Honorários sucumbenciais em incidente de desconsideração da personalidade jurídica: revisitando o tema

Desde que o Código de Processo Civil de 2015 inaugurou a possibilidade de a desconsideração da personalidade jurídica ser pleiteada pela via incidental ao processo principal (v.g. arts. 133 e 134 do CPC) é que se discute acerca do cabimento da condenação da parte vencida ao pagamento de honorários advocatícios sucumbenciais.

Dos desdobramentos que orbitam o tema, a principal controvérsia está na ausência de previsão legal para a fixação de honorários advocatícios em incidentes processuais, com exceção de quando extinguem ou alteram substancialmente o processo principal (v.g. ERESP 1366014/SP, Corte Especial, Rel. Min Napoleão Nunes Maia Filho, j. 29.3.2017).

Por um lado, entende-se que a natureza interlocutória da decisão que julga o incidente de desconsideração da personalidade jurídica (a teor do art. 136 do CPC) afasta a possibilidade de arbitramento de honorários advocatícios, uma vez que o art. 85, caput e § 1.º, do CPC enumera de forma taxativa as hipóteses passíveis de fixação de honorários, não contemplando em seu rol este incidente processual. De tal maneira, para quem se filia a esse modo de pensar, conferir uma interpretação extensiva ao referido artigo causaria um alargamento da ratio legis, contrariando o princípio da legalidade. 

Outra interpretação sugere que o arbitramento de honorários deve ocorrer apenas nos casos em que o incidente é rejeitado, posto que a decisão interlocutória extinguiria a relação processual que se criou entre o autor e o réu do incidente. A contrario sensu, na hipótese de acolhimento, os terceiros passariam a integrar o polo passivo da ação principal, de modo que a atuação dos patronos seria recompensada dentro do processo originário (cf. entendimento de Otávio Joaquim Rodrigues Filho na obra Desconsideração da personalidade jurídica e processo: de acordo com o Código de Processo Civil de 2015. São Paulo: Malheiros. 2016. p. 334).

Em outra ponta, há também o posicionamento de que o rol previsto no art. 85, § 1.º, do CPC não seria exaustivo e que, apesar de sua natureza incidental (com desdobramentos na ação principal), a desconsideração da personalidade jurídica consiste em pretensão direcionada contra terceiros, que serão citados e exercerão o contraditório, havendo ainda a possibilidade de dilação probatória, tal como uma ação de conhecimento autônoma. Dessa forma, nas palavras de Cássio Scarpinella Bueno na obra Comentários ao Código de Processo Civil (1.ª ed. vol. 1, São Paulo, Saraiva, 2017, p. 585), considerando a ampliação subjetiva da demanda, a decisão que julga o incidente seria “equiparada a uma sentença que cria uma nova realidade jurídica, relativa à desconsideração”.

A discussão da controvérsia evidentemente chegou às portas do Superior Tribunal de Justiça. O precedente escolhido, julgado em 26 de maio de 2020, pela 3.ª Turma, foi o Recurso Especial n. 1845536/SC, que integrou o Informativo de Jurisprudência n. 673, de 03 de julho de 2020. Na ocasião, os ministros da Turma, por maioria, deram provimento ao recurso especial, nos termos do voto do Ministro Marco Aurélio Bellizze.

Destaca-se que, inicialmente, a relatoria do recurso foi atribuída à Ministra Nancy Andrighi, que entendeu pelo provimento do recurso especial e exoneração do então recorrente ao pagamento de honorários sucumbenciais. Fundamentou ela, naquela ocasião, com base na jurisprudência do STJ e nas circunstâncias do caso concreto, que o princípio da sucumbência deveria ser articulado em conjunção ao princípio da causalidade, de modo que não haveria como impor ao credor – em sua busca pela satisfação do crédito – a responsabilidade pela instauração do incidente de desconsideração, na medida em que ele apenas se fez necessário em razão do inadimplemento da parte devedora.

Em aditamento ao seu voto, a Ministra Nancy Andrighi declarou que outro fator preponderante é a inovação da sistemática estabelecida no CPC/15 em relação à revogação da teoria da unidade estrutural da sentença e das decisões parciais de mérito, concluindo que, apesar de não existir a previsão expressa no art. 85, § 1.º, do CPC, o incidente de desconsideração possui natureza semelhante a um procedimento comum, tratando-se de uma decisão meritória – de modo que, em tese, seria cabível a condenação ao ônus da sucumbência, o que, no caso julgado, deveria ser afastado pelo princípio da causalidade.

