"Advocacia colaborativa também pode ser aplicada a disputas empresariais"


 




Assim como a adoção de mecanismos que desencorajem o litígio, a sobrecarga de processos que pesa sobre o Judiciário não é nenhuma novidade. Além dos mecanismos processuais, a lentidão e os custos de uma ação são fatores suficientes para que qualquer pessoa pense duas vezes antes de buscar a Justiça. O quadro coloca o Judiciário em uma situação delicada: embora sirva para simplesmente evitar que mais uma nova ação comece a correr, também é verdade que um problema deixou de ser solucionado; por outro lado, quando vira processo, a solução não é satisfatória.




Premiada pelo Innovare em 2013, a advocacia colaborativa se apresenta como uma opção para solucionar conflitos sem que seja necessário recorrer à Justiça. A ideia é criar um ambiente de colaboração, em que as partes, junto com seus advogados, possam chegar a um acordo, sem a participação de terceiro como acontece na mediação. Se os clientes insistirem no processo judicial, os advogados devem abrir mão da causa.




“A lei nem sempre pode dar às partes o que elas querem. Nos EUA, às vezes, quando um caso vai ao tribunal, o juiz vai chegar com uma decisão e ambos os lados vão apelar. No processo colaborativo, uma vez que é possível enxergar todos os fatos e entender o caso, as partes são capazes de chegar a uma resolução”, explica a americana Sherrie Abney, advogada e membro do comitê de direito colaborativo da American Bar Association (equivalente à ordem dos advogados dos EUA)




Recente no Brasil, foi nos EUA que a prática se difundiu, servindo de plataforma para resolver casos de família. Mas a proposta da advocacia colaborativa é que ela também seja aplicada em disputas empresariais. A presidente da seção de Direito colaborativo da State Bar of Texas (a ordem local) Anne Shuttee garante que “os clientes se sentem muito confortáveis durante o processo, pois trata-se a disputa quase como se fosse uma transação comercial”.




Mas é possível viver de advocacia colaborativa? As duas afirmam que sim. Nas contas de Abney, à medida que a prática se popularizar, será possível ganhar tanto quanto na advocacia tradicional. “A diferença é que em vez de ter um processo durando sete anos, os advogados poderão ter 200 casos em sete anos”. Ainda assim, elas reconhecem que faltam advogados capacitados para que o método seja a primeira opção diante de uma disputa. É para falar sobre a formação de profissionais e as possibilidades que a advocacia colaborativa oferece que Anne e Sherrie concederam esta entrevista por e-mail à Revista Eletrônica Consultor Jurídico.




Leia abaixo a entrevista:




ConJur — O que são práticas colaborativas nas áreas cível e empresarial?
Sherrie Abney — É um procedimento não adversarial de resolução de conflitos, pelo qual empresas e empresários podem, junto com seus advogados, voluntariamente discutir problemas e falar sobre suas principais preocupações. Juntos eles podem desenvolver opções e negociar soluções compartilhadas.
Anne Shuttee — As partes, nessas negociações, são assessoradas por advogados colaborativos, especialistas em facilitar conflitos, que têm, como fundamental missão, representar seus clientes em busca de uma solução aceitável para resolver o problema e atender às preocupações externadas.




ConJur — Como a prática colaborativa poderia, em um futuro próximo, se tornar a opção inicial para clientes e advogados nos mais diversos tipos de conflitos, em vez dos tradicionais métodos adversariais?
Sherrie Abney — O litígio está na mente das pessoas como primeira opção, quando, na verdade, deveria ser a última. Para mudar isso, a percepção do público e da comunidade jurídica deve ser mudada. É preciso que direito colaborativo e negociação baseada em interesse sejam ensinados nas faculdades de Direito. Quando os advogados saírem da universidade, eles estarão familiarizados com essas técnicas. Há pessoas que querem uma resolução, não querem prolongar uma luta, tudo o que importa é resolver sua disputa e continuar com seus negócios e suas vidas. E quando as duas partes querem fazer isso, então o processo colaborativo é, ou deveria ser, a primeira opção, mas não será se não educarmos e esclarecermos as pessoas nesse aspecto.




