A necessária permanência do sistema de cotas raciais nas universidades: interações entre a lei, a jurisprudência e a música

Ao se estudar, mesmo que seja sem muita profundidade, os dilemas da sociedade contemporânea, buscando compreendê-los e trabalhando na implementação de estratégias que garantam os direitos básicos para uma vida digna, notadamente, em algum momento, se deparará com o tema da educação. E com quanto mais profundidade se busca, mais se é convencido que, inevitavelmente, qualquer possível solução de problemas sociais partirá ou passará por este tema tão relevante, motivo pelo qual, entendeu o legislador constituinte brasileiro ser ele um direito social básico, assegurado pela Constituição Federal de 1988 em seu artigo 6º e 205.

Tal pensamento ultrapassa as fronteiras nacionais sendo que, na Agenda 2030, elaborada pela Organização das Nações Unidas (ONU), um dos Objetivos para o Desenvolvimento Sustentável (ODS) a ser alcançado até o ano de 2030 é “assegurar a educação inclusiva e equitativa e de qualidade, e promover oportunidades de aprendizagem ao longo da vida para todos” (Objetivo 4 – Educação de Qualidade) (AGENDA, 2015).

No Brasil, a política educacional vem ao encontro de tal Agenda, seja pelos regramentos constitucionais existentes já citados, seja por programas nacionais ligados ao tema, verificando-se que se percorrem caminhos paralelos e concomitantes com o plano internacional a fim de garantir e efetivar esse direito, os quais vão desde a obrigatoriedade de ensino básico gratuito até ao fomento à inserção e manutenção do estudante em instituições de ensino superior.

No que diz respeito ao ensino superior é possível entendê-lo como um dos atores principais nas estratégias de integração de povos e culturas (SANTOS, 2001; WALSH, 2010), na internacionalização do conhecimento e no desenvolvimento sustentável de um país (ALTBACH, 2004; JONES, 2016). No entanto, é latente que o simples fomento à inserção e manutenção de estudantes no ensino superior não é suficiente para que indivíduos que se encontram marcados pelos mais variados etiquetamentos que lhes são impostos, tenham acesso de forma plena a esse ensino.

Assim, a partir de um olhar específico sobre o ensino superior, busca-se com o presente artigo refletir sobre a importância da manutenção do sistema de cotas raciais nas universidades brasileiras como instrumento de mitigação dos estigmas que perseguem uma parcela da população, para a qual apenas com sua inserção nos meios dos quais é excluída, se poderá, aos poucos, trazer uma educação que contemple a construção do ser humano de forma integral. Para isso, busca-se inspiração na arte, partindo da música “Cota não é esmola” da cantora e compositora Bia Ferreira, valendo-se de todo o poderio permeável e reflexivo que a arte tem sobre o meio social, para se propor uma reflexão necessária e urgente sobre o assunto.

Dessa forma, trata-se inicialmente sobre o reconhecimento do direito à educação como um direito humano, fundamental e personalíssimo do indivíduo e como a música busca traduzir o enfrentamento e o tensionamento existente e as dificuldades vivenciadas pelo povo preto brasileiro, principalmente no que diz respeito ao acesso ao ensino superior. Após, lança-se um olhar sobre o tratamento que legislador e o judiciário têm dado a essa temática, por meio da análise da ADPF 186, julgada pelo Supremo Tribunal Federal em 2012 e da Lei n. 12.711/2012, instituidora do sistema de cotas raciais nas universidades, que está prevista para ser revista no ano de 2022, para assim se chegar à conclusão da importância da compressão histórica e social do sistema de cotas, da necessidade de seu constante aprimoramento e do cuidado necessário para que não se perca essa conquista adquirida com tanta luta e há tão pouco tempo.

 

2 A MÚSICA COMO INSTRUMENTO DE DENÚNCIA DAS INJUSTIÇAS E DEFESA DO DIREITO À EDUCAÇÃO

Desde a primeira Constituição brasileira, datada de 1824, o direito à educação é garantido ao cidadão brasileiro (artigo 179, inciso XXXII, da CF/1824[1]). A partir de então, o seu tratamento sempre se deu como uma das primeiras responsabilidades do Estado, seja pelas garantias previstas nas Constituições Federais posteriores, seja pelas diversas leis federais atinentes à matéria, como a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei n. 9.394/1996)[2] e o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069/1990).

