5 anos de vigência do CPC de 2015: Conquistas, frustrações e desafios

O Código de Processo Civil de 2015 completa cinco anos de vigência no momento em que a pandemia da Covid-19 está em seu auge, ao menos aqui no Brasil. Estamos passando por tempos difíceis, muito difíceis, talvez um dos momentos mais sofridos de nossa história. Manifesto meu pesar por todas as vítimas dessa pandemia, minha solidariedade àqueles que estão sofrendo com sequelas e aos familiares e amigos das pessoas que se foram.

A Lei 13.105/2015, que aprovou o Código de Processo Civil que entrou em vigor em

18.03.2016, não foi elaborada pensando-se no enfrentamento de uma pandemia. Mas o Código previu instrumentos que, de algum modo, facilitaram e têm facilitado a tramitação de processos, nesse período difícil. No presente texto aponto exemplos dessa resiliência do Código.

Muitos de nós, no novo contexto imposto pela pandemia, já nos habituamos à participação de sessões por videoconferência, com manifestações síncronas apresentadas por meios audiovisuais. Sessões assim realizadas, antes, e apesar da regra prevista no § 4.º do art. 937 do CPC de 2015, eram excepcionais e admitidas em poucos tribunais do Brasil. Com a pandemia, tornaram-se regra. Por exemplo, o Supremo Tribunal Federal, ainda em março de 2020, passou a disciplinar o uso de videoconferência nas sessões de julgamento presencial do Plenário e das Turmas daquele Tribunal. Em seguida, ainda em abril de 2020, também o Superior Tribunal de Justiça tratou do tema, e o mesmo fizeram outros tribunais.

O Código de Processo Civil de 2015, em sua redação original, previa textualmente a possibilidade de julgamentos realizarem-se por meio eletrônico, nos tribunais. A regra então prevista em seu artigo 945, porém, acabou sendo revogada antes da entrada em vigor do Código.

Mas o contexto da pandemia, de certo modo, facilitou que julgamentos em ambientes virtuais experimentassem uma evolução, ao menos no âmbito do Supremo Tribunal Federal.

Mencionei, acima, a possibilidade de as manifestações dos sujeitos processuais darem-se de modo síncrono, nos julgamentos por videoconferência. Mas também manifestações assíncronas acabaram sendo disciplinadas por ocasião do surgimento da pandemia. Em março de 2020 passou-se a prever que, em se tratando de julgamento em ambiente virtual (em “sessão virtual”, como muitos preferem dizer) realizado no Supremo Tribunal Federal, as sustentações orais fossem enviadas com antecedência por meio eletrônico. Esse procedimento não se encontra em consonância com a regra prevista no art. 937 do Código de Processo Civil, que previu que a sustentação oral poderá ser realizada “depois da exposição da causa pelo relator”.

A experiência, de todo modo, é interessante e deve ser aprimorada. Tudo indica que, no futuro, conviveremos com a preponderância de sessões virtuais e por videoconferência, em que eventualmente se apresentem manifestações orais e por escrito, síncronas e assíncronas. E novos questionamentos acabarão surgindo, que dizem respeito à essência da atuação dos tribunais. Interessante perquirir, por exemplo, se manifestações apresentadas por escrito e de forma assíncrona pelos juízes do Supremo ao longo do julgamento em ambiente virtual poderão interferir no modelo de deliberação adotado pelo tribunal (seriatim ou per curiam, isso é, a soma de votos ou uma manifestação pela Corte).

Muito se discutiu, ao longo do ano de 2020 e do começo deste ano, sobre o estímulo aos meios consensuais de solução de conflitos como meio de se evitar que a solução para os litígios dependesse, necessariamente, de uma decisão judicial, e com isso o Poder Judiciário acabasse sendo inundado de processos. O Código de 2015 trouxe as soluções consensuais para “dentro” da função jurisdicional. Assim, a solução consensual não deve mais ser vista como algo excepcional, usada como alternativa à decisão judicial (que muitos chamam de solução adjudicada). A expressão “alternativa”, aqui, é usada para referir-se a algo que usamos porque o que seria o “normal” não funciona bem. Infelizmente, os meios consensuais são por muitos considerados “meios alternativos” de solução de conflitos. O Código aderiu a esse modo de pensar, e foi além: seu artigo 334 acaba impondo que a audiência de conciliação ou sessão de mediação realize-se como regra, sem que se analise as especificidades da lide. Ora, as soluções consensuais nem sempre são as mais apropriadas para a hipótese, e essa adequação deve ser examinada caso a caso.

Infelizmente, vê-se a solução consensual mais como um meio de reduzir a necessidade de prolação de decisões judiciais que como medida mais adequada para a solução do litígio e, como se sabe, identificar o meio adequado está na base daquilo que se convencionou chamar de justiça multiportas (multidoor courthouse).

