Tecnologia e Direito: NFTs, direitos autorais e a indústria de jogos

Artigo originariamente publicado na revista Consultor Jurídico, em 04.04.2023 (https://www.conjur.com.br/2023-abr-04/bruno-andrioli-nfts-direitos-autorais-industria-jogos).             

Eu creio que a arte é a única forma de atividade pela qual o homem se manifesta enquanto verdadeiro indivíduo. Só através dela pode superar o estado animal, porque a arte desemboca em regiões que não dominam nem o tempo nem o espaço”.[1] Tal frase é atribuída ao pintor, escultor e poeta francês denominado Marcel Duchamp.

O mais novo local onde a arte “desembocou” foi a internet. Uma das mais marcantes características do online é sua transcendência espacial, um modo sui generis de comunicação que conectou indivíduos para além das fronteiras físicas, contribuindo significativamente para o avanço da globalização.

Apesar de seus inúmeros pontos positivos, a internet carrega consigo alguns aspectos nocivos, dentre os quais podemos elencar a proliferação da pirataria e da falsificação. Estes fenômenos são muito prejudiciais ao desenvolvimento da carreira de artistas, que veem suas artes serem utilizadas sem a devida contraprestação financeira.

A proteção dada ao autor da obra é um direito constitucionalmente estabelecido, nos termos do artigo 5º, incisos XXVII e XXVIII, da Constituição Federal. De acordo com Branco Júnior, a finalidade do sistema de proteção dos direitos autorais é garantir a proteção adequada ao trabalho criativo do indivíduo, possibilitando que ele goze da remuneração adequada e, por consequência, continue produzindo através dos proventos já auferidos.[2]

O Brasil é signatário da Convenção de Berna de 1886, a qual previu alguns requisitos básicos para a tutela de direitos autorais sobre obras. O ordenamento jurídico brasileiro, até os dias atuais, segue o padrão mínimo nela estabelecido. Neste sentido, estabelece o artigo 7º, da Lei n.º 9.610/98 – Lei de Direitos Autorais -, a proteção às criações do espírito, expressas por qualquer meio, tangível ou intangível.

Em meio a este cenário, surge uma nova ferramenta tecnológica capaz de colaborar com a mitigação de problemas relacionados à falsificação e pirataria, cujo nome é NFT - non fungible token -, em tradução livre: token não fungível.

Trata-se de um meio seguro e eficaz para registro de obras digitais, o qual é realizado pelo upload de um token da obra que, por sua vez, cria uma transação por meio do sistema blockchain que, ao ser assinada pelo criador, gera comprovação da sua legítima autoria. Assim, a obra fica protegida por um sistema de criptografia e acessado apenas por quem tem autorização para tanto.[3]

Dentre suas características, pode-se citar como as mais relevantes juridicamente: a unicidade, a autenticidade, a rastreabilidade e a indivisibilidade[4]. Tais elementos são importantes para gerar maior segurança jurídica às partes envolvidas, pois, tanto o autor quanto o consumidor ficam protegidos de eventuais falsificações, o que, por consequência, gera maior sustentabilidade para o desenvolvimento da atividade econômica pretendida.

Sua aplicabilidade prática já está em vigor. É utilizado por empresas para emissão de bilhetes e ingressos devido à sua capacidade para assegurar autenticidade e coibir falsificações.

Além disso, o NFT também é capaz de agregar um elemento de raridade que impulsiona o desenvolvimento dos negócios. A indústria de jogos eletrônicos, por exemplo, utiliza-se desta ferramenta para criar itens colecionáveis que transcendem a própria plataforma do jogo, pois devido ao seu registro em blockchain, mesmo com a descontinuidade do jogo, continuará existindo.

Não obstante os pontos ora externados, um aspecto que também merece ênfase quanto ao tema ora tratado, é o outro lado desta história: a proteção ao consumidor, em especial, aqueles que o consomem frequentemente no mercado de jogos digitais e nos marketplaces de obras virtuais. É um personagem que, frequentemente, é vítima de fraudes e está constantemente exposto a uma quantidade massiva de propagandas, muitas vezes de caráter enganoso.

Na legislação pátria, a tutela específica do direito consumerista é regida pelo Código de Defesa do Consumidor - Lei n.º 8.078/90, que prevê prerrogativas e deveres relacionados ao usuário de internet, assim como a respectiva responsabilização pela infringência de tais normas. Uma das mais recentes disciplinas legais relacionada ao assunto é a Lei Geral de Proteção de Dados - Lei n.º 13.709/18, a qual, em seu artigo 2º, inciso VI, resguarda a defesa do consumidor como um de seus fundamentos.

Um princípio aplicado vastamente no ordenamento cível e de grande relevância na seara consumerista é o princípio da boa-fé, que se traduz no comportamento leal e probo que não frustra a expectativa da outra parte.[5] É possível dividi-lo em dois subprincípios: o da informação e o da transparência. Ambos se complementam, ao passo em que suas finalidades convergem para a ampliação do direito de escolha previsto no artigo 6º, inciso III, do Código de Defesa do Consumidor, já que a informação prestada de forma clara e concisa é essencial para que o consumidor se oriente em sua decisão.

