A dispensabilidade de comprovação do consilium (e do concilium) fraudis para o reconhecimento da fraude contra credores

O ordenamento jurídico brasileiro prevê a possibilidade de que determinados negócios jurídicos sejam anulados caso estejam eivados de algum defeito (ou vício). Os defeitos (ou vícios) podem ser classificados em (i) vícios do consentimento, previstos nos arts. 138 a 157 do Código Civil, e (ii) vícios sociais, previstos nos arts. 158 e ss. do Código Civil e art. 167 do Código Civil.

A fraude contra credores se apresenta como um desses vícios sociais (cf. arts. 158 e ss. do CC) e é definida por Silvio Rodrigues como a prática pelo devedor insolvente, ou na iminência de assim se tornar, de atos suscetíveis de diminuir seu patrimônio, reduzindo, desse modo, a garantia que esse representa para o resgate de suas dívidas[1].

A Ação Pauliana, ferramenta processual utilizada pelo credor que busca a anulação do negócio jurídico celebrado em fraude contra credores (ou a declaração de ineficácia, como se posiciona a jurisprudência do STJ[2]), tem por objetivo combater fraudes patrimoniais e preservar direitos de terceiros de boa-fé, e exige a comprovação da presença de três requisitos, quais sejam: (i) a anterioridade do crédito; (ii) o eventus damni; e (iii) a scientia fraudis[3]-[4].

A anterioridade do crédito diz respeito à necessidade de que, à época da celebração do negócio jurídico anulável, o crédito já tenha sido constituído perante o credor. O eventus damni consiste na necessidade de que a prática do negócio jurídico anulável tenha reduzido o patrimônio do devedor, levando-o à insolvência ou a agravando. Já a scientia fraudis consiste no conhecimento, pelo terceiro adquirente, da situação de insolvência do devedor[5].

Entretanto, pode-se afirmar que a jurisprudência tem divergido quanto ao terceiro e último requisito. E isto porque alguns Tribunais têm entendido que, na verdade, em vez da scientia fraudis, um dos requisitos necessários para o reconhecimento da fraude contra credores seria o consilium fraudis, ou seja, a presença do conluio fraudulento entre o alienante e o adquirente com o específico objetivo de prejudicar seus credores[6].

Embora num primeiro momento possam parecer sinônimos, os termos “consilium fraudis”, “concilium fraudis” e “scientia fraudis” não têm o mesmo sentido, e compreender a correta aplicação de cada instituto no caso concreto pode influenciar significativamente na anulação dos negócios jurídicos celebrados em fraude contra credores.

Em vista disso, ressalta-se a importância de distinguir a scientia fraudis e o consilium fraudis de modo não só a resguardar mas também para tornar efetiva a responsabilidade patrimonial do devedor (cf. arts. 391 do CC e 789 do CPC), segundo a qual ele responderá com todos os seus bens perante seus credores.

A scientia fraudis está contemplada no art. 159 do CC, o qual preceitua que “Serão igualmente anuláveis os contratos onerosos do devedor insolvente, quando a insolvência for notória, ou houver motivo para ser conhecida do outro contratante”. Em outras palavras, segundo o dispositivo, basta o conhecimento pelo terceiro adquirente acerca da insolvência do devedor, além da anterioridade do crédito, para que esteja caracterizada a fraude contra credores[7].

Já o consilium fraudis, por sua vez, como escreve Pontes de Miranda, é a intenção deliberada de causar dano ao credor, isto é, o propósito de fraudar[8], consistindo, portanto, em elemento subjetivo existente entre o alienante e o terceiro adquirente.

Em voto-vista exarado no julgamento do AgInt em REsp n. 1294462/GO pelo STJ[9], o i. Ministro Luis Felipe Salomão ressalta a importância de distinguir os termos consilium fraudis e concilium fraudis, ainda que ambos sejam considerados dispensáveis à configuração da fraude contra credores. Nesse sentido, esclarece o magistrado que o consilium fraudis consiste no propósito de causar dano, e que o concilium fraudis é o acordo de vontades entre os contratantes para fraudar credores, ou seja, a união para fraudar.

Diante desse contexto, o que se depreende é que para a caracterização da fraude contra credores não se exige o conluio fraudulento entre o devedor e o terceiro adquirente, tampouco outro elemento subjetivo consistente na intenção de prejudicar o credor (concilium fraudis ou consilium fraudis, respectivamente). É necessária a demonstração, tão somente, de que o adquirente tenha conhecimento efetivo ou presumido acerca da insolvência do devedor alienante para que o negócio jurídico seja anulado.

