A reprodução humana assistida post mortem e alguns dos seus desdobramentos jurídicos

As novas tecnologias e a evolução dos métodos científicos permitiram o desenvolvimento de técnicas de reprodução humana assistida, que fazem parte do extenso cenário dos conflitos da bioética.

O Direito apreendeu grande parte desses conflitos. Com efeito, “o desenvolvimento da tecnologia bioética aliado à expansão, na esfera jurídica, dos espaços de autonomia existencial, propiciaram o reconhecimento de tutela de uma verdadeira autonomia reprodutiva”[1].

A autonomia reprodutiva irradia efeitos na esfera do planejamento familiar e no projeto de vida das famílias contemporâneas. Atualmente, é possível que famílias se utilizem das técnicas de reprodução humana assistida, seja para implementá-las desde logo, seja para fins de utilização do material genético em momento futuro.

Repercussões e problemas jurídicos podem existir em ambas as hipóteses. É possível que se indague, por exemplo: Em caso de impossibilidade de se ter filhos por motivos de saúde, o Estado ou os planos de saúde seriam responsáveis pelo custeio dos tratamentos com a utilização das técnicas de reprodução humana assistida? Quando um casal, em conjunto, colhe o material genético para utilizá-lo no futuro, quais são as consequências da desistência por um deles? A escolha das características genéticas do feto é admitida no ordenamento jurídico?[2].

Em específico acerca da utilização do material genético em momento futuro, debate-se acerca dos limites e das possibilidades da implantação de embriões após a morte de um dos doadores. Em decisão inédita, a 4.ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, no Recurso Especial n. 1.918.421/SP, por três votos a dois, decidiu, no dia 08 de junho de 2021, que a utilização do material genético após a morte de um dos doadores – no caso, de um dos cônjuges – só poderia ser efetivada mediante prévia manifestação de vontade inequívoca, expressa e formal. No caso concreto julgado pela Corte Superior, o acórdão proferido pela Corte Estadual, que havia autorizado a realização da fertilização post mortem pela viúva sobrevivente, foi reformado, acolhendo-se a irresignação dos filhos do cônjuge falecido, que se mostraram contrários ao desejo da viúva[3].

A questão guarda relação com as disposições previstas no artigo 1.597, incisos III, IV e V, do Código Civil, que tratam da presunção de paternidade em casos de concepção artificial homóloga e heteróloga. Nas hipóteses ali previstas, entretanto, nada se diz sobre a possibilidade de utilização dos matérias genéticos após a morte de um dos doadores (e nem as condições para tanto), existindo, portanto, uma lacuna legal.

A decisão proferida recentemente pelo Superior Tribunal de Justiça, a nosso ver, mostra-se acertada e coerente, na medida em que preserva a autonomia privada que reverbera, com incidência máxima, no campo do planejamento familiar.

Como afirmam Renata Vilela Multedo e Rose Vencelau Meireles, no campo familiar o poder conferido pela autonomia privada foi atribuído ao particular para autorregular não apenas interesses próprios, mas interesses comuns da entidade familiar[4]. De fato, “a pessoa só constrói sua autonomia na interação com o outro, na troca de experiências, no processo dialético do seu amadurecimento e aprendizado de vida[5]”.

O entendimento do Superior Tribunal de Justiça também reforça a necessidade de que instrumentos contratuais formais sejam difundidos no âmbito do Direito de Família, como já se discorreu em oportunidade anterior[6].

Os temas atinentes às técnicas de reprodução humana assistida repercutem, cada vez mais no âmbito do Poder Judiciário, em especial em razão da ausência de produção legislativa sobre a matéria.

Aliás, em 15 de junho de 2021, foi publicada a Resolução do Conselho Federal de Medicina n. 2.294/2021, que, nos termos da própria Resolução, “adota as normas éticas para a utilização das técnicas de reprodução assistida, [...] tornando-se o dispositivo deontológico a ser seguido pelos médicos brasileiros”. A Resolução n. 2.294/2021 revoga resoluções anteriores que versavam sobre a matéria e traz algumas mudanças, sem, contudo, esgotar a temática e, em especial, os desdobramentos jurídicos que incidem sobre a reprodução humana assistida[7].

 

 

[1] KONDER, Carlos Nelson; KONDER, Cíntia Muniz de Souza. Violações à autonomia reprodutiva no cenário das novas tecnologias. In: In: TEPEDINO, Gustavo; TEIXEIRA, Ane Carolina Brochado; ALMEIDA, Vitor (coords.). O Direito Civil entre o sujeito e a pessoa: estudos em homenagem ao professor Stéfano Rodotá. Belo Horizonte: Fórum, 2016. p. 217-232. p. 217.

[2] Acerca dos questionamentos, remetemos o leitor ao texto citado na Nota de Rodapé imediatamente anterior.

[3] Considerando até esta data o acórdão não foi lavrado no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, as informações foram colhidas do site Migalhas:

https://www.migalhas.com.br/quentes/346777/stj-proibe-implantacao-de-embrioes-apos-morte-de-um-dos-conjuges. Acesso em: 02 jul. 2021.

[4] MULTEDO, Renata Vilela; MEIRELES, Rose Vencelau. Autonomia privada nas relações familiares: direitos do Estado e Estado dos direitos nas famílias. In: ERHARDT JÚNIOR, Marcos; CORTIANO JUNIOR, Erolthus. Transformações no Direito Privado nos 30 anos da Constituição: estudos em homenagem a Luiz Edson Fachin. Belo Horizonte: Fórum, 2019. p. 625-636. p. 627.

[5] TEPEDINO, Dilemas do afeto. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Coord.). Anais do X Congresso Brasileiro de Direito de Família: Famílias nossas de cada dia. Belo Horizonte: Fórum, 2015. p. 11-28.p. 20.

[6] Em texto publicado em 09.02.2021, discorreu-se acerca da crescente tendência de contratualização das relações familiares.

Disponível em: https://medina.adv.br/a-contratualizacao-das-relacoes-familiares-os-negocios-juridicos-do-direito-de-familia. Acesso em 02 jul. 2021.

[7] Acerca da temática, destacamos o texto de Igor de Lucena Mascarenhas e Luciana Dadalto, intitulado “Instabilidade normativa: nova resolução do CFM sobre reprodução humana assistida”.

Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/instabilidade-normativa-nova-resolucao-do-cfm-sobre-reproducao-humana-assistida-01072021. Acesso em 02 jul. 2021.