Prescrição intercorrente: o que mudou com a Lei n. 14.195/2021

A Lei n. 14.195/2021, sancionada em 26/08/2021, tratou, dentre outros temas, da prescrição intercorrente, matéria que há muito tem sido alvo de intensas e recorrentes discussões na jurisprudência, mas que não encontrava contornos precisos na legislação.

O instituto em questão decorre de construção jurisprudencial e, nas palavras do Ministro Luís Felipe Salomão, “ocorre no curso do processo e em razão da conduta do autor que, ao não prosseguir com o andamento regular ao feito, se queda inerte, deixando de atuar para que a demanda caminhe em direção ao fim colimado.”[1]

Ela se justifica para que as execuções não se estendam ad eternum. É, inclusive, considerada matéria de ordem pública, cognoscível de ofício[2], em qualquer grau de jurisdição[3].

Agora, a prescrição intercorrente passa a ser expressamente definida no Código Civil. Com a introdução do art. 206-A no Código Civil pela Medida Provisória n. 1.040/2021, já havia sido inserida a regra segundo o qual “a prescrição intercorrente observará o mesmo prazo de prescrição da pretensão”. Com a Lei 14.195/2021 (fruto de projeto de conversão em lei da referida Medida Provisória), houve a adição de que serão “observadas as causas de impedimento, de suspensão e de interrupção da prescrição previstas neste Código e observado o disposto no art. 921 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil)”. Essa, assim, é a redação decorrente da Lei n. 14.195/2021.

As discussões acerca da prescrição intercorrente se dão, principalmente, diante da ausência de bens penhoráveis do devedor, o que geralmente implica na paralização da execução.

Como o Código de Processo Civil de 1973 era silente quanto à prescrição intercorrente, e mencionava apenas que a Execução seria suspensa quando o devedor não possuísse bens penhoráveis (art. 791, III), prevalecia, à época, o entendimento de que o prazo prescricional só teria curso em caso de inércia injustificada do credor após sua intimação pessoal.[4]

Assim, estando a execução suspensa por expressa decisão judicial, enquanto não intimado pessoalmente o exequente, permanecia igualmente suspensa a prescrição.

Já a Lei n. 6.830/1980, que trata das Execuções Fiscais, previa a suspensão da Execução por decisão judicial, quando não localizado o devedor ou bens penhoráveis. Ultrapassado um ano, os autos deveriam ser remetidos ao arquivo e, decorrido o prazo prescricional a partir do arquivamento, consumava-se a prescrição intercorrente, causa de extinção da Execução[5].

O Código de Processo Civil de 2015, em sua redação original, seguindo o que já se tinha para as Execuções Fiscais, previu que a suspensão por ausência de bens implicaria em suspensão da prescrição pelo prazo de apenas um ano, após o qual os autos deveriam ser arquivados caso não houvesse manifestação do exequente. A partir do arquivamento, superado o prazo prescricional, a prescrição poderia ser decretada de ofício. A exigência de intimação, então, passou a se dar apenas para que o exequente se manifestasse sobre eventuais causas de suspensão ou interrupção da prescrição, e não mais para prosseguimento, em atenção ao princípio do contraditório.

Nesse sentido, inclusive, consolidou-se a jurisprudência do e. STJ, manifestada no julgamento do IAC 1 (REsp n. 1.604.412/SC)[6], em junho de 2018, que estabeleceu a interpretação da regra de transição entre os Códigos de Processo Civil (1973/2015).

Logo após, em setembro do mesmo ano, por meio REsp n. 1.340.553/RS, julgado sob o regime de recursos repetitivos, firmou-se o entendimento de que “o prazo de 1 (um) ano de suspensão do processo e do respectivo prazo prescricional previsto no art. 40, §§ 1º e 2º da Lei n. 6.830/80 – LEF tem início automaticamente na data da ciência da Fazenda Pública a respeito da não localização do devedor ou da inexistência de bens penhoráveis no endereço fornecido, havendo, sem prejuízo dessa contagem automática, o dever de o magistrado declarar ter ocorrido a suspensão da execução”.[7]

Ou seja, sequer seria necessário que houvesse decisão judicial expressa determinando a suspensão.

