O Direito e a origem da expressão “para inglês ver”

por Anelise Ambiel Dagostin

Há 189 anos, em 7 de novembro de 1831, era promulgada no então Império do Brasil a Lei Feijó, a primeira de várias que se seguiram até o efetivo fim da escravidão, em 1888. Mas o que poucos sabem é que, a despeito do aparente avanço na questão abolicionista, a Lei Feijó ficou também conhecida como “lei para inglês ver”, dando origem à expressão até hoje utilizada para designar aquilo que não se tem intenção de concretizar.

Para melhor entender, voltemos os olhos ao contexto da época: após a declaração de independência do Brasil, em 1822, era imprescindível que a recém-surgida nação brasileira obtivesse o reconhecimento internacional, sobretudo da Inglaterra, maior potência daquele tempo. Entretanto, uma importante condição foi imposta pela coroa britânica, que já havia proibido o tráfico de escravos desde 1808: que fossem dados, também em solo brasileiro, os primeiros passos em direção ao fim do comércio negreiro e à total abolição da escravatura.

Embora não se saiba, com precisão, se os interesses ingleses para o fim do mercado internacional de escravos eram puramente econômicos ou também humanitários, é certo que, para o Brasil, não havia qualquer interesse no fim da escravidão. Ao contrário, muitos traficantes e senhores de terra brasileiros e portugueses faziam fortuna com o mercado negreiro. Não por coincidência, o Brasil foi o país que mais recebeu escravos africanos nas Américas: segundo o banco de dados da página Comércio Transatlântico de Escravos (The Transatlantic Slave Trade Database¹), o número total de africanos que aqui desembarcaram entre 1501 a 1900 chegou a 4,86 milhões.

Assim, como o único interesse dos brasileiros era pôr fim à pressão inglesa, a Lei Feijó foi promulgada sem qualquer intenção de ser cumprida, ou seja, somente “para inglês ver”. Embora tivessem reconhecido a independência do Brasil, os ingleses não esmoreceram e a tensão se intensificou nas décadas seguintes, com a aprovação, pelo Parlamento Britânico, do ato Bill Aberdeen, em 1845, o qual, dentre outras medidas, autorizava navios de guerra ingleses a adentrarem águas brasileiras para a captura de navios negreiros (a exemplo do episódio do ingresso do cruzeiro britânico HMS Cormorant na Ilha do Mel e na baía de Paranaguá em 1850, depois de tentativa fracassada de bombardeio por parte do governo local).

Como se sabe, inobstante a pressão inglesa, o caminho para a liberdade foi longo: depois de 1831 ainda foram promulgadas a Lei Eusébio de Queiroz (1850), a Lei do Ventre Livre (1871), e a Lei dos Sexagenários (1885), até que finalmente em 1888 foi aprovada a Lei Áurea, sendo o Brasil um dos últimos países de todo o globo a decretar o fim da escravidão. Não à toa, mais de cento e trinta anos depois, os efeitos da liberdade tardia são ainda sentidos. Cabe a todos nós, dia após dia, lutar pelo fim do racismo e pela reparação dos tantos e infindáveis danos causados pela escravidão, a fim de que o direito à igualdade racial, constitucionalmente garantido, não seja também “para inglês ver”.

¹Disponível em <https://www.slavevoyages.org/>.