Possibilidade de instauração de incidente de desconsideração da personalidade jurídica no bojo da recuperação judicial

Reservada a determinadas pessoas físicas e jurídicas em crise, o instituto da recuperação judicial é regulado pela Lei n. 11.101/2005 e exige, para que o processamento da recuperação possa ser deferido, que o requerente da benesse tenha capacidade de soerguimento.

Além desse pressuposto básico, os artigos 1.º e 2.º do mesmo diploma determinam quem tem direito – e quem não tem – de requerer a recuperação judicial. Levando isso em consideração, a priori, pessoas físicas detentoras de registro no Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas (CNPJ), com registro de sua atividade há pelo menos dois anos, e pessoas jurídicas que não estejam elencadas no art. 2.º da Lei n. 11.101/2005, podem requerer recuperação judicial.

Ciente dessas primeiras condições, o requerente da recuperação judicial, quando do protocolo da peça exordial, precisa, obrigatoriamente, elencar e demonstrar os motivos da crise que o levou a requerer a recuperação e, além disso, demonstrar sua capacidade de soerguimento. Esse ponto se faz relevante e necessário, considerando que muitas empresas/empresários, em absoluta má-fé, podem valer-se do instituto recuperacional com o único intuito – fraudulento – de blindagem patrimonial.

Entretanto, ainda que a lei seja muito clara quanto à necessidade de demonstração de crise, e que os documentos exigidos sejam exaustivos nesse sentido, ainda assim é possível que muitos empresários/empresas tentem burlar a lei, requerendo a recuperação judicial exclusivamente para fraudar credores.

Não são raras as vezes em que determinados credores, especialmente aqueles com maior poder aquisitivo e possibilidade de contar com o auxílio de assistentes técnicos, apresentam, nos autos de recuperação judicial, laudos econômicos e análises dos fluxos de caixa e balancetes das empresas recuperandas, que demonstram determinados desvios e ocultação de patrimônio. Indo um pouco mais além, em certos casos, ao analisar a empresa recuperanda – e outras empresas e empresários a ela possivelmente vinculadas –, é possível encontrar elementos que caracterizem (a) desvio de finalidade; ou (b) confusão patrimonial, através da fraude ou do abuso de direito.

Rememorando o que determina o art. 50 do Código Civil, para a desconsideração da personalidade jurídica são necessários (a) o requisito objetivo, que consiste na insuficiência patrimonial do devedor; e (b) o requisito subjetivo, consistente no desvio de finalidade ou confusão patrimonial através da fraude ou do abuso de direito. Em complemento, tem-se que o art. 134 do Código de Processo Civil determina que “O incidente de desconsideração é cabível em todas as fases do processo de conhecimento, no cumprimento de sentença e na execução fundada em título executivo extrajudicial”.

Tendo isso em vista, e considerando que, ao menos à primeira vista, a instauração de incidente de desconsideração da personalidade jurídica no bojo de um processo de recuperação judicial não é obstado por lei, seria conveniente e efetivo prosseguir com essa medida e incluir os então “desconsiderandos” como “recuperandas” do feito recuperacional, quando presentes os pressupostos necessários?

O primeiro ponto que deve ser considerado pelo credor é que a desconsideração da personalidade jurídica é possível, em caráter excepcional, e desde que evidenciado o abuso na utilização da personificação ou a fraude à lei, ocorrendo o desvio de bens para pessoas físicas e jurídicas, com o intuito de lesar credores. Fábio Ulhoa Coelho, nesse sentido, afirma que a teoria maior da desconsideração da personalidade jurídica é aquela pela qual se autoriza o Poder Judiciário a ignorar a autonomia patrimonial da pessoa jurídica sempre que ela tiver sido utilizada como expediente para a realização de fraude. (COELHO, Fabio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. v. 2., 5.ª ed. São Paulo: Saraiva: 2002, p. 20).