Tais fundamentos, contudo, foram vencidos pelo voto proferido pelo Min. Marco Aurélio Bellize, que mesmo alcançando conclusão idêntica – isto é, o provimento do recurso e exoneração do pagamento dos honorários – entendeu que tal arbitramento não era cabível em razão da taxatividade prevista pelo art. 85, § 1.º, do CPC, o que o tornaria “juridicamente impossível”.

Passados mais de dois anos da orientação do Superior Tribunal de Justiça no sentido de que não é cabível a fixação de ônus sucumbenciais em incidente de desconsideração da personalidade jurídica, considerando a natureza interlocutória da decisão que resolve o incidente (art. 136 do CPC) e a ausência de previsão no rol do art. 85, § 1.º do CPC, os Tribunais de Justiça seguem proferindo decisões divergentes sobre o assunto.

Nos Tribunais de Justiça de São Paulo e do Paraná, encontram-se acórdãos contrários ao arbitramento de ônus sucumbenciais em incidente de desconsideração da personalidade jurídica. Como exemplo: (i) TJSP, AI 2050958-87.2022.8.26.0000, 25.ª Câmara de Direito Privado, Rel.: Hugo Crepaldi, j. 21.07.2022; (ii) TJSP, AI 2102335-97.2022.8.26.0000, 9.ª Câmara de Direito Privado, Rel.: César Peixoto, j. 20.07.2022; (iii) TJPR, AI 0006842-09.2022.8.16.0000, 17.ª Câmara Cível, Rel.: Tito Campos De Paula, j. 18.07.2022; (iv) TJPR AI 0031664-96.2021.8.16.0000, 16.ª Câmara Cível, Rel.: Juiz de Direito Substituto em Segundo Grau Marco Antônio Massaneiro, j. 04.07.2022.

Nos mesmos Tribunais, também existem acórdãos em sentido contrário: de que são cabíveis os honorários advocatícios sucumbenciais em incidente de desconsideração da personalidade jurídica. Alguns exemplos: (i) TJSP, AI 2131854-20.2022.8.26.0000, 36.ª Câmara de Direito Privado, Rel.: Milton Carvalho, j. 28.07.2022; (ii) TJSP, AI 2092475-72.2022.8.26.0000, 13.ª Câmara de Direito Privado, Rel.: Nelson Jorge Júnior, j. 21.07.2022; (iii) TJPR AI 0067805-51.2020.8.16.0000, 16.ª Câmara Cível, Rel.: Maria Mercis Gomes Aniceto, j. 02.02.2022.

Do cotejo dos julgados mencionados, observa-se que decisões em sentido diametralmente oposto foram proferidas em curto espaço de tempo (praticamente todas no mesmo mês). Tão instável é a jurisprudência sobre o tema, que no Tribunal de Justiça do Paraná há decisões conflitantes dentro de uma mesma Câmara Cível.  De tal maneira, sequer é possível afirmar que a divergência se limita aos Tribunais dos diferentes Estados, na medida em que, em um viés mais grave, as decisões conflitantes estão ocorrendo entre colegiados de um mesmo Tribunal de Justiça. Isso demonstra o tamanho da instabilidade e insegurança jurídica que a ausência de uma decisão vinculante está gerando sobre o tema.

Como se disse, apesar de o assunto constar no Informativo de Jurisprudência n. 673 do STJ, demonstrando a sua relevância, ao que parece, muito em breve o Superior Tribunal de Justiça revisitará o tema relativo ao (des)cabimento da condenação nos ônus sucumbenciais em incidente de desconsideração da personalidade jurídica, desta vez, por meio de decisão com caráter vinculativo com o aprofundamento que o tema merece, a fim de estabilizar e unificar o entendimento, evitando que os Tribunais de Justiça profiram interpretações divergentes, tal como está ocorrendo.

 

Veículo: https://www.conjur.com.br/2022-ago-11/luiza-ishie-macedo-honorarios-sucumbenciais