Da necessidade de identificação do dano existencial na responsabilidade civil

Resumo: Diretamente relacionada com a filosofia existencialista, o dano existencial se manifesta na doutrina e jurisprudência estrangeiras como “dano à vida de relação” ou ao “projeto de vida” e no Brasil está positivado no art. 223-B da CLT. Por não existir menção expressa a essa espécie de dano na legislação civilista, há resistência para reconhecê-lo como dano autônomo. Adotando-se o direito civil constitucional como metodologia científica de análise, pretende-se demonstrar que o dano existencial é autônomo em relação ao dano moral e deve ser reparado para fins do art. 944 do CC. Subsidiariamente, àqueles que refutam essa posição, almeja-se evidenciar que a identificação dos interesses violados é necessária para que a vítima seja devidamente reparada. Os resultados serão alcançados por meio da pesquisa teórico-dogmática, com aportes da experiência estrangeira. O método de pesquisa envolve, ainda, a análise estrutural e funcional dos principais elementos da relação jurídica de responsabilidade civil, com destaque para o bem jurídico protegido e para a norma jurídica de reparação.

 

Palavras-chave: Dano existencial. Relação jurídica de responsabilidade civil. Direito civil constitucional. Reparação integral da vítima.

 

Abstract: Directly related to the existentialist philosophy, the existential damage manifests itself in foreign doctrine and jurisprudence as "damage to the relationship life" or to the "life project" and in Brazil it is positivized in “art. 223-B” of the “CLT”. As there is no express mention of this type of damage in civilist legislation, there is resistance to recognize it as autonomous damage. Adopting constitutional civil law as a scientific analysis methodology, it is intended to demonstrate that existential damage is autonomous in relation to moral damage and must be repaired for the purposes of “art. 944 of the CC”. In the alternative, for those who refute this position, aim to show that the identification of violated interests is necessary for the victim to be properly repaired. The results will be achieved through theoretical-dogmatic research, with contributions from foreign experience. The research method also involves the structural and functional analysis of the main elements of the civil liability legal relationship, with emphasis on the protected legal asset and the reparation legal standard.

 

Keywords: Existencial damage. Legal relationship of civil liability.
Constitutional civil law. Full compensation of the victim.

 

Sumário: Introdução. 1. Pessoa, dano e responsabilidade civil. 2. A construção do conceito de dano existencial na experiência italiana. 3. O reconhecimento do dano existencial na jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos. 4. A tutela da autonomia existencial como fundamento jurídico do dano existencial no ordenamento brasileiro. 5. Casuística do dano existencial no direito brasileiro. Conclusão. Referências bibliográficas.

 

Introdução

 

O homem nada mais é do que aquilo que ele faz de si mesmo.

Jean-Paul Sartre

 

“A existência precede a essência”.[1] Assim a filosofia existencialista sartriana se refere ao ser pessoa. De acordo com esse pensamento, não existiria, então, uma natureza humana estática: “o homem é tão-somente, não apenas como ele se concebe, mas também como ele se quer”.[2]  É na liberdade de agir e naquilo que se decide fazer que a pessoa se realiza como ser humano.

 

A filosofia existencialista contribui para alcançar a problemática jurídica do dano existencial: em que medida o existir no mundo recebe tutela jurídica?

 

Inspirado na Constituição Italiana, Stefano Rodotà afirma que o direito deve transcender os aspectos biológicos da existência humana, embora não os exclua.[3] Para ele, “a materialidade do existir exige que se tomem em consideração fatores que guardam relação com a pessoa em sua conjunta relação com os outros e com o mundo”.[4] Por essa razão, a dignidade humana surge como “dignidade social”,[5] ou seja, “como resultado de uma construção que parte da pessoa, examina e integra relações pessoais e laços sociais, e impõe a consideração do contexto total em que se desenvolve a existência”.[6]

 

No âmbito da responsabilidade civil, o dano existencial se desenvolve na doutrina e na jurisprudência estrangeiras como “dano à vida de relação” ou ao “projeto de vida”. No Brasil, tem sido concebido pela justiça trabalhista como espécie autônoma de dano com fundamento na Lei n. 13.467/2017 que acresceu à Consolidação das Leis do Trabalho o art. 223-B, segundo o qual, “[c]ausa dano de natureza extrapatrimonial a ação ou omissão que ofenda a esfera moral ou existencial da pessoa física ou jurídica, as quais são as titulares exclusivas do direito à reparação”.

 

Ausente qualquer menção legal expressa a essa espécie de dano no direito civil, a doutrina e a jurisprudência brasileiras resistem em reconhecê-la como dano autônomo, qualificando-o majoritariamente como espécie de dano moral, quando ressarcível.

 

Diante disso, propõe-se a construção conceitual do dano existencial no direito brasileiro, adotando-se o direito civil constitucional como metodologia científica de análise, de onde se extraem as seguintes premissas: i) a unidade sistemática do ordenamento jurídico[7] e o centralismo da axiologia constitucional;[8] ii)  a despatrimonialização[9] do direito privado com a prevalência do ser sobre o ter.[10]

 

Os resultados serão alcançados por meio da pesquisa teórico-dogmática, com aportes pontuais da experiência estrangeira. O método de pesquisa envolve, ainda, a análise estrutural e funcional dos principais elementos da relação jurídica de responsabilidade civil, com destaque para o dano e para a norma jurídica de reparação.

