Astreintes vencidas, é possível revisar?

A multa cominatória, também chamada de astreintes, se encontra prevista no art. 537, do CPC/2015[1] e se constitui em um instrumento legal para forçar o cumprimento de uma decisão judicial, a fim de coibir o comportamento desidioso da parte contra a qual a Justiça impôs uma obrigação.

A medida não é um fim em si mesmo, motivo pelo qual o seu valor não pode ser mais interessante que a própria obrigação principal, nem irrisório ao ponto de não coagir o réu no cumprimento da determinação judicial. Nesta direção assevera Daniel Amorim Assumpção Neves[2]:

Tratando-se de medida de pressão psicológica, caberá ao juiz analisar as particularidades do caso concreto para determinar um valor que seja apto a efetivamente exercer tal influência no devedor para que seja convencido de que a melhor alternativa é o cumprimento da obrigação. [...] Dessa forma, caso o juiz note que o valor fixado originariamente se mostrou insuficiente para pressionar efetivamente o devedor a cumprir a obrigação, ou excessivo a ponto de não estimular o devedor a tal cumprimento, deve, inclusive de ofício, modificar o valor da multa.


Abordando o referido instrumento legal, no acordão publicado aos 03.08.2021, julgando caso ocorrido na vigência do CPC de 1973, a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, por ocasião do julgamento do EAREsp n. 650.536/RJ, decidiu pela possibilidade de revisão do valor das astreintes a qualquer tempo, “até mesmo de oficio, adequando-o a patamar condizente com a finalidade da medida no caso concreto, ainda que sobre a quantia estabelecida já tenha havido explicita manifestação, mesmo que o feito esteja em fase de execução ou cumprimento de sentença[3].

Constou do acórdão relatado pelo Ministro Raul Araújo que, ao analisar a necessidade de alteração das astreintes, não se pode enfatizar apenas a atitude do devedor, mas também o comportamento do credor da multa, que muitas vezes pode ficar “aguardando o momento em que suficientemente acumulada a fortuna que anteviu alcançar, desde o momento inicial em que fixada a astreinte, para só então ressurgir suplicante e comovente diante do julgador, denunciando o descumprimento da ordem e, naturalmente, deduzindo a cândida pretensão executiva do milionário valor acumulado”.

Consta, da ementa do julgado que acaba de ser publicado, o seguinte:

PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA EM AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. CABIMENTO. MÉRITO ANALISADO. VALOR ACUMULADO DAS ASTREINTES. REVISÃO A QUALQUER TEMPO. POSSIBILIDADE. CLÁUSULA REBUS SIC STANTIBUS. AUSÊNCIA DE PRECLUSÃO OU FORMAÇÃO DE COISA JULGADA. EXORBITÂNCIA CONFIGURADA. REVISÃO. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA CONHECIDOS E PROVIDOS. 1. É dispensável a exata similitude fática entre os acórdãos paragonados, em se tratando de embargos de divergência que tragam debate acerca de interpretação de regra de direito processual, bastando o indispensável dissenso a respeito da solução da mesma questão de mérito de natureza processual controvertida. 2. O valor das astreintes, previstas no art. 461, caput e §§ 1º a 6º, do Código de Processo Civil de 1973, correspondente aos arts. 497, caput, 499, 500, 536, caput e § 1º, e 537, § 1º, do Código de Processo Civil de 2015, pode ser revisto a qualquer tempo (CPC/1973, art. 461, § 6º; CPC/2015, art. 537, § 1º), pois é estabelecido sob a cláusula rebus sic stantibus, e não enseja preclusão ou formação de coisa julgada. 3. Assim, sempre que o valor acumulado da multa devida à parte destinatária tornar-se irrisório ou exorbitante ou desnecessário, poderá o órgão julgador modificá-lo, até mesmo de ofício, adequando-o a patamar condizente com a finalidade da medida no caso concreto, ainda que sobre a quantia estabelecida já tenha havido explícita manifestação, mesmo que o feito esteja em fase de execução ou cumprimento de sentença. 4. Embargos de divergência conhecidos e providos, para reduzir o valor total das astreintes, restabelecendo-o conforme fixado pelo d. Juízo singular.” (STJ, EAREsp n. 650.536/RJ, Corte Especial, Rel. Ministro Raul Araújo, j. 07/04/2021, DJe 03/08/2021)


A decisão, mesmo com respaldo na legislação e na jurisprudência da Corte Superior, no que se refere a possibilidade do julgador, a qualquer tempo, modificar e/ou excluir o valor das astreintes[4], vem causando discussão quanto à possibilidade de aplicação do entendimento firmado nos processos em que a fixação da multa ocorreu sob a vigência do CPC/2015.

A despeito de o Ministro Relator se referir em seu voto ao artigo 461 § 1.º, do CPC/1973 e ao artigo 537, § 1.º, do CPC/2015, tais disposições não são literalmente correspondentes: este tem redação mais precisa que aquele, pois prevê que a multa vincenda poderá ser revista ou excluída pelo julgador, disposição que não resta indicada no Código anterior.

Essa peculiaridade, ao que aparenta, não foi expressamente enfrentada pelo julgamento do EAREsp n. 650.536/RJ e encontra posicionamentos divergentes na doutrina. Se por um vértice, o recebimento pelo credor de uma quantia vultuosa, a título da multa cominatória, serve como causa para que alguns autores defendam a possibilidade de sua reanálise, em outro vértice, tem-se o texto da lei, do qual se pode extrair que apenas multas vincendas podem ser modificadas, o que faz com que parte dos doutrinadores defendam a impossibilidade de alteração de multas vencidas.

