O que é "imóvel residencial" para fins da proteção conferida ao bem de família (Lei n. 8.009/1990)?

Não são raras as vezes em que os devedores e proprietários de mais de um imóvel decidem utilizar o bem mais valioso como sua moradia permanente, justamente com a intenção de salvaguardá-lo de eventuais constrições judiciais decorrentes de ações ajuizadas em seu desfavor.

Em que pese em um primeiro momento essa conduta possa parecer legítima, não se pode permitir que a proteção conferida pela Lei n. 8.009/1990 seja desvirtuada, uma vez que vontade do legislador ao instituir o bem de família não era assegurar a moradia neste ou naquele imóvel específico, mas sim de garantir o direito a uma moradia digna, à luz do princípio da dignidade da pessoa humana[1].

Se, por um lado, é louvável a ideia de proteger o direito fundamental à moradia, por outro, também deve ser destacado o dimensionamento correto dos interesses em conflito, entre eles, o legítimo interesse que o credor tem de receber o seu crédito. Realizar esse alinhamento por meio da ponderação, significa atender, na medida do possível, aos direitos e interesses dos dois polos do processo, quais sejam: o de credor e devedor. Entender o contrário, seria esvaziar tanto o conteúdo do art. 797 do CPC, cuja prescrição é que o processo executivo se faz no interesse do credor, quanto a temática do art. 805 do CPC, do qual a norma prescreve que a execução seguirá da forma menos onerosa ao executado.

A norma inserida no art. 1.º da Lei n. 8.009/1990 estabelece que o imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses previstas nesta lei.  Na mesma linha está o caput do art. 5.º do mesmo diploma legal, para os efeitos de impenhorabilidade, considera-se residência um único imóvel utilizado pelo casal ou pela entidade familiar para moradia permanente.

Todavia, o parágrafo único do art. 5.º da Lei n. 8.009/1990 assevera que, na hipótese de o casal, ou entidade familiar, ser proprietário de vários imóveis utilizados como residência, a impenhorabilidade recairá sobre o de menor valor, salvo se outro tiver sido registrado, para esse fim, no Registro de Imóveis e na forma do art. 70 do Código Civil.

O Superior Tribunal de Justiça, ao debruçar-se sobre a exceção à impenhorabilidade prevista no parágrafo único do referido dispositivo, no emblemático julgamento do REsp 961.155/RN, entendeu que o legislador, ao utilizar a expressão "vários imóveis utilizados como residência", pretendeu apenas diferenciar os imóveis residenciais dos comerciais, industriais ou agrícolas sem destinação residencial[2].

A destinação familiar do imóvel, portanto, não é suficiente para comprovar que se trata de bem de família. Assim, na hipótese de o devedor ser proprietário de mais de um imóvel de natureza residencial, o benefício da impenhorabilidade previsto na Lei n. 8.009/1990 deve recair sobre o de menor valor, porquanto o instituto do bem de família existe para garantir o mínimo necessário à uma vida digna do devedor.

Embora já tenha transcorrido mais de uma década desde o referido julgamento, esse entendimento ainda continua atual e é aplicado pelas Cortes Estaduais[3]. Isso porque, o "imóvel residencial" para fins de aplicação da proteção conferida pela Lei n. 8.009/1990, não se trata propriamente o imóvel em que o devedor reside com sua família, mas sim do imóvel que possui essa vocação ou natureza, conforme se confere a seguir[4]:

 

“AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. BEM DE FAMÍLIA. IMPENHORABILIDADE. MAIS DE UM IMÓVEL. ARTIGO 5º, PARÁGRAFO ÚNICO, DA LEI Nº 8.009/1990. [...]  2. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é firme no sentido de que a Lei nº 8.009/1990 não retira o benefício do bem de família daqueles que possuem mais de 1 (um) imóvel. 3. O artigo 5º, parágrafo único, da Lei nº 8.009/1990 dispõe expressamente que a impenhorabilidade recairá sobre o bem de menor valor na hipótese em que a parte possuir vários imóveis utilizados como residência. Precedentes. 4. Agravo interno não provido”. (STJ, AgInt no REsp 1873254/MG, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 15/03/2021, DJe 19/03/2021).


Deste modo, ainda que o devedor, de fato, tenha constituído e comprovado a sua moradia permanente no imóvel de maior valor, se ele foi titular de outro imóvel de natureza residencial, isto é, que não seja de destinação comercial, industrial ou agrícola, a proteção do bem de família deverá recair sobre este de menor valor.

[1] Nesse sentido está a definição de Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho: “Na busca do estabelecimento de um conceito para ilustrar o instituto, podemos compreender o bem de família como o bem jurídico cuja titularidade se protege em benefício do devedor — por si ou como integrante de um núcleo existencial —, visando à preservação do mínimo patrimonial para uma vida digna”. (GAGLIANO, Pablo Stolze. PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Manual de direito civil. Volume único. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 1.227).

[2]  Assim: (1) “[...] 2. O legislador, ao utilizar a expressão "vários imóveis utilizados como residência", pretendeu apenas diferenciar os imóveis residenciais dos comerciais, industriais ou agrícolas sem destinação residencial. 3. Tal dispositivo reflete o caráter social da lei, garantindo moradia ao devedor e sua família, ainda que no mais humilde de seus imóveis, que deverá ser considerado impenhorável, permitindo a constrição sobre os demais. 4. A jurisprudência desta Corte, nesse ponto, não consagra interpretação mais elástica à Lei 8.009/90, sinalizando a possibilidade de considerar impenhorável o imóvel residencial de menor valor. 5. Recurso especial provido”. (STJ - REsp 961.155/RN, Rel. Ministra Eliana Calmon, Segunda Turma, julgado em 20/05/2008, DJe 11/06/2008, g.n.);

[3] Assim: (1) TJSP, AI n. 2011483-95.2020.8.26.0000, 21.ª Câmara de Direito Privado, Des. Rel. Décio Rodrigues, j. 27.07.2020; (2) TJMT, AI n. 10119085920208110000 MT, 1.ª Câmara de Direito Privado, Des. Rel. Nilza Maria Possas de Carvalho, j. 13.10.2020; (3) TJ-MG, AC n.10024081806887001, 11ª Câmara Cível, Desa, Rel. Shirley Fenzi Bertão, j.  20/09/2017; e (4) TJ-SP, AI n. 2003868-20.2021.8.26.0000, 21.ª Câmara de Direito Privado, Des. Rel. Décio Rodrigues  j. 19/04/2021.

[4] No mesmo sentido: STJ, AgInt no REsp 1873254/MG, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 15/03/2021, DJe 19/03/2021.