 

Diante da problemática do dano existencial, identificam-se três possíveis posições: (i) a não reparabilidade; (ii) a reparabilidade como dano autônomo; (iii) a reparabilidade como espécie de dano moral. Pretende-se comprovar que o projeto de vida e a vida de relação que compõem o dano existencial são interesses juridicamente tutelados[11] enquanto manifestações da liberdade existencial, inerente à dignidade humana e desse modo, se violados por ato injusto de terceiro, configuram danos reparáveis. Pretende-se apresentar argumentos teórico-dogmáticos que sustentam a autonomia do dano existencial, mas, subsidiariamente, àqueles que refutam essa posição, almeja-se evidenciar que a identificação dos interesses violados é imprescindível para que a vítima seja devidamente reparada, nos termos do art. 944 do Código Civil, ainda que sob a rubrica do dano moral.



[1] Sartre, Jean-Paul. O existencialismo é um humanismo. Trad. Rita Correia Guedes. Paris: Les Éditions Nagel, 1970. p. 8.

[2] Sartre, Jean-Paul. O existencialismo é um humanismo. Trad. Rita Correia Guedes. Paris: Les Éditions Nagel, 1970. p. 10.

[3] “El artificio del derecho transfiere la existencia a uma dimensión distinta a la de su definición en términos de biologia o de naturaleza. Lo cual no quiere decir que la repare de sus condiciones naturales.” (Rodotà, Stefano. El derecho a tener derechos. Tradução de José Manuel Revuelta López. Madrid: Editorial Trotta, 2014, p. 215.)

[4] Rodotà, Stefano. El derecho a tener derechos. cit., p. 215.

[5] Constituição da República Italiana, art. 3º: Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei, sem discriminação de sexo, de raça, de língua, de religião, de opiniões políticas, de condições pessoais e sociais. (Constituição da República Italiana. Trad. Paula Queiroz. Senato dela Republica. Roma: Libreria Multimediale, 2018. Disponível em: <https://www.senato.it> Acesso em: 29 nov. 2020.)

[6] “En el contexto italiano, la hostilidad a todo reduccionismo queda explícita en las palabras del art. 3, donde la dignidad aparece de inmediato como ‘dignidad social’, esto es, no como una calidad innata de la persona, sino como resultado de una construcción que parte de la persona, examina e integra relaciones personales y lazos sociales e impone la consideración del contexto total en el que se desarolla la existencia. El derecho a la existencia impone sobrepasar el grado cero del existir, esto es liberar-se de un reduccionismo biológico que tiene como parámetro la garantia del mínimo vital. Cuando comparece en la dimensión constitucional, el derecho a la existencia nos habla de algo que va más allá de la desnuda vida y que se rellena con contenidos ulteriores.” (Rodotà, Stefano. El derecho a tener derechos. cit. p. 216.)

[7] “O parâmetro sistemático exige que o ordenamento seja interpretado na sua unidade; enquanto o parâmetro axiológico implica que os valores constitucionais, comunitários, internacionais avivem e tornem atuais normas individuais ou complexos de normas que devem ser sempre lidas e interpretadas, ainda que aparentemente claras.” (Perlingieri, Pietro. Direito civil na legalidade constitucional. Tradução de Maria Cristina de Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 596-597.)

[8] “A norma, clara ou não, deve ser conforme aos princípios e aos valores do ordenamento e deve resultar de um processo argumentativo não somente lógico, mas axiologicamente conforme às escolhas de fundo do ordenamento.” (Perlingieri, Pietro. Direito civil na legalidade constitucional. cit., p. 597.)

[9] “Com o termo, certamente não elegante, de ‘despatrimonialização’ individualiza-se uma tendência normativo-cultural: evidencia-se que no ordenamento fez-se uma opção, que lentamente vai se concretizando, entre personalismo (superação do individualismo) e patrimonialismo (superação da patrimonialidade fim a si mesma, do produtivismo antes, e do consumismo, depois, como valores). Com isso, não se projeta a expulsão ou a ‘redução’ quantitativa do conteúdo patrimonial do sistema jurídico e civilístico em especial: o momento econômico, como aspecto da realidade social organizada, não pode ser eliminado. A divergência, certamente não de natureza técnica, concerne à valoração qualitativa do momento econômico e a disponibilidade de encontrar, na exigência da tutela do homem, um aspecto idôneo, não para ‘humilhar’ a inspiração econômica, mas pelo menos, para lhe atribuir uma justificativa institucional de suporte ao livre desenvolvimento da pessoa.” (Perlingieri, Pietro. Direito civil na legalidade constitucional. cit., p. 121)

[10] “A ordem social pode ser analisada sob dois perfis: o ‘ter’, que pertence à estrutura econômica e produtiva, ao aspecto patrimonial e mercantil da organização social; o ‘ser’, que resguarda o aspecto existencial da pessoa com os seus direitos e deveres.” (Perlingieri, Pietro. Direito civil na legalidade constitucional. cit., 2008, p. 177.)

[11] Adota-se como conceito de dano a violação a interesse juridicamente protegido, em contraposição à teoria que o concebe como violação a direito subjetivo. Essa orientação é assim explicada por Maria Celina Bodin de Moraes: “É necessário, contudo, recordar as críticas à concepção de dano ressarcível como violação a um direito subjetivo, vinculado, pois, à noção de antijuridicidade. Tal visão foi superada pela teoria do interesse, que concebe o dano ressarcível como a lesão a interesse juridicamente protegido. Além disso, não é possível ater-se ao modelo de direito subjetivo para tutelar os interesses existenciais relativos à pessoa humana: qualquer situação jurídica subjetiva pode ser idônea a proteger os aspectos extrapatrimoniais da personalidade.” (Bodin de Moraes, Maria Celina. A constitucionalização do direito civil e seus efeitos sobre a responsabilidade civil. In Na medida da pessoa humana: estudos de direito civil constitucional. 1 reimp. Rio de Janeiro: Processo, 2016, p. 332.)

 

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