Inclusive, sobre a temática, o Superior Tribunal de Justiça já proferiu decisões em que fornecedores foram responsabilizados por não cumprirem integralmente com o dever de informar. A título exemplificativo, podemos citar os Embargos ao Recurso Especial n.º 1.515.895/MS, julgados pela Corte Especial e relatados pelo Exmo. Sr. Ministro Humberto Martins.[6]

A controvérsia cingia entre dois julgados: um acórdão da Terceira Turma entendia ser suficiente conter a informação “contém ou não contém glúten” como alerta aos consumidores que são alérgicos a tal proteína, enquanto o acórdão da Segunda Turma continha posicionamento adverso. Prevaleceu o entendimento da Segunda Turma, estabelecendo-se que a informação-conteúdo “contém-glúten” é, por si só, insuficiente, sendo necessário conter a informação-advertência de que o glúten é prejudicial à saúde de pessoas celíacas.

Neste sentido, no contexto informacional da relação consumerista, na compra e venda de artes via NFTs, infere-se ser um dever dos fornecedores, para além da informação quanto ao conteúdo e especificações da obra em si, informar brevemente sobre o funcionamento desta tecnologia, tendo em vista que o tema não é algo de conhecimento geral, tendo por base a ficção jurídica do homem médio. Na relação de consumo em apreço, na figura de fornecedor, enquadra-se tanto o autor da obra quanto os sites que intermediam as negociações, haja vista a responsabilidade solidária da cadeia de consumo inserida no artigo 7º, parágrafo único, do Diploma Consumerista.

Um ponto sensível nesta equação é a figura de consumidores hipervulneráveis (crianças e adolescentes). A já mencionada indústria de jogos eletrônicos é um negócio bilionário, em que grande parte dos players são menores e realizam compras nas plataformas digitais. Tal prática pode vir a se enquadrar como abusiva, considerando uma possível prevalência das grandes empresas de jogos em relação à fraqueza ou ignorância do consumidor para lhe ofertar produtos ou serviços (artigo 39, inciso IV, do Código de Defesa do Consumidor), devido à incapacidade destes indivíduos em realizar uma escolha autônoma, bem como à propensão de o consumo de jogos desenvolver algum tipo de vício.

Em vias de conclusão, é possível notar que o NFT pode ser uma ferramenta utilizada por artistas e empresas para coibir as nefastas práticas de pirataria e falsificação que prejudicam o desenvolvimento da atividade comercial, mas que, sozinho, não é capaz de eliminar o risco de ocorrência, sendo necessárias outras medidas antifraudes no mundo digital.

Esse auxílio trazido pelo NFT, decorre do incremento tecnológico que lhe possibilita fornecer alto grau de autenticidade sobre as obras de artes e propriedades intelectuais digitais por meio de um sistema assegurado por criptografia avançada, além de proporcionar maior conhecimento acerca do histórico do produto pelos registros contidos na blockchain.

Não obstante, é necessário ressaltar que a relação de consumo também merece atenção, considerando as agressivas – e não raramente abusivas – estratégias de marketing nos meios digitais. As comercializações devem cumprir com o fornecimento de amplas informações para que o destinatário final exerça seu legítimo poder de escolha e que, no caso dos menores, exista uma proteção acentuada para proteger indivíduos que são mais suscetíveis de indução por vícios nocivos e compulsão por compras aleatórias.



[1] PAZ, Octavio. Marcel Duchamp ou o castelo da pureza. São Paulo, Perspectiva, 2002, p. 63.

[2] BRANCO JUNIOR, Sérgio Vieira. Direitos autorais na Internet e o uso de obras alheias. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 1-2. Disponível em: . Acesso em: 12 mar. 2023.

[3] BARBOZA, Hugo Leonardo; FERNEDA, Ariê Scherreier; SAS, Liz Beatriz. A garantia de autenticidade e autoria por meio de Non-Fungible Tokens (NFTs) e sua (in)validade para a proteção de obras intelectuais. International Journal of Digital Law, Belo Horizonte, ano 2, n. 2, p. 99-117, maio/ago. 2021. Disponível em: . Acesso em 12 mar. 2023.

[4] LAU, Kendrick. Non-Fungible Tokens. A Brief Introduction and History. Crypto.com. 2019, p. 6. Disponível em: . Acesso em: 12 mar. 2023.

[5] GUIMARÃES, Clayton Douglas Pereira; SILVA, Michael César. Novas Tecnologias, Tokens Não Fungíveis (NFT) e Direito do Consumidor. Revista Direitos Culturais, Santo Ângelo, v. 17, n. 43, p. 253-270, set./dez. 2022. Disponível em: . Acesso em 12 mar. 2023.

[6] As relações de consumo e o dever de informação. Superior Tribunal de Justiça. 2017. Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/As-relacoes-de-consumo-e-o-dever-deinformacao. aspx. Acesso em 12 de março de 2023.