Renegociação de contratos no contexto de inflação

O tema da renegociação de contratos vem sendo fortemente debatido nos últimos anos em razão dos recentes eventos que ocasionaram o desequilíbrio econômico-financeiro nas relações contratuais, tais como a pandemia de Covid-19 e, agora mais recentemente, a galopante inflação. Muito se discute sobre a possibilidade de revisão e/ou renegociação contratual, com o ajuste da “balança” das prestações e contraprestações assumidas pelos contratantes.

Para que o tema seja corretamente compreendido, é importante que se fixe inicialmente uma importante premissa: a revisão contratual, no ordenamento jurídico brasileiro, é a exceção (e não a regra). 

A normativa legal que incide nas relações contratuais visa garantir a manutenção dos contratos e a vinculação dos contratantes ao que fora estipulado no início da relação negocial. Dentre os princípios que regem o Direito Contratual, está aquele denominado “pacta sunt servanda” que, em termos práticos, quer significar que o contrato faz lei entre as partes e, nestes termos, não pode ser modificado. 

Entretanto, diante de situações excepcionais, admite-se a realização de alterações contratuais através de ferramentas e institutos previstos, principalmente, no Código Civil e no Código de Defesa do Consumidor.


O artigo 317 do Código Civil, por exemplo, dispõe que quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação. 

Já os artigos 478 e 479 do mesmo Código, que regulamentaram a chamada “teoria da imprevisão”, preveem que se nos contratos de execução continuada ou diferida (protelada no tempo) a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, o contrato poderá ser extinto ou poderá ser realizada a revisão contratual.


O Código de Defesa do Consumidor, que rege as relações de consumo, permite a revisão contratual mais facilmente, dispondo que é direito básico do consumidor a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas.

Neste cenário, é possível dizer que a própria lei possibilita a revisão/alteração contratual – o que pode abrir espaço para eventuais renegociações de contratos (seja entre as próprias partes, seja por determinação do Poder Judiciário quando se fizer necessário o ajuizamento de demanda judicial para tal fim).

A inflação, nestes termos, poderia ser considerada uma causa suficiente para ensejar um desequilíbrio econômico-financeiro apto a autorizar a revisão contratual?

A resposta dada pelo Poder Judiciário a esta pergunta, via de regra, seria não. 

No julgamento do Recurso Especial n. 744.446/DF pelo Superior Tribunal de Justiça, julgado em 17.04.2008, decidiu-se que “não se mostra razoável o entendimento de que a inflação possa ser tomada, no Brasil, como álea extraordinária, de modo a possibilitar algum desequilíbrio na equação econômica do contrato”. Este entendimento representa a antiga e pacífica jurisprudência da Corte Superior acerca da matéria.

Contudo, mais recentemente, em casos que envolvem, principalmente, direito de consumidores e contratos de locação, a jurisprudência tem se posicionado no sentido de que o aumento exponencial da inflação pode ensejar a modificação dos termos contratados, em especial aqueles que versam sobre o índice de correção monetária aplicável sobre eventuais reajustes. 

O Tribunal de Justiça do Paraná, neste sentido, em decisão publicada aos 15.06.2022 (Agravo de Instrumento n. 00067486-49.2021.8.16.0000) decidiu que seria possível a substituição do índice de correção monetária eleito pelas partes em acordo judicial (proveniente de demanda que envolvia um contrato de compra e venda de imóvel por consumidores). A decisão restou assentada no fundamento de que: “Nos contratos civis e empresariais, os índices de correção monetária previstos, conforme antiga e pacífica jurisprudência do STJ, consistem em álea ordinária do negócio jurídico, até porque a inflação no Brasil, ao menos desde a edição do Plano Real, não mais pode ser considerada como fato extraordinário capaz de, por si só, alterar o equilíbrio econômico-financeiro do contrato. Não obstante, em se tratando de relação de consumo, a revisão judicial do contrato está sujeita a requisitos menos rigorosos, pois o art. 6º, V, do CDC exige unicamente a ocorrência de fato superveniente que torne a prestação excessivamente onerosa, sendo desnecessária a imprevisibilidade ou natureza extraordinária de tal fato”. 

Em celeuma parecida, que também dizia respeito à compra e venda de imóveis por consumidores, posicionou-se recentemente o Tribunal de Justiça de São Paulo na Apelação Cível n. 1002159-57.2021.8.26.0358 pela possibilidade de alteração contratual em razão da inflação, decidindo que: “o caso dos autos, o índice estabelecido foi o IGP-M, que, em 2021, acumulou alta de 23,14%, em razão de diversos fatores (pandemia, política externa e interna) refletindo índice muito superior ao da inflação real no mesmo ano, de modo que é mais adequada a utilização do IPCA como índice de reajuste, recompondo de forma mais racional o poder aquisitivo da prestação do contrato de aquisição do imóvel objeto dos autos”.

No bojo de contratos de locação, também vem se admitindo paulatinamente a alteração dos índices de correção monetária para fins de reajuste, frente ao aumento exponencial do IGP-M (citando-se como exemplo o seguinte julgado: TJSP, Agravo de Instrumento n. 2273734-34.2021.8.26.0000, Rel. Des. Antônio Rigolin, 31.ª Câmara de Direito Privado, julgado em 14.03.2022).

É admissível dizer, portanto, que a inflação no Brasil – que atualmente está entre as mais altas do mundo – pode ensejar a revisão contratual a depender do tipo de relação contratual, desde que preenchidos os requisitos legais necessários para tanto. 


Nada impede, de toda forma, que as próprias partes contratantes ajustem os termos contratuais por conta própria – o que é perfeitamente possível (e desejável).


 


Veiculado: https://analise.com/opiniao/em-tempos-de-inflacao-e-possivel-renegociar-contratos