Embora o julgado tenha sido proferido no contexto de execução fiscal, o entendimento manifestado foi, em parte, encampado pelo CPC, com a reforma da Lei 14.195/2001.

Na redação original do § 4.º do art. 921 do CPC, a prescrição começava a correr após o prazo de um ano de suspensão sem manifestação do exequente. Ainda, o inc. III do caput do mesmo artigo trazia como hipótese de suspensão apenas a não localização de bens.

Já com a alteração feita pela Lei n. 14.195/2021 na redação do art. 921 do CPC, a suspensão tem lugar também quando o executado não for localizado (inc. III), e o termo inicial da prescrição passou a ser “a ciência da primeira tentativa infrutífera de localização do devedor ou de bens penhoráveis”, admitindo-se a suspensão, por uma única vez, pelo prazo máximo de um ano (§ 4.º).

Além disso, através da inserção do § 4.º-A, estabeleceu-se como causa de interrupção da prescrição a “efetiva citação, intimação do devedor ou constrição de bens penhoráveis”, pelo prazo necessário à realização de tais atos, “desde que o credor cumpra os prazos previstos na lei processual ou fixados pelo juiz.”

Assim, há necessidade de atuação rápida, diligente e efetiva pelo exequente, sob pena de ver prescrita a execução. Porém é importante lembrar que, a teor da Súmula n. 106 do STJ, “a demora na citação, por motivos inerentes ao mecanismo da Justiça, não justifica o acolhimento da argüição de prescrição ou decadência”, orientação que já era contemplada no CPC/1973[8], e é repetida no CPC/2015[9].

No tocante à sucumbência, o e. STJ havia firmado o entendimento de que “a prescrição intercorrente por ausência de localização de bens não retira o princípio da causalidade em desfavor do devedor, nem atrai a sucumbência para o exequente. “[10]

Desse modo, quando extinta a execução pela prescrição intercorrente, o devedor é que deveria ser condenado ao pagamento das custas processuais e honorários advocatícios de sucumbência.

Contudo, com a Lei n. 14.195/2021, foi alterado o § 5.º do art. 921 do CPC, passando-se a prever que a extinção da execução em razão da prescrição intercorrente se dará “sem ônus para as partes.”[11]

O e. TJPR, inclusive, aplicando o referido dispositivo, já decidiu pela impossibilidade de condenação tanto do Exequente, quanto do Executado[12].

Com relação ao aspecto formal da Lei n. 14.195/2021, insta observar que se trata de conversão da Medida Provisória n. 1.040, de 29/03/2021.

Nesse ponto, a lei tem recebido críticas, a exemplo do que manifestou o Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP)[13]. O argumento é de que o projeto de conversão de medida provisória em lei não pode contemplar matéria estranha à primeira, como é o caso das alterações realizadas no Código de Processo Civil, sob pena de violação ao devido processo legislativo, consoante entendimento manifestado pelo STF na ADI n. 5127[14]. Soma-se a isso o fato do direito processual civil, por vedação expressa na Constituição Federal (art. 62, § 1.º, inc. I, “b”)[15], não poder ser objeto de medida provisória. Com base em tais razões, foi ajuizada Ação Direta de Inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal (ADI 7005). Referida ação, por ocasião da publicação do presente artigo, ainda aguarda julgamento. De todo modo, enquanto o Supremo não se manifesta a respeito, e caso não se decida no sentido da inconstitucionalidade dessas alterações, o novo regime no art. 921 do CPC deve ser observado.

Portanto, o que se observa é que o exequente terá que ser muito mais ativo e eficiente na execução, tanto na busca do executado quanto de seus bens, tendo em vista que o início do prazo para contagem da prescrição intercorrente encontra-se agora positivado, com um critério mais objetivo.

