Das nuances inerentes ao adiantamento a contrato de câmbio no âmbito falimentar e seus efeitos no pedido de restituição em dinheiro dos valores adiantados

Dentre todas as temáticas que circundam e tangem a Lei 11.101/2005, denota-se que o pedido de restituição, previsto na Seção III desta lei, apesar de bem embasado, nem sempre possui uma aplicação consolidada, sendo, constantemente, alvo de diversas discussões. Seja pelo seu cabimento, abrangência ou efeitos.

Se o tópico como um todo é amplamente discutido, o pedido de restituição em dinheiro não poderia ser diferente, principalmente no que diz respeito à restituição em dinheiro da monta entregue ao devedor, em moeda corrente nacional, decorrente de adiantamento a contrato de câmbio para exportação, positivada no art. 86, inciso II da Lei 11.101/2005.

Como se sabe, o adiantamento a contrato de câmbio é contrato de compra e venda de moeda a termo. Isto é, a concretização da operação de câmbio somente ocorrerá no momento em que o exportador cumprir com a obrigação – seja enviando o bem ou prestando o serviço no exterior – e for paga a contraprestação em moeda estrangeira pelo importador.

Nestes contratos, a instituição financeira transfere à empresa capital em moeda nacional, que somente integrará o patrimônio empresarial de forma definitiva após a realização da futura exportação e o consequente recebimento, pelo exportador, do recurso devido pelo negócio, em moeda estrangeira. A Circular nº 3.691/2013 do Banco Central do Brasil define, em seus artigos 40 e 65, em que consiste o ajuste e o adiantamento em moeda nacional de divisas estrangeiras compradas para entrega futura.

É factível declarar, portanto, que nas operações de adiantamento de contrato de câmbio, enquanto não houver a definitiva exportação do bem e o recebimento de valores em moeda estrangeira pelo exportador, o adiantamento efetuado e recebido pelo exportador é, em verdade, dinheiro de terceiro – neste caso, da instituição financeira – que se encontra em poder da empresa exportadora. 

Embasando tal posicionamento, ensina Eduardo Salomão Neto (Direito Bancário. 3ª ed. São Paulo: Atlas. 2007, p. 320) que a verdadeira finalidade da antecipação do contrato de câmbio é o pagamento antecipado do valor de bem móvel adquirido (moeda estrangeira), e não operação autônoma de empréstimo.

Pois bem. Partindo então ao eventual cenário falimentar desta empresa exportadora, da qual, conforme exposto, ostenta a posse de capital que não lhe pertence, vez que a transação comercial de exportação não se concretizou, os valores antecipados pela Instituição Financeira não chegam a integrar o patrimônio da massa falida.

Portanto, na conjuntura falimentar, não poderão os valores adiantados se submeterem ao procedimento concursal de quitação dos débitos. Ou seja, devem ser restituídos ao seu titular. Necessário frisar ainda que a restituição em questão possui preferência ante os credores concursais.

Em razão disso, no inciso II do art.86 da Lei 11.101/2005, se faz esta previsão da restituição ao credor da importância entre ao devedor, em moeda corrente nacional, decorrente de adiantamento a contrato de câmbio para exportação, na forma do art.75, §§3.º e 4.º. da Lei n. 4.728, de 14 de julho de 1965, desde que o prazo total da operação, inclusive eventuais prorrogações, não exceda o previsto nas normas especificas da autoridade competente.

Da mesma maneira, preceitua o art. 75, §§3º e 4º, da Lei 4.728/1965, ao afirmar que poderá o credor pedir a restituição das importâncias adiantadas.

Tal previsão, inclusive, já foi sumulada pelo STJ por meio do enunciado nº 307, no qual reitera o entendimento de que restituição de adiantamento de contrato de câmbio, na falência, deve ser atendida antes de qualquer crédito, cujos termos se encontram em sintonia com a Súmula 417 do STF.

À primeira vista, a solução para a problemática em questão aparenta possuir embasamento sólido e consistente. Todavia, uma das tantas discussões inerentes ao contrato de adiantamento de câmbio no âmbito falimentar e que merece toda a atenção do operador do direito é a eventual transmutação deste adiantamento de câmbio para um contrato de mútuo ou financiamento, transmutação esta que altera, de maneira significativa, o lapso temporal de recebimento dos valores por parte da instituição financeira, credora da falida.

Prevendo esta problemática e, no intuito de evitar o uso mascarado do contrato de adiantamento de câmbio como financiamento ou mútuo, o legislador, ao redigir o art.  86, II, da Lei 11.101/2005, registrou que a restituição em dinheiro do valor adiantado somente poderá ocorrer desde que o prazo total da operação, inclusive eventuais prorrogações, não exceda o previsto nas normas específicas da autoridade competente.

Noutras palavras, se o prazo total da operação superar o intervalo entre o adiantamento e o recebimento efetivo (contando também as prorrogações permitidas), previsto pela autoridade competente, haverá então a transmutação de adiantamento de contrato de câmbio para contrato de mútuo ou financiamento, com a desnaturação da proteção conferida em lei.