As lides que surgiram nesse ano de pandemia foram extraordinárias, assim como estes tempos. Litígios dos mais variados e inéditos surgiram, como os relacionados às revisões de contratos em razão da pandemia e os conflitos entre entes federativos quanto à condução de medidas contrárias à Covid-19, dentre outros. Essas crises exigem dos juízes um modo peculiar de fundamentar as suas decisões, e o Código trouxe consigo um arcabouço que se ocupa do modo como as decisões devem ser fundamentadas (cf., especialmente, artigo 489, §§ 1.º e 2º, do Código). No ponto, penso que antes já experimentávamos, senão uma situação de grave excepcionalidade, ao menos uma condição que já justificava especial cuidado com a motivação dos julgados. Com efeito, a sociedade moderna é marcada pela fugacidade e pela complexidade, o que leva o legislador a produzir textos com conteúdos vagos, cláusulas gerais etc. A soma desses fatores faz com que se amplie o âmbito de atuação do órgão jurisdicional, de modo que a solução jurídica é construída no processo e à luz das peculiaridades do caso concreto. Dizendo-se de outro modo: a solução jurídica não se encontra “pronta” nas leis e nos Códigos, mas deve ser produzida através do processo. Quanto mais complexas as questões sociais e mais indeterminados os dispositivos normativos, mais peso terá a decisão judicial a ser proferida no processo.

Essas circunstâncias tornam ainda mais importantes as garantias relacionadas a esse instrumento, que é o processo de tomada da decisão judicial, de que as partes têm direito de participar ativamente. Esse direito à participação procedimental (status activus processualis), que tem base no princípio democrático (Constituição Federal, artigo 1.º, caput), faz com que vários institutos sejam, por assim dizer, relidos, atualizados e, em alguns casos, profundamente transformados. Por exemplo, o direito à influência e a proibição de prolação de decisões com surpresa para as partes, há muito, já eram considerados pela melhor doutrina como consectários da garantia do contraditório. Mas o Código de 2015 fez menção a esses aspectos, textualmente (cf., especialmente, artigo 10). Na jurisprudência, no entanto, ainda há decisões que restringem a incidência do contraditório, em especial a esse modo como a garantia foi textualmente incorporada pelo Código.

Os exemplos até aqui mencionados revelam que institutos antigos devem (ou deveriam) ser, no mínimo, reestudados, à luz dos princípios que iluminam o Código de 2015. Algo parecido se pode dizer, a fortiori, em relação a figuras totalmente novas ou que, embora antes existentes na lei revogada, ganharam estrutura e função renovadas, com o Código hoje em vigor. Os incidentes de resolução de demandas repetitivas (artigos 976 e seguintes) e de assunção de competência (artigo 947) são exemplos disso. O primeiro, embora inspirado no Musterverfahren do direito alemão, foi construído de modo todo peculiar com o Código de 2015; o segundo instituto já existia na lei processual revogada, mas agora tem, ao menos em potência, maior importância e abrangência. Uso-os como exemplos de fenômenos que, embora diferentes, tocam-se em vários pontos. Se bem utilizados, e em conjunto com a técnica do julgamento dos recursos extraordinário e especial repetitivos, têm potencial para contribuir para que se dê tratamento isonômico entre pessoas que se encontrem em situações idênticas, para que se alcance segurança jurídica e, por consequência, para que se reduza o número de processos em tramite no Poder Judiciário. Há muitos estudos a respeito, e não parece haver razão para que esses incidentes não sejam mais utilizados.

Esses exemplos, aqui recordados por derradeiro, revelam que o Código de Processo Civil contém instrumento importantes e eficazes, que podem levar ao aprimoramento da jurisdição estatal e a uma melhor qualidade do processo. E há muitos outros, que vem sendo objeto de nossas reflexões em nosso podcast acadêmico, em aulas e palestras e em vários estudos. Claro que a lei processual também tem seus defeitos, alguns bastante graves, e alguns deles foram apontados acima. No entanto, esses problemas vêm sendo superados pelo labor doutrinário e jurisprudencial (ainda que com a prática de ativismos ou, ao menos, com alguma criatividade, como sucedeu na solução da questão atinente ao rol de hipóteses de cabimento do agravo de instrumento previsto no artigo 1.015 do Código). Mas são poucos os exemplos de regras menos primorosas. Sobressaem as soluções inovadoras, os aperfeiçoamentos, a preocupação do Código de 2015 com a realização do direito fundamental ao processo adequado, isso é, à realização concreta do direito de ação que observe as garantias mínimas do devido processo legal.

O desafio que se coloca ao intérprete e aplicador da lei processual, a nosso ver, hoje e nos próximos tempos, está em tornar realidade as aspirações manifestadas na lei processual.

 

José Miguel Garcia Medina

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