Nesse sentido, serão necessários advogados cada vez mais especializados nesse tipo de demanda, que garantam a seus clientes, além de uma atuação certeira e efetiva, a mitigação de riscos e prejuízos.

 

 

[1] STJ, REsp 1620919/PR, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 10/11/2016.

[2] Nesse sentido: “[…] 3. Por se tratar a prescrição de matéria de ordem pública, cujo conhecimento pode ocorrer de ofício nas instâncias ordinárias, não há nenhum vício procedimental na análise da referida matéria em embargos de declaração. […]” (STJ, AgInt no REsp 1915599/PE, Rel. Ministro Og Fernandes, Segunda Turma, julgado em 16/08/2021).

[3] CC, Art. 193: “A prescrição pode ser alegada em qualquer grau de jurisdição, pela parte a quem aproveita.”

[4] “[…] 1. Não corre a prescrição intercorrente durante o prazo de suspensão do processo de execução determinada pelo juízo. Para a retomada de seu curso, faz-se necessária a intimação pessoal do credor para diligenciar no processo, porque é a sua inação injustificada que faz retomar-se o curso prescricional. […]” (STJ, AgRg no AREsp 583.987/DF, Rel. Ministra Maria Isabel Gallotti, Quarta Turma, julgado em 18/12/2014).

[5] Cf. art 40 da Lei 6.830/1980:

“Art. 40 O Juiz suspenderá o curso da execução, enquanto não for localizado o devedor ou encontrados bens sobre os quais possa recair a penhora, e, nesses casos, não correrá o prazo de prescrição.

  • 1º Suspenso o curso da execução, será aberta vista dos autos ao representante judicial da Fazenda Pública.
  • 2º Decorrido o prazo máximo de 1 (um) ano, sem que seja localizado o devedor ou encontrados bens penhoráveis, o Juiz ordenará o arquivamento dos autos.
  • 3º Encontrados que sejam, a qualquer tempo, o devedor ou os bens, serão desarquivados os autos para prosseguimento da execução.
  • 4º Se da decisão que ordenar o arquivamento tiver decorrido o prazo prescricional, o juiz, depois de ouvida a Fazenda Pública, poderá, de ofício, reconhecer a prescrição intercorrente e decretá-la de imediato.”

[6] “RECURSO ESPECIAL. INCIDENTE DE ASSUNÇÃO DE COMPETÊNCIA. AÇÃO DE EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL. PRESCRIÇÃO INTERCORRENTE DA PRETENSÃO EXECUTÓRIA. CABIMENTO. TERMO INICIAL. NECESSIDADE DE PRÉVIA INTIMAÇÃO DO CREDOR-EXEQUENTE. OITIVA DO CREDOR. INEXISTÊNCIA. CONTRADITÓRIO DESRESPEITADO. RECURSO ESPECIAL PROVIDO. 1. As teses a serem firmadas, para efeito do art. 947 do CPC/2015 são as seguintes: 1.1 Incide a prescrição intercorrente, nas causas regidas pelo CPC/73, quando o exequente permanece inerte por prazo superior ao de prescrição do direito material vindicado, conforme interpretação extraída do art. 202, parágrafo único, do Código Civil de 2002. 1.2 O termo inicial do prazo prescricional, na vigência do CPC/1973, conta-se do fim do prazo judicial de suspensão do processo ou, inexistindo prazo fixado, do transcurso de um ano (aplicação analógica do art. 40, § 2º, da Lei 6.830/1980). 1.3 O termo inicial do art. 1.056 do CPC/2015 tem incidência apenas nas hipóteses em que o processo se encontrava suspenso na data da entrada em vigor da novel lei processual, uma vez que não se pode extrair interpretação que viabilize o reinício ou a reabertura de prazo prescricional ocorridos na vigência do revogado CPC/1973 (aplicação irretroativa da norma processual). 1.4. O contraditório é princípio que deve ser respeitado em todas as manifestações do Poder Judiciário, que deve zelar pela sua observância, inclusive nas hipóteses de declaração de ofício da prescrição intercorrente, devendo o credor ser previamente intimado para opor algum fato impeditivo à incidência da prescrição. 2. No caso concreto, a despeito de transcorrido mais de uma década após o arquivamento administrativo do processo, não houve a intimação da recorrente a assegurar o exercício oportuno do contraditório. 3. Recurso especial provido.” (STJ, REsp 1604412/SC, Rel. Ministro Marco Aurélio Bellizze, Segunda Seção, julgado em 27/06/2018).