Sobre tais aspectos, cita-se a posição de Alexandre Freitas Câmara, que entende pela possibilidade de alteração da multa somente se não estiver vencida, uma vez que, alterar uma multa já vencida violaria o direito adquirido do credor[5].

De outra banda, Humberto Theodoro Jr.[6] fundamenta que, mesmo diante do CPC/2015, não há que se falar em preclusão da possibilidade de questionar o valor da multa, pois, a seu ver, ela não é um direito da parte, mas sim um instrumento judicial de coerção:

Pode-se pensar em preclusão, que impeça a alteração da multa, quando a parte tenha deixado de recorrer oportunamente da decisão que a cominou? Pensamos que não. A multa não é direito da parte. Na espécie, trata se de medida judicial coercitiva, utilizada para assegurar efetividade à execução. Interessa muito mais ao órgão judicial do que ao credor, o que lhe assegura o caráter de providência de ordem pública. Esse caráter está bem evidenciado na regra do art. 537, onde o poder-dever do juiz de aplicar a astreinte está expressamente previsto como exercitável independentemente de requerimento da parte; regra que se completa com a do § 1º do mesmo dispositivo, que, mesmo depois da respectiva fixação, prevê a possibilidade de o juiz de ofício “modificar o valor ou a periodicidade da multa vincenda”, sempre que verificar “que se tornou insuficiente ou excessiva.”


Ainda sobre o tema, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça[7], buscando colocar fim nas discussões existentes, vem se manifestando no sentido de que não há que se falar em multa vencida, enquanto houver discussão acerca do montante a ser pago:

“[...] Registre-se, por fim, que o recorrente afirma não ser possível a redução do valor da multa vencida, nos termos do §1º do art. 537 do CPC, uma vez que tal dispositivo dispõe apenas acerca da alteração de ofício do valor da multa vincenda. Acontece, que enquanto houver discussão acerca do montante a ser pago a título da multa cominatória, não há que falar em multa vencida. [...].” (STJ, REsp n. 1.849.005/GO, Rel. Ministra Nancy Andrighi, dec.monocrática, DJe 29/11/2019)


No entanto, são encontradas decisões hodiernas da Corte Superior que vão em sentido contrário:

“[...] 1. O cumprimento posterior da obrigação de fazer não interfere na exigibilidade da multa cominatória vencida, na linha do que dispõe o art. 537, § 1º, do CPC, que confere autorização legal para a modificação do valor, periodicidade, ou ainda, para a extinção da multa vincenda. Logo, as parcelas vencidas são insuscetíveis de alteração pelo magistrado, razão pela qual persiste o interesse recursal na presente insurgência”. (STJ, REsp n. 1.778.885/DF, 2.ª Turma, Rel.: Min. Og Fernandes, j. 15.06.2021, DJe 21.06.2021)


Em nosso sentir, portanto, o julgamento do EAREsp n. 650.536/RJ pelo Superior Tribunal de Justiça não colocou fim a discussão quanto à possibilidade ou não de redução do valor das astreintes já vencidas sob a égide do CPC/2015, parecendo inegável que o acórdão recentemente publicado abre espaço para que a questão seja ainda rediscutida e reavaliada pela Corte Superior. Há, de todo modo, julgados recentes do mesmo Tribunal que autorizam a revisão de multa judicial vencida, pois esta não ostentaria essa natureza “enquanto houver discussão acerca do montante a ser pago”, como acabamos de mencionar.

Muito provavelmente a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça acabará tendo que se debruçar, novamente, sobre esse tema, a fim de proferir decisão acerca da inteligência do § 1.º do art. 537 do CPC de 2015.

 

[1] Art. 537. A multa independe de requerimento da parte e poderá ser aplicada na fase de conhecimento, em tutela provisória ou na sentença, ou na fase de execução, desde que seja suficiente e compatível com a obrigação e que se determine prazo razoável para cumprimento do preceito.


  • 1º O juiz poderá, de ofício ou a requerimento, modificar o valor ou a periodicidade da multa vincenda ou excluí-la, caso verifique que:


   I - se tornou insuficiente ou excessiva;

   II - o obrigado demonstrou cumprimento parcial superveniente da obrigação ou justa causa para o descumprimento.

   [...]

[2] NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de direito processual civil – volume único. 8. ed. Salvador: JusPodivm, 2016. p. 2005 e 2009.

[3] STJ, EAREsp n. 650.536/RJ, Corte Especial, Rel.: Ministro Raul Araújo, J.: 07/04/2021, DJe 03/08/2021.

[4] Neste sentido, verifica-se a tese firmada pelo STJ ao decidir o Tema Repetitivo n. 706: "A decisão que comina astreintes não preclui, não fazendo tampouco coisa julgada."

[5] CÂMARA, Alexandre de Freitas. O novo processo civil brasileiro. São Paulo: Atlas, 2017, p. 370.

[6] THEODORO JR., Humberto. Curso de direito processual civil. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 184

[7] Neste sentido: STJ, AgInt no REsp n. 1846190/SP, Terceira Turma, Rel.: Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, J.: 20/04/2020; STJ, AgInt no AREsp n. 1662967/PR, Quarta Turma, Rel.: Ministro Luis Felipe Salomão, J.: 14/09/2020, DJe 22/09/2020;