam que a natureza ostentada pelo Supremo não é decorrente de uma construção unilateral sua, como se a Corte atuasse à revelia dos órgãos legislativo e executivo.

O Supremo acomodou-se a esse papel e o vem desempenhando. Se tal desempenho é bom ou ruim, digno de elogios ou de críticas, é outra questão, e sobre isso venho tecendo reflexões em outros escritos (cf. particularmente, o que escrevi em Constituição Federal Comentada, 8.ª edição, Editora Revista dos Tribunais, 2024). No sistema interacional de que fazem parte Supremo, Congresso Nacional e Presidência da República, pode suceder que parte do cenário ou os papéis dos atores sofram alguma alteração.

Há muito a ser dito sobre as transformações pelas quais passou o Supremo ao longo dessas últimas décadas. Aqui faço um pequeno recorte, para me dedicar ao modo como o prequestionamento vem sendo considerado, pelo Supremo. Num próximo texto, em continuidade a este, tratarei do prequestionamento à luz da jurisprudência contemporânea do Superior Tribunal de Justiça.

No Supremo Tribunal Federal, a função do recurso extraordinário acabou por misturar-se com a finalidade do controle abstrato de constitucionalidade. Esse movimento surgiu antes da reforma da Emenda Constitucional 45/2004, que, dentre outros assuntos, versou sobre a súmula vinculante e a repercussão geral da questão federal constitucional, como requisito de admissibilidade do recurso extraordinário. Essa alteração constitucional fez com que se consolidasse o que antes era uma tendência. Fala-se, a partir de então, em “objetivação” (ou “dessubjetivação”) do controle de constitucionalidade. Com a interpenetração entre essas duas formas, o recurso extraordinário passou também a desempenhar papel político, à semelhança do que já vinha sucedendo com outras formas de controle (lembre-se, por exemplo, da tendência manifestada pela jurisprudência do Supremo em admitir a prolação de decisões manipulativas, substitutivas ou aditivas).

A repercussão geral da questão constitucional contribuiu para que esse estado de coisas se tornasse bastante agudo. No caso, não se está apenas diante de um mecanismo de restrição de acesso ao Supremo, mas, também, de importante veículo de transposição de questões constitucionais, sempre que o Supremo enxergar nelas uma importante oportunidade de atuação. Usarei a palavra “conveniência” para designar esse movimento. Esse é um dado que, embora não explícito na forma, aparece de modo decisivo quando o Supremo decide atuar, dispondo sobre dada questão federal.

Vê-se, então, que não basta considerar se a questão constitucional é importante em si mesma (isso é, se tem repercussão geral nos termos disciplinados na Constituição e na legislação infraconstitucional): o Supremo deve articular a apreciação da questão constitucional com outras formas de controle, de modo a poder concluir que o exame do tema é oportuno, ou não.

O critério de avaliação dessa oportunidade pode ter variados matizes. Talvez o mais importante deles seja, sobretudo, de política institucional. Uso a expressão política institucional não no sentido da política que deve ser feita por atores que são eminentemente políticos, mas refiro-me à atuação política que o Supremo faz ou pode fazer, como órgão que controla a constitucionalidade dos atos do Legislativo e da Administração Pública, ao decidir se o momento é oportuno para cuidar de determinado tema. Seria uma ingenuidade supor que o Supremo não avalia o risco de ocorrer um backlash a depender da sensibilidade do tema e do modo como isso pode ser recebido socialmente. A cólera do povo pode provocar uma reação legislativa e uma emenda constitucional pode rapidamente fazer cair por terra uma solução interpretativa elaborada depois de muito esforço pelos integrantes do Supremo.

Voltemos ao prequestionamento. O requisito ainda existe e vem sendo aplicado pela jurisprudência do Supremo. Mas, nas entrelinhas das decisões, é fácil notar que o modo como ele deve se apresentar para que seja considerada suprida a exigência da presença da questão constitucional se tornou algo bastante flexível, amoldável a outros fatores que com ele se relacionam. Lembre-se que o Supremo considera dois valores para atuar: saber se o tema é importante e saber se é oportuna a deliberação da Corte. Se esses dois valores atingirem o peso máximo, a exigência do prequestionamento restará bastante atenuada. Mas o inverso também pode ocorrer. Caso os integrantes do Supremo considerem o tema pouco importante, ou, embora tenha a sua importância, a atuação do Supremo mostre-se politicamente inoportuna ou momentaneamente inconveniente, a exigência do prequestionamento poderá acabar sendo feita com absoluto rigor.

Por isso, no Supremo impera o que chamo de prequestionamento de conveniência. Sua configuração dependerá dos valores que disserem respeito a determinado tema. O prequestionamento será rigorosamente exigido ou atenuado a depender não apenas da questão constitucional ontologicamente considerada. Além da importância da questão federal, o Tribunal avalia também se sua atuação é oportuna.

Isso pode ser representado pela seguinte equação:

1.png

Aqui,

  • p representa o grau de exigência quanto ao prequestionamento,
  • t representa o tema,
  • i representa a importância da questão constitucional, e
  • o representa a oportunidade de atuação do Supremo.

Assim, a depender do tema (t), e à medida que a importância da questão constitucional (i) e a oportunidade de atuação do Supremo (o) aumentam, a exigência do prequestionamento (p) diminui.

Provavelmente outras fórmulas terão aptidão de representar melhor o fenômeno, que tem detalhamentos e nuances que merecem aprofundamento. Meu propósito, nestas linhas, não foi o de analisá-lo de modo exaustivo, mas apenas o de chamar a atenção para a sua existência. Afinal, antes de estudar os institutos jurídicos, devemos saber de sua existência e dar-lhe a devida definição. Trata-se de uma exigência científica, por certo, sem a qual correríamos o risco de ficarmos sem ter como nos referir às coisas que se passam, condenados a, tal como em Macondo, ficarmos limitados a apontar com o dedo para nos referirmos a elas. Mas direito não é apenas ciência. No mínimo, saber como funciona o prequestionamento nos permitirá saber como atua o Supremo, e isso interessa também àqueles que batem às portas do Supremo em busca de uma solução à luz da Constituição.

Apresentado o instituto do prequestionamento de conveniência, uma próxima missão consistirá em saber de sua legitimidade constitucional, de definir seus contornos, catalogar julgados do Supremo em que se adotou uma ou outra postura, etc. Enfim, importará saber como isso afeta a dinâmica da atuação do Supremo e de outros órgãos jurisdicionais, a exemplo do Superior Tribunal de Justiça. Aliás, também na jurisprudência recente do Superior Tribunal de Justiça o prequestionamento passou por variações. Esse será o tema do próximo artigo desta série.

Professor Medina


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