ConJur — Há uma confusão de conceitos entre as técnicas não adversariais de resolução de conflitos: conciliação, mediação e, agora, práticas colaborativas. Como diferenciar melhor os três modelos?
Sherrie Abney — Nos EUA temos a mediação e o processo colaborativo. A mediação nos Estados Unidos é muito adversarial. A maioria é barganha posicional. Eu entro e faço minha primeira oferta e, em seguida, há uma contraoferta e, então, as partes estão na mesma sala e eles simplesmente vão e voltam, fazem ameaças... “Se você não fizer o que eu quero, então eu vou ao tribunal e vou fazer isso, isso e isso...” Eu sei que no Brasil muita mediação é baseada em interesses na área da família. No civil, eu entendo que não é tudo baseado em interesses, pois os advogados ainda são muito agressivos no processo de mediação. No processo colaborativo os advogados não podem ser agressivos e devem trabalhar juntos. Eles têm que aprender a olhar interesses e ajudar seus clientes nessa área: ver quais são suas preocupações, quais são seus interesses e tentar ajudar os clientes a chegarem a um acordo.
Anne Shuttee — O processo colaborativo, ao contrário da mediação, não requer a presença de uma terceira parte neutra. As partes, em conjunto com seus advogados colaborativos, podem chegar a um acordo. Para a mediação, este terceiro neutro é fundamental e suponho que o mesmo seja verdade para a conciliação.




ConJur — Qual é a melhor maneira de treinar os advogados, principalmente na área da advocacia colaborativa civil e comercial?
Sherrie Abney — A primeira coisa que o advogado precisa é de entusiasmo e crença no processo. No treinamento, as pessoas aprendem sobre negociação, acordos de participação e as diferentes escolhas que têm de ser feitas a fim de organizar as coisas. Eles aprendem sobre os problemas éticos que podem surgir no processo colaborativo e o que eles terão de fazer se isso acontecer. Além disso, eles fazem encenações em estudos de caso para que possam ter esse tipo de experiência, o que os ajuda a serem capazes de transferir essa experiência. Isso dá ao advogado colaborativo uma oportunidade para testar o processo, para ter uma experiência anterior ao momento em que eles realmente tenham um caso, possibilitando-os a estar melhor preparados para fazer seu trabalho. É importante que eles façam isso, mas, por outro lado, existem alguns advogados que podem ter todo esse treinamento e, a menos que se comprometam com o processo e realmente acreditem nele, nem todo o treinamento do mundo irá transformá-los em advogados colaborativos.
Anne Shuttee — Nos Estados Unidos há uma série de grupos de prática de colaboração que se reúnem periodicamente para falar sobre questões de interesse comum e colocar, posteriormente, em programas especiais de formação. Os advogados desses grupos, por sua vez, frequentemente lidam com casos em conjunto, no sentido de que eles vão ter um caso e outro advogado será um membro do grupo de prática e, portanto, eles estão lidando com casos de colaboração junto dos advogados que conhecem e confiam. E, assim, grupos de prática de colaboração podem ser uma adição útil uma vez que temos um grupo de advogados colaborativos treinados.