Uma vez existentes os elementos necessários, o credor precisa analisar a efetividade de seguir com a medida: a inclusão de eventual desconsideranda no polo ativo da recuperação judicial traria quais benefícios? Mais bens seriam incluídos para pagamento do plano de recuperação judicial? Havendo maior patrimônio, seria possível melhorar a proposta de pagamento apresentada pelas recuperandas? Poderiam ser incluídos no polo ativo da recuperação apenas aqueles que podem, a princípio, requerer recuperação judicial, ou qualquer pessoa (física e jurídica)? Quanto a este último ponto, apesar de não haver dispositivo algum a respeito, não é plausível pensar que pessoas que não podem requerer recuperação judicial possam ser incluídas em seu polo ativo por meio da desconsideração de personalidade jurídica.

Sendo assim, após os pontos acima serem refletidos e considerados, havendo elementos, eficácia e conveniência, é importante que o credor verifique a real possibilidade de inclusão da desconsideranda no polo ativo da recuperação judicial, com base no entendimento jurisprudencial. Neste contexto, ressalta-se que, recentemente, aos 16 de março de 2022, o Tribunal de Justiça de São Paulo, nos autos de Agravo de Instrumento n. 2253364-34.2021.8.26.0000, confirmou decisão de 1.º grau que determinou a inclusão de seis pessoas físicas e de três pessoas jurídicas no polo passivo de recuperação judicial. O fundamento para a inclusão das desconsiderandas foi de que o grupo operava com abuso, configurando uma das hipóteses dispostas no art. 50, caput, do Código Cível.

Em análise a esse mesmo caso, em recente publicação no “Conjur”, Nida Saleh Hatoum e José Miguel Garcia Medina, discorreram que “da fundamentação dos dois pronunciamentos se extrai, com tranquilidade, que o contexto no qual se insere a recuperação judicial dos devedores é absolutamente preocupante e reflete abusos que, não raramente, são praticados a partir de interpretação conveniente e distorcida da Lei nº 11.101/2005 e que, em última análise, esvaziam o conteúdo e a finalidade da norma, esculpidos também em seu artigo 47. É dizer: tanto a cuidadosa decisão proferida pelo juízo de primeiro grau quanto o acórdão que a confirmou dão conta de atos que devem ser considerados como abuso da personalidade jurídica para fins de aplicação do artigo 50 do Código Civil, a ensejar a desconsideração” (“TJ-SP confirma decisão que inclui pessoa física no polo ativo de recuperação judicial”, disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-mai-23/medina-hatoum-pessoa-fisica-polo-ativo-recuperacao-judicial, acesso em 19.08.2022).

A despeito de não haver dispositivo específico que regule a desconsideração de personalidade jurídica no bojo da recuperação judicial, não há, de igual modo, dispositivo algum que a proíba. Deste modo, a fim de coibir as diversas fraudes que podem ser perpetradas em uma recuperação, os magistrados e os tribunais pátrios, a exemplo do caso supracitado, podem permitir a desconsideração, com a consequente inclusão das desconsiderandas no polo ativo da recuperação judicial.

Para tanto, é possível utilizar, em muitos casos, aplicação análoga do que determina o art. 82-A da Lei n. 11.101/2005, que admite a desconsideração da personalidade jurídica aos sócios de responsabilidade limitada, aos controladores e aos administradores da sociedade falida (como exemplo: REsp 1259018/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI,TERCEIRA TURMA, julgado em 09/08/2011, DJe25/08/2011).

Ponderando essas questões, não é aceitável que uma empresa requeira recuperação judicial, via de consequência, pague os credores com deságios altíssimos, e ainda deixe seu patrimônio em empresas que podem ocultá-lo e movimentá-lo a seu bel prazer, valendo-se do instituto da recuperação judicial para se beneficiar de sua própria torpeza.

Deste modo, prima facie, verifica-se que a desconsideração da personalidade jurídica é medida que pode ser utilizada como forma de coibir e evitar fraudes contra credores, e desestimular requerimentos de recuperação judicial com o único intuito de blindar e/ou ocultar patrimônio.

 

 

Veículo:  https://www.conjur.com.br/2022-set-16/giovanna-fachini-incidente-desconsideracao-personalidade-juridica