Limite territorial da proibição de contratar com o poder público como sanção por ato de Improbidade Administrativa

A ação de improbidade administrativa é um instrumento para a proteção do patrimônio e interesse públicos. É respaldada pela ideia de que, para além da legalidade, é necessária a obediência ao princípio da moralidade, como previsto pela Constituição Federal, em seu art. 37.

Segundo ensina Maria Sylvia Zanella Di Pietro: “Quando se exige probidade ou moralidade administrativa, isso significa que não basta a legalidade formal, restrita, da atuação administrativa, com observância da lei; é preciso também a observância de princípios éticos, de lealdade, de boa‑fé, de regras que assegurem a boa administração e a disciplina interna na Administração Pública”. (DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 33. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 973).

As sanções administrativas por ato de improbidade não se aplicam apenas aos agentes públicos. Ao contratar com o poder público, pessoas físicas e empresas privadas também se submetem à denominada Lei de Improbidade (Lei n. 8.429/1992, alterada pela Lei n. 14.230/2021), mais precisamente se tornam suscetíveis de responsabilização por atos ímprobos (cf. parágrafo único do art. 2.º da Lei n. 8.429/1992).

Ao incorrer em atos que acarretem o enriquecimento ilícito (art. 9.º), causem prejuízo ao erário (art. 10) ou que atentem contra a os princípios da Administração Pública (art. 11), são atualmente aplicadas as penas previstas no art. 12 da Lei de Improbidade, que disciplina que, independentemente do ressarcimento integral do dano patrimonial, está o responsável pelo ato de improbidade sujeito à penalidade de, dentre outras, proibição de contratar com o Poder Público (incisos I, II e III).

Após a reforma da Lei de Improbidade pela Lei n. 14.230/2021, que alterou também a composição do art. 12, a nova redação que incluiu o § 4.º passou a prever que, “em caráter excepcional e por motivos relevantes devidamente justificados, a sanção de proibição de contratar com poder público pode extrapolar o ente público lesado pelo ato de improbidade”.

A regra atual, portanto, é a limitação dos efeitos da proibição ao ente público lesado; e a exceção é extrapolação para outras esferas, que deve ser devidamente justificada. Ocorre que até a edição da nova legislação, o entendimento aplicado pelos Tribunais brasileiros era perfeitamente oposto. Isto é, a regra era a aplicação da proibição de contratar perante todos as esferas da Administração Publicação e a limitação ao Ente Público era tratada como exceção (v.g. STJ, REsp n. 1.003.179/RO, 1.ª T., Rel.: Min. Teori Albino Zavascki, j. 05.08.2008).

O acórdão proferido quando do julgamento do REsp n. 1.003.179/RO, considerado pioneiro no STJ, serviu como referência para outros julgamentos no mesmo sentido, como é o caso do AgInt no AREsp n. 791.744/SP, de 2021, que restringiu a proibição de contratar com a Administração Pública aos limites territoriais do município lesado, sob o fundamento da proporcionalidade, uma vez que as consequências do ato ímprobo ficaram restritas àquela localidade.

Assim, na legislação anterior, o que parecia exigir “motivos relevantes devidamente justificados” era a limitação ao ente público lesado e não a sua extrapolação. O curioso é que o texto normativo não sofreu qualquer alteração. Uma simples comparação gramatical dos incisos do art. 12 da Lei n. 8.429/1992 e da redação trazida pela Lei n. 14.230/2021 acarreta a conclusão de que a única alteração em seus incisos I, II e III - que preveem a sanção – se deu quanto ao prazo pelo qual essa perduraria.

A inclusão do § 4.º apenas reforça a ideia de que, na avaliação do legislador, a proibição de contratar com o Poder Público prevista na Lei de Improbidade Administrativa desde o início é restrita ao ente público lesado e que já era essa a interpretação adequada antes mesmo da reforma. Não fosse assim, a redação da nova Lei teria alterado o dispositivo que cria a regra como um todo e não apenas introduzido um parágrafo para elucidar a exceção.

Assim, as condenações anteriores à alteração promovida pela Lei n. 14.230/2021, embasadas no entendimento de que o condenado por ato de improbidade estaria impedido de contratar com a Administração como um todo, em qualquer esfera e qualquer lugar, já se mostravam em desacordo com a real intenção do legislador.

Fato é que a problemática está – ou parece estar – encerrada pela nova legislação, de modo que a regra para a proibição deve se limitar ao ente público lesado. Conforme ensina a hermenêutica para leis dessa natureza, a exceção deve ser interpretada restritivamente, de modo que a ampliação, seja objetiva ou subjetiva dos efeitos da sanção, deve não só guardar rigorosa observância às condições expressas na própria lei, como também ser orientada por princípios específicos, especialmente da proporcionalidade e da adequação.

Em que pese previsto originalmente para o Direito Penal, o princípio da proporcionalidade encontra morada no Direito Constitucional e, assim, irradia a todos os campos jurídicos, sendo aplicado de igual modo ao tema tratado. Por ele, busca-se aferir a compatibilidade da lei aos fins pretendidos.

Nas palavras de Wilson Antônio Steinmetz, na obra Colisão de direitos fundamentais e princípio da proporcionalidade: “O princípio ordena que a relação entre o fim que se pretende alcançar e o meio utilizado deve ser proporcional, racional, não excessiva, não arbitrária. Isso significa que entre meio e fim deve haver uma relação adequada, necessária e racional ou proporcional”. (STEINMETZ, Wilson Antônio. Colisão de direitos fundamentais e princípio da proporcionalidade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 149).

Ao interpretar a norma, deve-se levar em conta que referidas sanções também se sujeitam a critérios e princípios no que se refere à sua aplicação e dosagem, de modo a não extrapolarem suas funções. No caso, a proporcionalidade deve ser observada no sentido de que a intensidade da sanção deve guardar correlação com a gravidade e o resultado da conduta ímproba.

De igual modo, a adequação deve observar a função da sanção, no sentido de atingir, sem excessos ou danos marginais, os fins a que se propõe. Basicamente, reprimir a conduta e, especificamente no caso da proibição de contratar com o Poder Público, prevenir novos danos ao patrimônio público, inviabilizando eventual reincidência, naquilo que o Ministro Mauro Campbell chamou de “a força pedagógica e intimidadora de inibir a reiteração da conduta ilícita” (v.g. STJ, REsp n. 1.185.114/MG, 2.ª T., Rel.: Min. Mauro Campbell Marques, j. 2.9.2010).

Dessa forma, a extrapolação da proibição de contratar aos limites do ente administrativo reclama relevante justificativa do julgador, até porque o excesso sancionatório eventualmente aplicado poderá inviabilizar a atividade econômica do apenado, o que violaria o § 3.º do mesmo artigo 12, onde se ressalva que “na responsabilização da pessoa jurídica, deverão ser considerados os efeitos econômicos e sociais das sanções, de modo a viabilizar a manutenção de suas atividades”.