ConJur — Qual é a principal diferença entre as questões familiares e empresariais nesse tipo de trabalho? Por que as práticas colaborativas servem para ambos?
Sherrie Abney — A prática familiar nos EUA é, muitas vezes, feita com especialistas em saúde mental e especialista em finanças. Eu acho que os advogados de família estão, provavelmente, trabalhando para manter as pessoas muito mais calmas e mais tranquilas de modo a falar agradavelmente uns com os outros. Nas situações cíveis, há pessoas batendo na mesa ou gritando. Enquanto elas não estão atacando pessoalmente um ao outro e seguem em frente com seu argumento, elas ainda podem continuar no processo colaborativo e fazer as coisas acontecerem. Há uma atmosfera diferente nos casos de família e nos cíveis. Outra diferença é em relação aos tipos de especialistas que você vai usar. No caso cível, você pode precisar de arquiteto, de um engenheiro, um especialista em segurança, um contador forense. Esse especialista, por sua vez, entra com seu relatório no processo colaborativo. E por que fazer isso na área civil? Por uma série de razões: uma delas é a preocupação com o relacionamento contínuo, apesar de dizerem que, em situações civis você não precisa se preocupar com relacionamentos contínuos.
Anne Shuttee — Concordo. Há muitas relações comerciais que precisam ser continuadas. Eu soube que no Brasil 90% das empresas são familiares. Se esse é realmente o caso, então 90% das disputas que vocês têm provavelmente possuem relações contínuas que não podem ser destruídas, pois mesmo que essas famílias dividam um negócio, elas não querem dividir a família. E se o negócio não for familiar e as partes não se importarem com a relação, é muito mais rápido. Se as partes estão cooperando é possível resolver as coisas em uma só reunião. Eu resolvi questões que terminaram em uma reunião, outras podem levar vários meses, mas vários meses é melhor do que vários anos presa ao Judiciário. Quanto mais cedo o problema é resolvido, menor a despesa. Não se trata apenas de dinheiro, mas do tempo que as pessoas passam estressadas e afastadas de seus negócios ou seus empregos.




ConJur — Os advogados são o centro do processo colaborativo ou são as partes?
Sherrie Abney — Para mim, são as partes, não o advogado. Eu uso o seguinte exemplo: as partes são os pilotos e estão se movendo em direção ao seu destino, que é a resolução. Os advogados são os navegadores e eles vão ajudar as partes a navegar por esse processo. Há cinco passos pelos quais eles vão ter que passar: descobrir o que as partes realmente querem, obter as informações necessárias, ver as opções, avaliar as opções e negociar a resolução. No processo de litígio a ênfase está nos advogados, no juiz, nas leis, no tribunal. A lei nem sempre pode dar às partes o que elas querem. Nos EUA, às vezes, quando um caso vai ao tribunal, o juiz vai chegar com uma decisão e ambos os lados vão apelar. No processo colaborativo, uma vez que é possível enxergar todos os fatos e entender o caso, as partes são capazes de chegar a uma resolução. Todo mundo vai embora acreditando que fez um bom trabalho, assim, resolve-se o problema.
Anne Shuttee — O processo colaborativo é favorável às relações empresariais, diferente do processo de litígio. Os advogados estão, em essência, trazendo eficiência e organização aos negócios e às formas de resolução dos impasses. Os clientes se sentem muito confortáveis durante o processo, pois trata-se a disputa quase como se fosse uma transação comercial, o que de certa forma realmente é. No contexto colaborativo, todo o processo de resolução de disputas é extremamente favorável às empresas, impecavelmente amigável, sem levar esses empresários ao sistema legal tradicional, o qual é extremamente hostil em função dos atrasos, dos custos, das despesas com atividades desnecessárias, das demandas impostas aos funcionários no local de trabalho, dos agendamentos inconvenientes, entre outros. Isso tudo, aliado ao fato de as soluções serem impostas. Ou seja, as soluções convencionais impostas por um sistema tradicional pode não ter nenhuma referência ou relevância para as reais necessidades e preocupações dos negócios das partes.