Neste cenário, o credor perde a prerrogativa de reaver os valores adiantados com a antelação prevista no art. 84, I-C da Lei 11.101/2005, sendo que o seu crédito passará a integrar o quadro geral de credores concursais, respeitando a ordem de pagamento do art. 83 da Lei 11.101/2005.

Em situações falimentares ordinárias, a transmutação do adiantamento a contrato de câmbio para mútuo, nos termos acima expostos, compara-se à irrecuperabilidade total dos valores. Isto, pois, o crédito em questão será relacionado na classe quirografária e somente será pago se sobrarem ativos após o adimplemento dos credores trabalhistas limitados a 150 salários mínimos, que possuem garantia real e dos credores tributários.

 Ademais, buscando a fundação do tema ora exposto, se faz necessário apresentar o contexto fático de proteção ao contrato de adiantamento de câmbio e o seu relacionamento à esfera falimentar, trazendo à tona a previsão do art. 149, §2º, I da Constituição Federal, do qual visa dimensionar a desoneração constitucional, suprimindo do alcance da competência federal as receitas que resultem da exportação, representando consequências financeiras positivas ao negócio jurídico de compra e venda internacional.

Percebe-se que a intenção explanada na Carta Magna é a de desonerar as exportações, a fim de que as empresas brasileiras não sejam coagidas a exportarem os tributos que onerariam as operações de exportação, seja de modo direto ou indireto.

Seguindo este contexto, recomendável destacar ainda que a disposição constitucional em questão se destina a estimular a atividade produtiva, comercial e exportadora do país, promovendo a circulação de mercadorias e riquezas, incentivando a atividade econômica e a geração de empregos diretos e indiretos.

Todo este sistema de estímulo à exportação integra uma política macroeconômica, visando uma reação em cadeia de benefícios à sociedade e à nação.

Alinhado às previsões constitucionais, o Bacen, através de suas resoluções, altera as disposições que regem e acostam a malha econômica nacional. A título de exemplo, em decorrência da pandemia da Covid-19, o Banco Central ampliou o prazo máximo do contrato de adiantamento de câmbio para até 1.500 dias por meio da Circular 4.002, publicada em 16 de abril de 2020.  (Disponível em https://normativos.bcb.gov.br/Lists/Normativos/Attachments/50989/Circ_4002_v1_O.pdf. Acesso em 29/08/2022)

Como justificativa, o Diretor de Regulação do Banco Central apontou que a proposta aumenta a competitividade das empresas brasileiras que atuam no setor exportador, passando a ter mais tempo para produzir e providenciar o embarque da mercadoria ou prestar o ser viço a ser exportado. (Disponível em: https://normativos.bcb.gov.br/Votos/BCB/2020102/Voto_do_BC_102_2020.pdf. Acesso em 29/08/2022)

Ou seja, é de fácil constatação que todo o panorama desenhado pelo legislador ao tratar como extraconcursal a monta entregue à empresa, decorrente de adiantamento a contrato de câmbio, tem por objetivo conferir maior segurança à instituição financeira que, possuindo riscos constantes de inadimplência, mantém o baixo custo do referido contrato e possibilita o incremento da atividade exportadora do país.

Sobre a restituição de adiantamento ao exportador, Fábio Ulhoa Coelho (Comentários à Lei de Falências e de Recuperação de Empresas . 14ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais) reforça que o pedido de restituição do art. 75, § 3º, da Lei 4.728/65 contribui para a facilitação e o barateamento de financiamento às exportações; ajuda, em última instância, o enfrentamento do desafio nacional pela redução da dependência externa.

Corroborando com a natureza contingente do adiantamento a contrato de câmbio no âmbito falimentar, em abril de 2021, o Plenário do Supremo Tribunal Federal, em julgamento conjunto da ADI 3.424 e da ADPF 312, reconheceu que, em caso de falência, o devedor deverá restituir o valor decorrente de adiantamento a contrato de câmbio para exportação, julgando improcedente os pedidos em julgamento.

Os autores buscavam conferir interpretação conforme à Constituição Federal ao § 3º, do art. 75 da Lei nº 4.728/65 e ao art. 86 da Lei nº 11.101/2005, e declarar que o direito de restituição decorrente de adiantamentos em contratos de câmbio fica condicionado ao prévio pagamento dos créditos trabalhistas, conforme salientado, com efeitos ex tunc. Referida pretensão possuía como fundamento a Súmula 20 do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, que garante a prioridade dos credores trabalhistas frente a devolução dos recursos dos contratos de adiantamento de câmbio. (STF, ADI 3424, Relator p/ Acórdão Ministro Gilmar Mendes, Tribunal Pleno, julgado em 19/04/2021)

Diante disso, é possível aferir que, em que pesem as abundantes disposições legais autorizando a restituição de capital ao credor que repassou os valores à falida à título de adiantamento a contrato de câmbio, muito ainda se discute acerca do posicionamento desta restituição, que dispõe de privilégio frente aos demais credores concursais falimentares, cabendo então aos tribunais superiores enfrentar novamente a matéria de acordo com os fundamentos ventilados pelas partes.