A garantia de recebíveis de cartão e sua regulamentação pelo BACEN e pelo CVM

A garantia de cessão fiduciária de recebíveis oriundos de vendas a cartão de crédito e débito[1] tem se tornado cada vez mais comum no ambiente bancário. Por esse motivo, somado à constante modernização das tecnologias envolvendo a utilização das “maquininhas” pelos estabelecimentos comerciais, o Banco Central do Brasil e o Conselho Monetário Nacional[2] têm, nos últimos anos, produzido normas importantes com vistas a regulamentar esta prática.

A Circular n. 3.952/2019 do Banco Central[3], por exemplo, “dispõe sobre o registro de recebíveis decorrentes de transações no âmbito de arranjo de pagamento baseado em conta pós-paga e de depósito à vista integrante do Sistema de Pagamentos Brasileiro”, já indicando, de início, o que se deve compreender por (i) instituições credenciadoras; (ii) negociação de recebíveis de arranjo de pagamento; (iii) unidade de recebíveis; e (iv) agenda de recebíveis. Os arts. 3.º, 4.º e 5.º, por sua vez, regulamentam o registro da agenda de recebíveis e a negociação das unidades de recebíveis.

A Resolução n. 4.734/2019 do Conselho Monetário Nacional[4] (posteriormente alterada pelas Resoluções n. 4.867/2020[5] e n. 4.853/2020[6], também do CVM), por sua vez, estabelece obrigações, condições e procedimentos que devem ser observados pelas instituições financeiras no contexto da Circular n. 3.952/2019, estabelecendo premissas conceituais sobre: (i) recebíveis de arranjo de pagamento; (ii) recebíveis constituídos; (iii) recebíveis a constituir; (iv) saldo devedor da operação de crédito; (v) operações de desconto de recebíveis de arranjo de pagamento; (vi) operações de crédito garantidas por recebíveis de arranjo de pagamento; e (vii) operações de antecipação.

Mais recentemente, a Resolução n. 72/2021 do Banco Central[7] e a Resolução n. 4.888 do Conselho Monetário Nacional[8] prorrogaram de 17.02.2021 para 07.06.2021 o prazo para entrada em vigor das regulações sobre o registro e a negociação de recebíveis de arranjos de pagamentos, nos termos da Resolução n. 4.734, de 27 de junho de 2019, e da Circular n. 3.952, de 27 de junho de 2019, com o intuito de permitir que entidades registradoras, entidades credenciadoras e instituições financeiras façam ajustes adicionais em seus sistemas e que maiores testes sejam realizados para a sua segura implantação[9].

A garantia de cessão fiduciária de recebíveis, não raramente, está no centro de sofisticadas discussões no contexto tanto de Recuperações Judiciais (em razão da incidência do art. 49, § 3.º, da Lei n. 11.101/2005) como de demandas que visam ao reestabelecimento do domicílio bancário previsto nos instrumentos contratuais.

Sobre esse segundo ponto, sabe-se que, lamentavelmente, a prática consistente na alteração do domicílio bancário como uma manobra para “burlar” a chamada “trava bancária” é bastante comum. Frequentemente se verifica, por exemplo, que os estabelecimentos comerciais (i) alteram o CNPJ vinculado às maquinas de cartão de crédito e débito direcionando seus recebíveis à alguma outra empresa, normalmente do mesmo grupo econômico, que não tenha cedido seus recebíveis a alguma instituição financeira; (ii) selecionam, utilizando esse mesmo raciocínio, qual máquina, vinculada a determinado CNPJ, será destinada a processar pagamentos com determinadas bandeiras; e (iii) alteram a credenciadora utilizada sem comunicar a instituição financeira cessionária. Nesse contexto, vê-se que todas essas condutas são executadas de modo relativamente simples, e exigem, em contrapartida, um acompanhamento muito próximo das instituições financeiras para o monitoramento da higidez da garantia antes oferecida.

Segundo nota divulgada pela Febraban no Informativo divulgado no último dia 07.06.2021[10], a operacionalização do registro e a nova forma de negociação de recebíveis de cartão tende a prestigiar tanto os estabelecimentos quanto as instituições financeiras. E isso porque as empresas poderão otimizar sua agenda de recebíveis, cedendo somente uma parte para determinada instituição financeira, a depender do valor do crédito tomado, ou então partes distintas a instituições financeiras igualmente distintas, viabilizando a garantia de mais de uma operação com recursos (diferentes, evidentemente) advindos da mesma fonte. Sob o ponto de vista das instituições financeiras, haverá maior segurança – proporcionada pela supervisão das registradoras – no sentido de que a mesma parcela da agenda de pagamentos do estabelecimento comercial não seja oferecida em garantia a mais de um credor.

A regulamentação, considerada sistematicamente, tende a tornar a (complexa) dinâmica dos recebíveis, já há muito tempo consolidada no mercado financeiro, muito mais segura e previsível – tanto aos estabelecimentos quanto às instituições financeiras. A medida, desde que adequadamente implementada, certamente terá o condão de, inclusive, diminuir o spread bancário em operações que contemplem tais garantias, justamente em razão da mitigação dos riscos para os dois lados.

 

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[1] Para melhor compreensão dos conceitos e da dinâmica envolvendo a cessão fiduciária de recebíveis de cartão, tem-se a Cartilha da Febraban sobre o Sistema de Controle de Garantias (SGC), disponível em: https://cmsportal.febraban.org.br/Arquivos/documentos/PDF/Cartilha%20SCG_Estabelecimentos.pdf.


[2] O CVM é o órgão colegiado presidido pelo Ministro da Economia, pelo Presidente do Banco Central do Brasil e pelo Secretário Especial de Fazenda do Ministério da Economia.


[3] Disponível em: https://www.bcb.gov.br/pre/normativos/busca/downloadNormativo.asp?arquivo=/Lists/Normativos/Attachments/50796/Circ_3952_v4_P.pdf


[4] Disponível em: https://www.bcb.gov.br/pre/normativos/busca/downloadNormativo.asp?arquivo=/Lists/Normativos/Attachments/50795/Res_4734_v5_P.pdf


[5] Disponível em: https://www.bcb.gov.br/estabilidadefinanceira/exibenormativo?tipo=Resolu%C3%A7%C3%A3o%20CMN&numero=4867


[6] Disponível em: https://www.bcb.gov.br/estabilidadefinanceira/exibenormativo?tipo=Resolu%C3%A7%C3%A3o%20CMN&numero=4853


[7] Disponível em: https://www.bcb.gov.br/estabilidadefinanceira/exibenormativo?tipo=Resolu%C3%A7%C3%A3o%20BCB&numero=72


[8] Disponível em: https://www.bcb.gov.br/estabilidadefinanceira/exibenormativo?tipo=Resolu%C3%A7%C3%A3o%20CMN&numero=4888


[9] Disponível em: https://www.bcb.gov.br/detalhenoticia/17319/nota


[10] Disponível em: https://cmsportal.febraban.org.br/Arquivos/documentos/PDF/ISEB_07%20jun.pdf