ConJur — Quanto aos advogados e clientes, você acha que é financeiramente melhor para o cliente ou para o advogado?
Sherrie Abney — Financeiramente será muito melhor para o cliente do que seria o litígio. Hoje ainda não é fácil ganhar a vida sendo apenas um advogado colaborativo, pelo menos na área civil e comercial. Mas também ainda não há suficientes advogados treinados e não há empresários suficientes que realmente entendam a importância do processo. À medida que avançamos nessa direção, acredito que os advogados vão ganhar tanto dinheiro quanto ganham com a prática tradicional. A diferença é que ao invés de ter um processo durando sete anos, eles poderão ter 200 casos em sete anos. Cada caso vai ser muito mais curto, eles vão cobrar menos dos indivíduos, mas vão poder trabalhar muito mais e garantir sua sanidade mental. Os advogados não ficarão acordados a noite toda tentando se preparar para audiências, para ir ao tribunal ou a julgamento, eles não vão se preocupar se "Meu cliente é capaz de dar um bom testemunho?" A agenda não vai se tornar impossível, eles não vão estar na posição que eu estive em Dallas, quando eu deveria estar em dois tribunais ao mesmo tempo em diferentes litígios. Eu não tenho esse problema no processo colaborativo, pois eu estou no controle junto do meu cliente e das outras partes na decisão sobre quando vamos nos juntar e onde vamos nos encontrar.




ConJur — Em que fase vocês estão nos Estados Unidos quanto à prática colaborativa civil e comercial? O que podemos aprender com vocês e com os outros países que também estão começando, considerando nossa cultura?
Sherrie Abney — Estamos nos estágios iniciais nos Estados Unidos e, embora alguns de nós tenhamos incitado a prática colaborativa para se deslocar da família para a área civil há mais de 10 anos, ainda somos poucos. Eu tenho dado um curso de direito colaborativo na Southern Methodist University Law School nos últimos quatro anos, e Harvard está começando a ministrar o curso apenas este ano. Algumas das outras universidades nos Estados Unidos têm falado comigo sobre compartilhamento de informações. Eles estão pensando em fazer cursos, esse trabalho está apenas começando. Foi-me dito por uma senhora muito sábia que os pioneiros ficam muito cansados, brutos, mas alguém tem que tentar, ser o primeiro a fazer isso. As pessoas no Brasil que estão começando agora não podem desistir. Os pioneiros têm que construir o lugar para viver, têm todos os tipos de problemas. É aí que nós estamos no processo de colaboração civil. Mas é algo necessário, e eu acho que é a coisa certa a fazer.




ConJur — As pessoas normalmente cumprem os acordos?
Sherrie Abney — Eu tenho um caso em que nós paramos e não finalizamos, mas eu acho que essas pessoas simplesmente acabaram por decidir que não queriam prosseguir com a demanda jurídica. À parte deste, todos os casos em que eu trabalhei chegaram a uma resolução. O fato é que quando o juiz ordena que a parte faça algo, na maior parte do tempo ela não está muito feliz com isso. Mas se ela sentar e conversar com a outra parte, olhar para todos os fatos com as informações que possui, pode concluir "ok, vou concordar” e assina um acordo que na maioria das vezes é cumprido. As pessoas estão muito mais dispostas a fazê-lo, porque tiveram escolha nesta decisão, alguém não disse simplesmente "Bem, esta é a lei, então estou ordenando que você faça isso". O que eu acho mais impressionante sobre o processo colaborativo é o que as partes podem obter a partir dele, além de apenas dinheiro ou alguma ordem. Às vezes as pessoas querem um pedido de desculpas ou o reconhecimento por algo que eles fizeram, querem ser apreciados, querem que alguém os reconheça, e isso não acontece no litígio, e para algumas pessoas isso é mais importante do que o dinheiro. Quando alguém se machuca ou quando há um erro médico, eles podem ir ao tribunal e talvez possam conseguir determinado valor em dinheiro, mas esses dólares são suficientes para cuidar deles? No processo colaborativo eles podem conseguir que o prestador de serviços médicos aceite cuidar deles até que o problema se resolva e, então eles não vão ficar sem dinheiro se algo inesperado acontecer. Esses são os tipos de acordos que é possível conseguir na advocacia colaborativa e que dificilmente seriam obtidos no tribunal.




Fonte: Conjur