Notas sobre o planejamento sucessório: a potencialidade do acordo de cotistas ou acionistas no contexto das holdings familiares

Artigo publicado originariamente na revista Consultor Jurídico, em 28.03.2023 (https://www.conjur.com.br/2023-mar-28/mariana-barsaglia-cotistas-contexto-holdings-familiares). 

Muito tem se falado sobre o planejamento patrimonial e sucessório, enquanto instrumento jurídico apto a assegurar a transmissão do acervo patrimonial após a morte, de maneira segura e eficaz. São diversos os instrumentos que podem ser utilizados pelos titulares do patrimônio (e por suas famílias) para a organização da transmissão patrimonial que ocorrerá com o evento morte.

Dentre eles está a constituição de sociedades empresárias denominadas de holdings.

Pode-se dizer que as holdings, em termos gerais, funcionam da seguinte maneira: (a) as sociedades empresárias, constituídas sob a forma de pessoas jurídicas de direito privado, abrigam o patrimônio do titular dos bens (móveis ou imóveis) e/ou passam a participar de outras empresas (através da aquisição de cotas sociais ou ações); (b) através de um ato em vida (cessão gratuita ou onerosa) ou após a morte (sucessão legítima ou testamentária), as cotas sociais ou ações das sociedades holdings são transferidas aos herdeiros do titular do patrimônio.

Nesse contexto, conforme lecionam Simone Tassinari Fleischmann e Fernando René Graeff no texto “Contornos jurídicos da holding familiar como instrumento de planejamento sucessório” (In: TEIXEIRA, Daniele Chaves. Arquitetura do Planejamento Sucessório. Tomo II. Belo Horizonte: Fórum, 2021, p. 675-712, p. 675), ao invés de “os herdeiros receberem uma fração de diversos bens, recebem as quotas ou ações de uma sociedade (com personalidade jurídica própria) que, por sua vez, é a titular dos referidos bens”.

As sociedades empresárias holdings podem ser patrimoniais (criadas para hospedar e controlar o patrimônio do titular), de participação (criadas para serem titulares de cotas sociais ou ações em outras sociedades empresárias) ou mistas (criadas para ambas as finalidades). Via de regra, estas empresas são constituídas sob as formas de sociedades limitadas (regidas pelo Código Civil de 2002) ou de sociedades anônimas ou por ações de capital fechado (regidas pela Lei n. 6.404/1976).

Para a formação das holdings é necessário que sejam firmados (e registrados) os respectivos atos constitutivos: contrato social, para o caso de sociedades limitadas; ou estatuto, para o caso de sociedades anônimas. Tais instrumentos podem trazer em seu conteúdo regras que deverão ser observadas pelo titular do patrimônio e por seus sucessores (como, por exemplo, a forma de apuração e pagamento de haveres, caso haja saída dos titulares do capital social; e/ou disposições sobre o futuro da sociedade, em caso de morte dos sócios).

Além disso, também é permitido que os sócios ou acionistas celebrem, entre si, pactos ou contratos “parassociais”, que, segundo Marcelo Bertoldi, são “contratos firmados entre alguns ou todos os sócios da sociedade empresária (Acordo de acionistas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 37). São espécies de pactos parassociais o acordo de cotistas (para as sociedades limitadas) e o acordo de acionistas (para as sociedades anônimas).

Uma das vantagens destes instrumentos, como anotam os já citados autores Simone Tassinari Fleischmann e Fernando René Graeff (In: TEIXEIRA, Daniele Chaves. Arquitetura do Planejamento Sucessório. Tomo II. Belo Horizonte: Fórum, 2021, p. 675-712. pp. 697-698), é que fica dispensada a publicidade do acordo “quando, por vezes, há questões inclusive de cunho familiar que são nele reguladas, podendo não ser de interesse dos sócios que se tornem de conhecimento de terceiros”.

A miríade de questões que podem ser acordadas nestes instrumentos contratuais é ampla.

Nos acordos de cotistas e de acionistas é possível que sejam inseridas cláusulas que tratem, por exemplo: (a) da obrigação de os titulares das cotas sociais (ou ações) outorgarem procuração aos gestores do patrimônio (ex-titulares); (b) da proibição de inserção de novos sócios e/ou limitação de inserção de novos sócios; (c) da vedação de contratação de membros da família; (d) do direito de preferência e da call option (que permite aos ex-titulares do patrimônio comprarem novamente as cotas sociais/ações por um preço pré-ajustado); (e) da forma de distribuição de lucros; (f) dos direitos encartados nas cláusulas de tag along e drag along; (g) das condições de entrada e de saída de sócios; e (h) dos métodos alternativos para a solução de conflitos.

Em decisão publicada em fevereiro 2020, o Tribunal de Justiça da Bahia (na Apelação Cível n. 0539106-69.2015.8.05.0001, relatada pelo Desembargador Mário Augusto Albiani Alves Júnior) chancelou a validade e a eficácia de cláusula compromissória existente em acordo de acionistas, firmado em momento posterior à formação do estatuto social (que elegia o foro da Comarca de Salvador para a resolução de conflitos entre os sócios), reconhecendo a prevalência da cláusula que previa que as controvérsias acerca das questões tratadas no acordo de acionistas seriam submetidas à arbitragem.

A utilização de ferramentas como o acordo de cotistas e de acionistas, que tem por fundamento o exercício a autonomia privada, serve para que os indivíduos regulamentem os seus próprios interesses, de acordo com as especificidades de suas relações familiares e patrimoniais. 

A tendência é que, cada vez mais, sejam assegurados espaços para autodeterminação no âmbito do planejamento sucessório, de forma que o emprego de instrumentos do direito empresarial pelo direito sucessório pode ser de grande valia para que seja assegurada a vontade do titular do patrimônio acerca do que ocorrerá com a sua “herança” após a morte.