As medidas de prevenção e tratamento do superendividamento na nova lei (14.181/2021)

O superendividamento é, há muito, uma realidade na vida das famílias brasileiras, e foi agravado pela pandemia do Coronavírus. Segundo a Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (PEIC)[1] da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), o percentual de famílias endividadas alcançou 67,3% em março de 2021.

Contudo, o ordenamento brasileiro previa apenas procedimentos destinados à recuperação de devedor empresário e sociedade empresária (Lei n. 11.101/2005), sem qualquer solução para o devedor pessoa natural que não a declaração de insolvência.

Em atenção a esse fato, foi sancionada em 1º de julho de 2021 a Lei n. 14.181/2021, visando a disciplina do crédito ao consumidor e a prevenção e tratamento do superendividamento, por meio de alterações no texto do Código de Defesa do Consumidor (Lei n. 8.078/1990) e do Estatuto do Idoso (Lei n. 10.741/2003).

A lei inicia instituindo como princípios da Política Nacional das Relações de Consumo o “fomento de ações direcionadas à educação financeira e ambiental dos consumidores” e a “prevenção e tratamento do superendividamento como forma de evitar a exclusão social do consumidor”, por meio de tratamento extrajudicial e judicial, com núcleos de conciliação e mediação específicos.

Além disso, com relação aos direitos básicos do consumidor, traz a ideia de crédito responsável, com a preservação do mínimo existencial na repactuação de dívidas e na concessão de crédito, e a necessidade de informação acerca dos preços dos produtos por unidade de medida.

Ademais, a lei torna nulas de pleno direito cláusulas contratuais que condicionem ou limitem o acesso ao Poder Judiciário, que prevejam carência em caso de impontualidade de prestações mensais, ou que impeçam o restabelecimento integral dos direitos do consumidor e de seus meios de pagamento quando purgada a mora ou celebrado acordo com os credores.

A Lei n. 14.181/2021 também inseriu dois capítulos no Código de Defesa do Consumidor: um referente à prevenção e tratamento do superendividamento (arts. 54-A a 54-G, CDC) e outro específico para a conciliação (arts. 104-A a 104-C, CDC).

O primeiro traz o conceito de superendividamento para fins de aplicação dos novos dispositivos: impossibilidade de pagamento da totalidade de suas dívidas oriundas de relações de consumo (incluindo operações de crédito, compras a prazo e serviços de prestação continuada), vencidas e vincendas, por pessoa natural, de boa-fé, sem comprometer seu mínimo existencial.

Ficam, assim, excluídas as pessoas jurídicas e, ainda, por expressa disposição do § 3.º do art. 54-A do CDC, as pessoas naturais cujas dívidas tenham sido contraídas mediante fraude ou má-fé, decorrentes de contratos celebrados dolosamente com o propósito de não realizar o pagamento e referentes à aquisição/contratação de produtos e serviços de luxo de alto valor.

A doutrina divide o superendividamento entre ativo e passivo[2]. O ativo ocorre quando o consumidor contrai voluntariamente as dívidas, e pode ser consciente - em caso má-fé, ou seja, o consumidor contrai a dívida ciente de que não tem condições e/ou com intenção de não as honrar – ou inconsciente – quando decorrente de compras impulsivas, de má gestão do orçamento familiar.

Já o passivo tem origem em fatores externos, como desemprego e doença na família, por exemplo. Assim, podemos considerar passivo o superendividamento decorrente da pandemia atual, do COVID-19.

Nesse sentido, verifica-se que o legislador privilegiou o superendividado passivo e, com ressalvas, o ativo inconsciente, dada a expressa exclusão de dívidas referentes a serviços e produtos e luxo.

Ademais, a Lei n. 14.181/2021 passou a exigir que, no fornecimento de crédito e na venda a prazo, seja informado ao consumidor de forma expressa e de fácil acesso, dentre outros itens, o custo efetivo total, a taxa efetiva mensal de juros, encargos atinentes ao atraso no pagamento, o prazo de validade da oferta, que deve ser, no mínimo, de dois dias, dados completos do fornecedor e a hipótese de liquidação antecipada e não onerosa do débito (art. 54-B, CDC).