A educação é ainda considerada como um direito humano e personalíssimo, posto que “os direitos de personalidade se abstraem da própria dignidade reconhecida à pessoa humana para tutelar os valores mais significativos do indivíduo, seja diante de outras pessoas, seja em relação ao Poder Público” (FARIAS, 2011. p. 147).  Sob a ótica civil-constitucional, os direitos da personalidade passam a expressar o mínimo necessário e imprescindível à vida com dignidade:

O direito à educação, como um dos mais importantes direitos de personalidade, tem por objetivo proteger o ser humano que vive em sociedade, tutelar a pessoa e a sua individualidade visando, acima de tudo, a prestigiar sua dignidade humana perante os demais indivíduos de seu convívio social. (GIMENEZ, 2013. p. 392)

Em que pese seja considerado um direito fundamental, a educação de qualidade não é, ainda hoje, alcançada por todos, fato que traduz, nos dizeres de Quijano (1992), as bases da formulação teórico racionalista da modernidade/colonialidade eurocentrada, a qual se caracteriza como um paradigma universal de conhecimento e de relação entre a humanidade e o resto do mundo.

Diz-se isso porque o sistema-mundo moderno inaugurado pelo colonialismo, que institui o modelo eurocentrado de civilização e de cidadania, ao mesmo tempo em que reconhece a diversidade e introduz direitos universais, com discursos de igualdade, exacerba o individualismo e a razão liberal e capitalista, havendo uma pretensão para que a Europa Ocidental seja reconhecida como a racionalidade universal (WALLERSTEIN, 1974). Nessa construção se percebe, então, a lógica da exclusão de determinadas pessoas ao padrão estabelecido por grupos e indivíduos específicos, aprofundando o racismo e a intolerância nas sociedades (SEGATO, 2015).

É o que se verifica no Brasil, um país colonizado, que possui na discriminação racial, como descrito pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) “um dos mais perversos fenômenos sociais operantes na sociedade brasileira, responsável por parte significativa das desigualdades que lhe caracterizam, assim como por parte expressiva do processo de naturalização da pobreza e das distâncias sociais.” (IPEA, 2007, p. 216).

Não bastasse isso, o tempo demonstrou que, as diversas práticas e políticas sociais tomadas pelo Estado se mostraram incapazes de promover a devida efetividade dos direitos fundamentais para todos, sobremaneira no que diz respeito ao acesso ao ensino superior, o que decorre também do segregacionismo velado presente de forma difusa e implícita seja a partir das instituições, nas quais o poder é determinado por indivíduos da cor branca – racismo institucional – ou da própria estrutura social brasileira, na qual o comportamento do indivíduo e os processos institucionais demonstram que o racismo é regra e não exceção – racismo estrutural –, “uma vez que o racismo é parte de um processo social que ocorre “pelas costas dos indivíduos e lhes parece legado pela tradição [...] a raça se manifesta em atos concretos ocorridos no interior de uma estrutura social marcada por conflitos e antagonismos” (ALMEIDA, 2019, p. 33-34).

Desta forma, a partir das lentes da teoria decolonial, tendo por base a existência desse racismo estrutural e dessa lógica categorial, dicotômica e hierárquica central do pensamento capitalista colonial moderno, reflete-se sobre às dificuldades vividas pela população preta brasileira. Para refletir sobre essa chaga da sociedade, esclarece-se que, respeitando o lugar de fala desses indivíduos, não se quer com o presente artigo traduzir necessariamente experiências de determinados sujeitos, mas sim refletir que esses sujeitos pertencentes a determinados grupos partilham de experiências e, ao se abordar essas experiências, em verdade se está falando no lócus social que esses grupos ocupam e de como essa posição restringe oportunidades, consoante ressalta Collins (2019).

Na mesma direção elucida Ribeiro, ao sustentar que a utilização da expressão “lugar de fala” “absolutamente nada tem a ver com uma visão essencialista de que somente o preto pode falar sobre racismo, por exemplo” (RIBEIRO, 2017, p. 64). Assim, partindo desse pressuposto é que se analisa a canção Cota não é esmola, da cantora e compositora Bia Ferreira, escrita no ano de 2011, que se tornou disponível nos meios digitais apenas no ano de 2018 (CAETANO; HERMANSON, 2021).

Não obstante o lapso de tempo entre a criação e a sua disponibilização, bem como a disseminação nas plataformas de streaming, importa dizer que a música consiste, ainda hoje, em uma clara crítica social, ao trazer em sua letra uma narrativa da realidade vivenciada e experienciada por grande parte da população preta brasileira.

Se autointitulando como uma artivista, Bia Ferreira traduz a sua arte em uma forma de educar, de conscientizar e de se posicionar frente às diversas discriminações vividas pelas minorias brasileiras (CAETANO; HERMANSON, 2021). E é isso que se percebe a partir da letra da música, a qual desde o seu primeiro verso – Existe muita coisa que não te disseram na escola – reflete um tensionamento em relação aos discursos, muitas vezes equivocados existentes no país, no sentido de que a discriminação se mostra tão somente uma questão social e não racial.

