Humanização dos animais: o direito dos animais em serem parte processual

Diante da evolução do ser humano como indivíduo, da humanidade enquanto sociedade e da atual conjectura do conceito de família, é expressivo o crescimento do número de animais de estimação em todo o mundo, no âmbito das famílias e, consequentemente, cada vez mais, do fenômeno chamado “humanização dos animais”.

Neste contexto, em setembro de 2021, a 7.ª Câmara Cível do TJPR entendeu no julgamento do Agravo de Instrumento n. 0059204-56.2020.8.16.0000 que dois cachorros teriam a capacidade de serem parte em processo judicial contra seus ex-donos sob alegação de maus tratos na cidade de Cascavel.

Spyke e Rambo, cães das raças golden retriever e pointer inglês, respectivamente, foram supostamente deixados nos fundos de sua casa por seus donos durante 29 dias em janeiro de 2020, até que os vizinhos, que os alimentaram durante esse período, se comoveram e acionaram a ONG Sou Amigo para resgatá-los.

Após o resgate, a ONG Sou Amigo ingressou com ação de reparação de danos contra os ex-tutores requerendo o ressarcimento dos valores gastos pela ONG, o pagamento de indenização por danos morais em favor dos cães e o pagamento de pensão mensal aos animais, até a concessão da guarda definitiva dos animais à ONG.

A 3.ª Vara Cível de Cascavel entendeu por extinguir a ação sem resolução de mérito com relação aos demandantes cães, Spyke e Rambo, por ausência de capacidade de serem parte processual. Inconformados, os animais, representados pela ONG Sou Amigo, recorreram da decisão, cujo Agravo de Instrumento n. 0059204-56.2020.8.16.0000 foi provido para reconhecer a capacidade de ser parte dos animais em juízo.

Em seu voto, o Desembargador substituto Marcel Guimarães Rotoli de Macedo entendeu que “[...] os animais, enquanto sujeitos de direitos subjetivos, são dotados da capacidade de ser parte em juízo (personalidade judiciária), cuja legitimidade decorre não apenas do direito natural, como também do direito positivo estatal, consoante expressa previsão do art. 2º, § 3º, do Decreto 24.645/1934, além de previsto expressamente na declaração de Toulon (2019), bem como em atenção aos Direitos e Garantias Fundamentais de um Estado Democrático de Direito” (v.g. TJPR, AI n. 0059204-56.2020.8.16.0000, 7.ª Câmara Cível, Rel. Des. Subs. Marcel Guimarães Rotoli de Macedo, j. 14.09.2021).

Sobre a capacidade processual, tem-se que o Direito Brasileiro classifica o instituto em três tipos, são eles: a capacidade de ser parte, capacidade processual e a capacidade postulatória.

A capacidade de ser parte, também chamada de personalidade processual ou personalidade judiciária, é a capacidade de ser sujeito da relação jurídica processual. Marcos Bernardes de Mello escreve na Revista de Direito Privado (v. 3, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 9) que: “ter capacidade e ser parte é ser titular de pretensão à tutela jurídica. A pretensão à tutela jurídica, apesar de referir-se, especificamente, a matéria processual, porque diz respeito ao direito de provocar a jurisdição no sentido de obter a prestação jurisdicional, que, no Brasil, resulta da incidência do art. 5.º, I, XXXV e LV da CF; é de direito material e pré-processual porque existe antes do processo, constituindo pressuposto para que se possa invocar a proteção da jurisdição estatal. Por isso, a capacidade de ser parte tem natureza de direito material, não processual”.

Já a capacidade de ser parte, também chamada de capacidade de estar em juízo, não se confunde com a capacidade processual, por ser a aptidão para agir no processo de maneira autônoma, sem o acompanhamento de outra pessoa. Em outras palavras, a capacidade de estar em juízo é a capacidade para praticar pessoalmente atos processuais, independentemente de assistência ou representação.

Por fim, a capacidade postulatória é mais restrita e diz respeito à aptidão para a prática de atos processuais conferida aos advogados públicos ou privados, conforme previsto no art. 103, caput, do CPC.

Assim, esclarecidas as diferenciações da capacidade processual, o Desembargador substituto Marcel Guimarães Rotoli de Macedo entendeu no julgamento do Agravo de Instrumento n. 0059204-56.2020.8.16.0000 que, embora os cães não detenham capacidade processual, são dotados de capacidade de ser parte ou personalidade processual, fundamento que justificou reforma da sentença de primeiro grau. No momento, o processo se encontra em fase de Agravo em Recurso Extraordinário e Recurso Especial, ainda não remetidos aos Tribunais Superiores.

