Da possibilidade de relativização da impenhorabilidade do bem de família quando de elevado valor

Nos termos do art. 789 do Código de Processo Civil, o devedor deve responder com todos os seus bens presentes e futuros para o cumprimento de suas obrigações, salvo restrições estabelecidas em lei. Entre as restrições existentes, se destaca a impenhorabilidade do bem de família prevista pela Lei nº 8.009/1990, que visa garantir o direito à moradia da entidade familiar, como um direito fundamental[1].

Porém, não são poucas as vezes em que nos deparamos com devedores que têm um imóvel que se enquadra na descrição de bem de família, mas que a suntuosidade do bem vai muito além do mínimo necessário para se assegurar uma existência digna para o devedor e sua família.

Diante desta perspectiva, assim como todas as leis que compõe o ordenamento jurídico, a Lei nº 8.009/1990 não deve ser interpretada de modo isolado, mas sim de forma sistemática e proporcional, já que o objetivo é a garantia uma existência digna e não o padrão de vida que o devedor aparenta ostentar em detrimento dos direitos do credor, servindo assim como blindagem patrimonial.

Ou seja, é necessário conciliar a proteção da dignidade humana do devedor e sua família com o direito à efetividade da tutela executiva do credor, pois, ressalvadas as devidas proporções, este também é um direito fundamental, nos termos do art. 5º, inciso XXXV da Constituição Federal. Por isso, na medida do possível, ambos os direitos devem ser preservados.

Deste modo, a relativização da impenhorabilidade do bem de família, quando de elevado valor, não visa demonstrar que o direito à tutela executiva do credor é superior à dignidade da pessoa humana, mas aplicar de forma proporcional e coerente ambos os institutos.

Para tanto, verificada a suntuosidade do bem de família, é plenamente possível que, com a alienação do bem, seja reservado um valor para compra de outro imóvel de padrão inferior, mas ainda digno, e o remanescente seja destinado ao pagamento do crédito em execução, sem que a dignidade do executado e sua família seja violada.

A impenhorabilidade do bem de família não pode ser entendida como absoluta, inclusive a própria Lei nº 8009/1990 prevê determinadas exceções, como é o caso do art. 2º que exclui da impenhorabilidade os veículos de transporte, obras de arte e adornos suntuosos. O mesmo se observa no parágrafo único do art. 5º, o qual prevê que, havendo vários imóveis utilizados como residência, a impenhorabilidade recairá sobre o de menor valor. Portanto, a própria Lei demonstra que o que se pretende proteger é a dignidade humana e não o alto padrão de vida do devedor.

Deste modo, em que pese a lei tenha sido omissa neste ponto, a mesma interpretação deve ser aplicada quando o devedor tiver apenas um imóvel de elevado valor, cuja alienação seja suficiente para garantir a compra de outra residência digna, com base nos padrões condizentes com a realidade da grande maioria da população brasileira, bem como para honrar as suas obrigações, ainda que parcialmente.

Embora o entendimento dominante ainda seja pela impossibilidade da relativização, sob o fundamento de que deve ser conferida à Lei nº 8009/1990 interpretação restritiva[2], recentemente o TJSP deu um importante passo nesta mudança, reconhecendo possibilidade de se penhorar e alienar o imóvel identificado como bem de família suntuoso, respeitadas determinadas restrições e garantindo a reserva de parte do valor para aquisição de outro imóvel, em condições dignas[3].

Portanto, cabe a nós, como intérpretes do direito, avaliar o caso concreto e levantar a discussão, a fim de alcançar uma aplicação justa das garantias aqui discutidas.