No que toca ao conhecimento presumido acerca da insolvência do devedor, vale destacar que na alienação gratuita, o ato por si só traz consigo a presunção de fraude (cf. art. 158 do Código Civil), enquanto que na alienação onerosa se faz necessário o conhecimento da insolvência pelo terceiro (scientia fraudis), o que será objeto de prova em juízo[10]. Esse conhecimento acerca da insolvência, todavia, pode ser considerado presumido, quando existir parentesco próximo ou afinidade próxima entre os contratantes[11]-[12].

Na prática, é importante que os credores, no momento do ajuizamento da Ação Pauliana, estejam atentos aos requisitos que efetivamente são necessários à obtenção da tutela jurisdicional, sob pena de criarem para si critérios desnecessários ou inexistentes, não exigidos pela lei para a caracterização da fraude contra credores. Vê-se, nesse ponto, que a comprovação da scientia fraudis se mostra menos dificultosa ao autor da demanda do que a do consilium (ou do concilium) fraudis, uma vez que o conluio fraudulento ou a intenção de lesar credores, por se tratarem de elementos de natureza eminentemente subjetiva, nem sempre estão absolutamente claros no caso concreto, ou sequer são passíveis de comprovação.

 

[1] RODRIGUES, Silvio. Direito Civil, Volume I: Parte Geral. 34. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 228-229.

[2] STJ, AgInt no REsp 1294462/GO, Quarta Turma, Rel.: Ministro Lázaro Guimarães, J. 20.03.2018.

[3] NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil Comentado 12. ed. São Paulo: RT, 2017, p. 605.

[4] MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do Fato Jurídico: Plano da Validade. 14. ed. São Paulo: Saraiva, p. 253.

[5] NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil Comentado. 12. ed. rev., atual. São Paulo: RT, 2017, p. 605.

[6] Enquanto alguns Tribunais entendem que basta a scientia fraudis somada a anterioridade do crédito e a insolvência do devedor para o reconhecimento da fraude contra credores, a saber: (i) TJPR, AC n. 0056984-14.2018.8.16.0014, 17.ª C. Cível, Rel.: Des. Fabian Schweitzer, J. 13.10.2020; e (ii) TJDFT, Acórdão 1245718, AC n. 07024078120198070007, Rel.: Simone Lucindo, 1.ª Turma Cível, J. 29.4.2020, outros Tribunais mantém o entendimento de que é imprescindível a presença do consilium fraudis, a saber: (iii) TJSP, AC n. 1023558-14.2019.8.26.0100; Rel.: Luis Mario Galbetti; 7ª Câmara de Direito Privado; J. 18/08/2021; e (iv) TJRS, AC n. 50011505320168210019, 20.ª C. Cível, Rel.: Glênio José Wasserstein Hekman. J. 11-08-2021.

[7] Nelson Nery Jr. e Rosa Maria de Andrade Nery, nesse sentido, afirmam que como pressuposto necessário à anulação de que trata o CC 159, exige-se a scientia fraudis, isto é, a ciência do estado de insolvência do devedor e de que, consequentemente, o ato fraudador será nocivo aos credores. (NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil Comentado. 12. ed. São Paulo: RT, 2017, p. 605).

[8] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado: Validade, Nulidade e Anulabilidade. t. IV. Atualizado por Marcos Bernardes de Mello e Marcos Ehrhardt Jr. São Paulo: RT, 2012, p. 568-569.

[9] STJ, AgInt no REsp 1294462/GO, Quarta Turma, Rel.: Ministro Lázaro Guimarães, J. 20.03.2018.

[10] MEDINA, José Miguel Garcia; ARAÚJO, Fábio Caldas. Código Civil Comentado. 4. ed. São Paulo: RT, 2021, p. 239.

[11] A jurisprudência é constante nesse sentido: (i) STJ, REsp 1100525/RS, Quarta Turma, Rel.: Ministro Luis Felipe Salomão, J. 16.04.2013; (ii) STJ, AgInt no REsp 1.294.462/GO, Quarta Turma, Rel.: Ministro Lázaro Guimarães, J. 20.03.2018; e (iii) STJ, AgInt no AREsp 1401474/SP, Rel.: Ministro Antonio Carlos Ferreira, Quarta Turma, J. 09.09.2019.

[12] Assim: (i) TJMG, AC n. 10384120004393001, 12.ª C. Cível, Rel.: Domingos Coelho, J. 13.03.2017; (ii) TJSP, AC n. 1008724-88.2020.8.26.0320; Rel.: Giffoni Ferreira; 2.ª Câmara de Direito Privado; J. 18.05.2021; e (iii) TJPR, AC n. 00035398220208160185, 5.ª C. Cível, Rel.: Des. Luiz Mateus de Lima, J. 16.08.2021.