No sistema jurídico vigente no Brasil, por mais amor e afeto que os animais possam receber dos seres humanos, a natureza jurídica dos animais ainda é de “coisa”, ou seja, os animais não equivalem a um sujeito de direitos e com personalidade. Os animais silvestres são considerados como bens de uso comum do povo e bens públicos, nos termos dos art. 225, CF e arts. 98 e 99, CC, enquanto que os animais domésticos são considerados bens móveis suscetíveis de movimento próprio, nos termos do art. 82, CC.

Contudo, não é porque os animais possuem natureza jurídica de “coisa” no Direito Brasileiro que serão tratados como objetos inanimados. José Fernando Simão no artigo intitulado “Direito dos animais: natureza jurídica. A visão do direito civil” escreve que “[...] os animais não humanos são coisas especiais, pois são seres dotados de sensibilidade e passíveis de sofrimento e dor. É por isso que o direito de propriedade sobre os animais, segundo interpretação sistemática do Código Civil, não pode ser exercido de maneira idêntica àquele que se exerce sobre as coisas inanimadas ou não dotadas de sensibilidade” (v. 4, Lisboa: Revista Jurídica Luso-brasileira, 2017, p. 899).

Na medida que a humanidade evolui, se torna mais sensível e ganha uma visão mais apurada em relação ao universo e ao planeta Terra em que habita, não se pode ignorar que os animais, sobretudo os animais estimação, como a própria designação “estimação” indica, ganham um novo espaço dentro da sociedade.

O conceito de “humanização dos animais” se refere ao fenômeno comum que consiste em atribuir características humanas, sejam elas físicas, emocionais ou comportamentais ao animal. Portanto, a humanização dos animais não pode deixar de lado a atribuição das regras de direito destinadas ao ser humano também aos animais.

Seguindo a mesma linha de raciocínio, o termo estimação demonstra a relação de afetividade, amor, afeto, carinho e respeito que se forma entre pessoa e o animal. Assim, não se pode permitir que o direito negue a importância ou deixe de dar o devido valor aos animais. Nesse caminho, o direito deve se mostrar capaz de acompanhar a evolução, a velocidade e complexidade das novas relações existentes no seio da sociedade.

Atualmente, a representação dos animais em juízo é prevista pelo seu art. 2º, §3º do Decreto 24.645/1934 no qual se estabelece que os animais serão assistidos em juízo pelo Ministério Público, substitutos legais e pelos membros das sociedades protetoras de animais. Vicente de Paula Ataíde Junior escreve seu artigo “A capacidade processual dos animais” que “Animais postulando direitos perante tribunais – e conseguindo, por meio do processo, melhorar suas vidas – têm um significado discursivo incomparável, jamais alcançado na história da relação humanidade/animalidade ou mesmo da história na moralidade. Significa a inclusão dos animais não humanos na comunidade moral, antes formada apenas por humanos” (v. 313, São Paulo: Revista Processo, 2021, p. 95-128).

Destaca-se, inclusive, o Projeto de Lei n. 145/2021, de iniciativa do deputado federal Eduardo Costa (PTB/PA), protocolado em fevereiro de 2021, o qual, atualmente, aguarda parecer do relator na Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (CMADS). O texto sugere a alteração do Código de Processo Civil para permitir que animais não-humanos possam ser, individualmente, parte em processos judiciais, sendo representados pelo Ministério Público, pela Defensoria Pública, por associações de proteção dos animais ou por quem detenha sua tutela ou guarda.

O projeto visa acrescer no art. 75, do CPC o inciso XII com a seguinte redação: “Art. 75. Serão representados em juízo, ativa e passivamente: [...] XII - os animais não-humanos, pelo Ministério Público, pela Defensoria Pública, pelas associações de proteção dos animais ou por aqueles que detenham sua tutela ou guarda”.

Defende o Deputado Eduardo Costa que "Se até uma pessoa jurídica, que muitas vezes não passa de uma folha de papel arquivada nos registros de uma Junta Comercial, possui capacidade para estar em juízo, inclusive para ser indenizada por danos morais, parece fora de propósito negar essa possibilidade para que animais possam ser tutelados pelo Judiciário caso sejam vítimas de ações ilícitas praticadas por seres humanos ou pessoas jurídicas. Com a aprovação deste projeto de lei, o Congresso Nacional pacificará essas questões processuais, possibilitando uma ampliação significativa da tutela jurisdicional dos animais, o que refletirá na proteção jurídica ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, que é um direito fundamental de todos, conforme estabelecido no art. 225 da Constituição Federal" (Projeto de Lei n. 145/2021).

Assim, considerando que os animais são seres sencientes, dotados de natureza biológica e emocional e passíveis de sofrimento, a aprovação do projeto sanaria, de uma vez por todas, a discussão quanto à possibilidade ou não dos animais serem partes processuais.