 

[1] “RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL. EXECUÇÃO. EMBARGOS DE TERCEIROS. PENHORA INCIDENTE SOBRE IMÓVEL NO QUAL RESIDEM FILHAS DO EXECUTADO.BEM DE FAMÍLIA. CONCEITO AMPLO DE ENTIDADE FAMILIAR.RESTABELECIMENTO DA SENTENÇA. 1. “A interpretação teleológica do Art. 1º, da Lei 8.009/90, revela que a norma não se limita ao resguardo da família. Seu escopo definitivo é a proteção de um direito fundamental da pessoa humana: o direito à moradia” (EREsp 182.223/SP, Corte Especial, Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, DJ 6/2/2002). 2. A impenhorabilidade do bem de família visa resguardar não somente o casal, mas o sentido amplo de entidade familiar. Assim, no caso de separação dos membros da família, como na hipótese em comento, a entidade familiar, para efeitos de impenhorabilidade de bem, não se extingue, ao revés, surge em duplicidade: uma composta pelos cônjuges e outra composta pelas filhas de um dos cônjuges. Precedentes. 3. A finalidade da Lei nº 8.009/90 não é proteger o devedor contra suas dívidas, tornando seus bens impenhoráveis, mas, sim, reitera-se, a proteção da entidade familiar no seu conceito mais amplo. 4. Recurso especial provido para restabelecer a sentença.” (STJ, REsp: 1126173 MG, 2009/0041411-3, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, Terceira Turma, julgado em 09/04/2013, DJe 12/04/2013)

[2] STJ, AgInt no AREsp 907573/SP, 2016/0104680-8, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, Terceira Turma, julgado em 20/09/2016, DJe 30/09/2016)

[3] “OBJEÇÃO PRELIMINAR – PRETENSÃO DE REVOGAÇÃO DOS BENEFÍCIOS DA JUSTIÇA GRATUITA CONCEDIDOS À APELADA EM 1º GRAU – DESCABIMENTO – acervo dos autos que se coaduna com a concessão do favor legal que deve ser mantido – objeção rejeitada. OBJEÇÃO PRELIMINAR – INTEMPESTIVIDADE DOS EMBARGOS – NÃO OCORRÊNCIA – embargos opostos dentro do prazo previsto no 675 do CPC – imóvel que não foi adjudicado, alienado por iniciativa particular, ou arrematado, pelo que os embargos foram ofertados dentro do prazo legal – inexistência de qualquer ressalva no sentido de que a contagem do prazo, nos termos do referido dispositivo legal, só se dá na hipótese de o embargante desconhecer a existência da constrição – como não é dado ao intérprete distinguir onde a lei processual não o faz, é inevitável que os embargos sejam considerados tempestivos – objeção rejeitada. EMBARGOS DE TERCEIRO ACOLHIDOS, COM DETERMINAÇÃO DE LEVANTAMENTO DA CONSTRIÇÃO – precedente rejeição, por falta de provas, do pedido formulado pelo executado, de reconhecimento do imóvel como bem de família – legitimidade para pugnar pela proteção conferida pela lei ao bem de família que é da entidade familiar – possibilidade de exame da questão nos presentes embargos – qualidade de bem de família demonstrada nos autos – imóvel localizado em bairro nobre da cidade de São Paulo, avaliado em quatro milhões, quinhentos e cinquenta mil reais – circunstância que torna possível a penhora e alienação do bem de família com restrições, com reserva de parte do valor para que a apelante possa adquirir outro imóvel, em condições dignas de moradia – solução que não implica violação à dignidade da família do devedor e que, ao mesmo tempo, impede que a proteção legal ao bem de família seja desvirtuada de modo a servir de blindagem de grandes patrimônios – interpretação sistemática e teleológica do instituto do bem de família (Lei nº 8.009/90) – penhora e alienação, com reserva do produto remanescente para a aquisição de outro imóvel, talvez mais modesto, mas nem por isso de pouca qualidade – bem que não poderá ser alienado por menos de 80% (oitenta por cento) do valor da avaliação atualizada que, especificamente no caso dos autos, será considerado preço vil – restrição que faz com que o remanescente certamente seja suficiente para aquisição de moradia apta a garantir padrão similar de conforto ao do imóvel penhorado – reconhecimento do bem de família mantido, contudo, com a manutenção da penhora para venda do bem penhorado nos termos delineados – recurso parcialmente provido, com determinação.” (TJSP, Apelação 1094244-02.2017.8.26.0100, Rel. CASTRO FIGLIOLIA, 12ª Câmara de Direito Privado, julgado em 02/09/2020, Dje 03/09/2020)