[7] STJ, REsp 1340553/RS, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, Primeira Seção, julgado em 12/09/2018.

[8] Art. 219, § 2.º: “Incumbe à parte promover a citação do réu nos 10 (dez) dias subseqüentes ao despacho que a ordenar, não ficando prejudicada pela demora imputável exclusivamente ao serviço judiciário.”

[9] Art. 240, § 3.º: “A parte não será prejudicada pela demora imputável exclusivamente ao serviço judiciário.”

[10] STJ. REsp 1769201/SP, Rel. Min. Maria Isabel Gallotti, Quarta Turma, julgado em 12/03/2019

[11] Art. 921, § 5.º “O juiz, depois de ouvidas as partes, no prazo de 15 (quinze) dias, poderá, de ofício, reconhecer a prescrição no curso do processo e extingui-lo, sem ônus para as partes.”

[12] “Execução de título extrajudicial. Sentença que reconhece a prescrição intercorrente e julga extinta a demanda, condenando o executado ao pagamento das custas processuais e honorários advocatícios. Pretensão de inversão ou dispensa dos honorários sucumbenciais. Cabimento da dispensa. Incidência do artigo 921, § 5º, do CPC, alterado pela Lei nº 14.195, de 26.08.21. A extinção do processo executivo em decorrência do reconhecimento da prescrição intercorrente dispensa o arbitramento de honorários advocatícios em favor de qualquer uma das partes (§ 5º do art. 921, do CPC, alterado pela Lei nº 14.195 de 26.08.21). Apelação conhecida e provida” (TJPR, 15.ª C.Cível, 0000141-81.1997.8.16.0170, Rel.: Desembargador Hamilton Mussi Correa, j. 01.09.2021, g.n.).

[13] Disponível em <https://direitoprocessual.org.br/manifestacao-do-ibdp-sobre-a-lei-n-14195-de-26-de-agosto-de-2021.html>, Acesso em 11/09/2021.

[14] “DIREITO CONSTITUCIONAL. CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE. EMENDA PARLAMENTAR EM PROJETO DE CONVERSÃO DE MEDIDA PROVISÓRIA EM LEI. CONTEÚDO TEMÁTICO DISTINTO DAQUELE ORIGINÁRIO DA MEDIDA PROVISÓRIA. PRÁTICA EM DESACORDO COM O PRINCÍPIO DEMOCRÁTICO E COM O DEVIDO PROCESSO LEGAL (DEVIDO PROCESSO LEGISLATIVO). 1. Viola a Constituição da República, notadamente o princípio democrático e o devido processo legislativo (arts. 1º, caput, parágrafo único, 2º, caput, 5º, caput, e LIV, CRFB), a prática da inserção, mediante emenda parlamentar no processo legislativo de conversão de medida provisória em lei, de matérias de conteúdo temático estranho ao objeto originário da medida provisória. 2. Em atenção ao princípio da segurança jurídica (art. 1º e 5º, XXXVI, CRFB), mantém-se hígidas todas as leis de conversão fruto dessa prática promulgadas até a data do presente julgamento, inclusive aquela impugnada nesta ação. 3. Ação direta de inconstitucionalidade julgada improcedente por maioria de votos” (STF, ADI 5127, Relator(a): Min. Rosa Weber, Relator(a) p/ Acórdão: Min. Edson Fachin, Tribunal Pleno, julgado em 15/10/2015).

[15] Art. 62, § 1.º: “É vedada a edição de medidas provisórias sobre matéria: […] b) direito penal, processual penal e processual civil;”