As funções dos tribunais superiores e o diálogo entre o STF e o STJ. Breve nota, a partir da discussão sobre os limites do Estado quanto às sanções tributárias, e um lamento

Julgamento interessantíssimo encontra-se em curso no Supremo Tribunal Federal. A questão de fundo é de direito constitucional tributário: No julgamento do recurso extraordinário 640452, cuja repercussão geral foi reconhecida no longínquo ano de 2011, se discute, à luz do artigo 150, IV, da Constituição, se multa por descumprimento de obrigação acessória decorrente de dever instrumental, aplicada em valor variável entre 5% a 40%, relacionado à operação que não gerou crédito tributário (“multa isolada”) possui, ou não, caráter confiscatório. O julgamento virtual do recurso (RE 640452) está agendado para os dias 23/6/2023 a 30/6/2023. O assunto é de interesse para quem estuda constitucional, processo civil e tributário, mas não apenas isso.

Aqui, escrevo algo mais técnico, que pode interessar a quem estuda o tema ou labuta com isso no dia a dia do foro. Depois, escreverei algo mais didático para quem não é da área jurídica.

Alguns pontos chamam a atenção:

(i) A parte recorrente desistiu do recurso extraordinário, mas o julgamento do recurso prosseguiu para a fixação da tese. A função nomofilática do tribunal desprende-se da dikelógica. A evolução foi lenta e gradual, até se chegar até aqui. Mas é coisa recente, possível recortar no tempo os últimos quase vinte anos.

A repercussão geral começa como requisito. Depois, conduz à fixação de teses, orientações ou padrões decisórios a serem observados e aplicados aos recursos sobrestados e aos subsequentes – e assim também, a seu modo, o procedimento dos recursos repetitivos, ainda na vigência do CPC/1973. O CPC de 2015, especialmente com a reforma da Lei 13.256/2016, consolida e aprofunda esse movimento.

A repercussão geral "engole" os repetitivos no STF, e isso deve acontecer no STJ quando tiver início a aplicação da relevância para o recurso especial.

(ii) O relator, Ministro Barroso, cita julgado do STJ para fundamentar a conclusão a que chegou em seu voto.

A meu ver, o princípio da consunção é o mais importante fundamento do voto do Ministro. O princípio, estudado de modo mais aprofundado no direito penal, aplica-se também a outros âmbitos sancionatórios, inclusive o administrativo e o tributário. Pode-se até encontrar fundamento para o princípio na Constituição, mas parece que seu devir está (ou se dá) nas regras infraconstitucionais.

Mas isso não é explicado no voto, e creio até que tal explicação é desnecessária. Há muito sabemos que as tarefas dos dois tribunais superiores, o STF e o STJ, se tocam e muitas vezes se confundem. O envio de recursos extraordinários que veiculam questão constitucional reflexa (ou indireta) para o STJ julgar como recurso especial é exemplo disso.

Pode-se entrever que esse movimento irá além. A aplicação do art. 1.033 do CPC/2015 pelo STJ vem demonstrando quão refinados podem ser a cooperação e o diálogo entre o STF e o STJ. Estes tribunais não competem entre si; antes, funcionam como órgãos de um mesmo organismo.

A implementação da relevância, torço eu, fortalecerá esse elo, pois, embora tenham objeto, conteúdo e forma diferentes, repercussão geral da questão federal constitucional e relevância da questão federal infraconstitucional só funcionarão bem se funcionarem juntas, particularmente, mas não exclusivamente, nos casos de questões constitucionais reflexas.  

(iii) A afirmação "a multa por descumprimento de uma obrigação principal deve ser mais gravosa do que a multa por descumprimento de uma obrigação acessória", constrangedoramente lógica, é manifestação do critério da proporcionalidade. Vale para outros âmbitos da moralidade, e não apenas o jurídico (para quem, como eu, entende que o direito também está inserido na moral). Certamente se assenta no direito natural, e tenho a impressão de que é daqueles valores que nascem cravados na mente humana, e mesmo uma criança poderia descrevê-lo. Não à toa, transpôs-se para o sistema jurídico, erigindo-se em verdadeiro princípio.

A lei tributária, não raro, deixa tudo isso de lado, obrigando o contribuinte a judicializar, sob pena de sofrer pena severa e desproporcional. Para usar a linguagem dos tributaristas, até mesmo confiscatória. E assim o contribuinte segue lamentando. A luta é difícil.