Ainda, na oferta de crédito, ficam vedadas diversas condutas, como a indicação de que a operação de crédito poderá ser concluída sem consulta a serviços de proteção ao crédito ou sem avaliação da situação financeira do consumidor – como os comuns slogans “sem consulta ao SPC” - ou assediar ou pressionar o consumidor para contratar, principalmente em se tratando de consumidor idoso, analfabeto, doente ou em estado de vulnerabilidade agravada ou se a contratação envolver prêmio (art. 54-C, CDC).

Nota-se, assim, a preocupação com o consumidor vulnerável, seja por idade, desconhecimento ou, ainda, por se encontrar em situação financeira já desfavorável, que pode ser agravada com a contratação precipitada.

Por essa mesma razão é que o art. 54-D do CDC, incluído pela nova lei, exige que o fornecedor ou intermediário avalie, de forma responsável, as condições de crédito do consumidor, analisando as informações disponíveis em bancos de dados de proteção ao crédito.

O segundo capítulo inserido no Código de Defesa do Consumidor pela Lei n. 14.181/2021 trata da possibilidade de ser realizada a conciliação judicialmente, por meio procedimento que, em alguns pontos, assemelha-se ao de recuperação judicial previsto na Lei n. 11.101/2005.

Nos termos do art. 104-A, o processo deverá ser instaurado pelo consumidor, e contará com a realização de audiência conciliatória com todos os credores das dívidas contempladas pela lei. O consumidor deverá apresentar proposta de plano de pagamento com prazo máximo de cinco anos, que preserve seu mínimo existencial, bem como as garantias e formas de pagamento originalmente pactuadas.

Além das dívidas contraídas dolosamente sem intenção de realizar o pagamento, já tratadas acima, ficarão excluídas do procedimento conciliatório os contratos de crédito com garantia real, de financiamentos imobiliários e de crédito rural.

Todos os credores deverão comparecer, ainda que por procurador com poderes especiais e plenos para transigir, sob pena de, não o fazendo de forma injustificada, ter suspensa a exigibilidade do débito e interrupção dos encargos de mora. O credor ausente também ficará compulsoriamente sujeito ao plano de pagamento, e receberá apenas após o pagamento dos credores presentes.

Realizada a audiência, caso não haja êxito na conciliação com quaisquer credores, poderá ser instaurado processo por superendividamento para revisão e integração dos contratos e repactuação das dívidas remanescentes. Para tanto, o procedimento contará com um plano judicial compulsório e será realizada a citação de todos os credores cujos créditos não tenham integrado o acordo celebrado, para que juntem documentos e as razões da negativa de adesão do plano voluntário ou de renegociar.

Com o objetivo de evitar que tal procedimento seja utilizado de forma indistinta e reiterada, o § 5.º do art. 104-A admite que o consumidor realize novo pedido apenas dois anos após a liquidação das obrigações previstas no plano de pagamento homologado.

A lei também prevê a possibilidade de conciliação administrativa, através dos órgãos do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, como o Procon, por exemplo.

Por fim, a Lei n. 14.181/2021 modifica também o Estatuto do Idoso, inserindo um novo parágrafo em seu art. 96. Assim, fica excluída a negativa de crédito motivada por superendividamento do crime de discriminação de pessoa idosa por impedir ou dificultar seu acesso a operações bancárias.

De um modo geral, verifica-se que a nova lei tem a finalidade de solucionar um problema latente na sociedade brasileira, que merece, de fato, ações para prevenção e solução. A educação financeira e a preservação do mínimo existencial são pontos importantes nesse contexto, que merecem destaque.

Contudo, uma das dificuldades que já se enfrenta nos processos judiciais é a constatação e prova da má-fé, o que poderá ensejar a utilização abusiva do instituto, com o abarrotamento do Poder Judiciário com demandas pautadas na nova lei.

Assim, caberá aos advogados, bem como aos demais operadores do Direito, realizar uma atuação ética e especializada, com esforço interpretativo sempre no sentido de alcançar o fim pretendido pelo legislador.

 

 

[1] Disponível em Acesso em 09.07.2021.

[2] SCHMIDT NETO, André Perin. Superendividamento do consumidor: conceito, pressupostos e classificação. In: Revista do Direito do Consumidor, São Paulo, v. 18, n. 71, p. 9-33, jul/set. 2009.