A afirmação trazida logo no início da canção – Cota não é esmola –, que se repete diversas vezes na segunda parte da música, manifesta uma oposição, um grito, uma verdadeira expressão de resistência contra todos que sustentam ser desnecessárias as políticas afirmativas no país.

Em que pese a palavra “cota” transmita inicialmente uma sensação de que a cantora está se remetendo à disponibilização de vagas específicas para pretos em universidades, no decorrer da música se percebe a discussão como sendo muito mais ampla, pois os versos remetem tanto ao espaço público quanto ao privado, no qual o povo preto é excluído.

O termo “não”, que se sobressai em toda a narrativa[3] atesta isso, trazendo consciência da (in)existência de pretos na televisão, nas universidades, nas profissões elitizadas ou entre os colegas de escola, relembrando o que pontua Davis (2016), no sentido de que a história deste povo há de ser contada a partir da sua ausência.

Essa ausência, no entanto, não é verificada nos discursos de ódio que são disseminados pela sociedade, nos seus mais variados nichos e de formas, muitas vezes, mascaradas. Como diz a letra, a opressão, humilhação, preconceito são sentimentos rotineiros e conhecidos que estão presentes desde os primeiros anos da vida de uma menina preta, pobre, que nasce na favela, que se encontra na interseccionalidade, que sofre desigualdades, que é vulnerável e que está inevitavelmente transpassada pelo racismo, pelo patriarcalismo, pela opressão de classe e por tantos outros sistemas discriminatórios, nos termos do que exemplifica Crenshaw (2012).

É importante ressaltar ainda que a música faz alusão às dificuldades vividas por uma menina/mulher preta. Sob tal aspecto, Davis (2016, p. 24) explica que, a desigualdade de uma mulher preta, em relação à sociedade, não é o mesmo da mulher branca, pois enquanto crescia a “ideologia da feminilidade do século XIX, que enfatizava o papel das mulheres como mães protetoras, parceiras e donas de casa amáveis para os seus maridos, as mulheres negras eram praticamente anomalias”. No mesmo sentido, Hooks (2015) debate que a mulher preta, além de ser inferiorizada pelo seu gênero, a sua condição é menor pela sua cor, sendo obrigada a um fardo triplo de opressão: a machista, a racista e a classista.

Somado a isso, a conotação negativa que a personagem da música sente ao não poder entrar no ônibus ou assistir aula, aparenta fazer remissão também a inexistência – em geral – de transporte público e gratuito para estudantes pobres e marginalizados, bem como as dificuldades destes no acesso à educação, situação que, de acordo com a música, é muitas vezes negligenciada até mesmo por educadores: “(...) Não tem busão, já tá cansada, mas se apressa; Chega na escola, outro portão se fecha; Você demorou, não vai entrar na aula de história; Espera, senta aí, já já dá uma hora; Espera mais um pouco e entra na segunda aula; E vê se não atrasa de novo, a diretora fala” (FERREIRA, 2011).

Os “nãos” que essa criança etiquetada recebe durante toda a vida remetem, portanto, a diferentes circunstâncias, pois ao mesmo tempo em que se mostram relacionadas à impossibilidade de se inserir na sociedade como uma pessoa detentora de direitos ou de ter determinados bens materiais, apresentam-se em sua vida situações de humilhação, de desprezo ou de sentimentos negativos suportados, cenários que já se mostravam agravantes pontuados por Roger Bastide e Florestan Fernandes mesmo em meados de 1959:

[...] o Brasil, nas suas constituições, leis, imprensa, proclama altamente a sua repulsão a todo e qualquer ataque à dignidade do homem negro. É mais difícil descobrir o que pode estar oculto sob a indiferença, as omissões ou as faltas. Será preciso recorrer, muitas vezes, não à análise de comportamentos, mas à da ausência de comportamentos (BASTIDE; FERNANDES, 1959, p. 164-165). 

São esses elementos que constroem a narrativa e que fundamentam a necessidade e a importância da existência das cotas raciais, nas universidades. Tal construção é confirmada quando, na contramão das duras experiências vividas por essa criança, a cantora ecoa através da segunda parte da música o canto daqueles que lutam pela transformação: “(...) São nações escravizadas; E culturas assassinadas; A voz que ecoa no tambor; chega junto, e venha cá; você também pode lutar; E aprender a respeitar; Porque o povo preto veio para revolucionar” (FERREIRA, 2011).

Ao apresentar elementos históricos sobre o período da escravidão, da força dos povos africanos, o que se sente pela mudança do ritmo e intensidade é um verdadeiro hino de guerra. No entanto, esses versos podem ser cantados não somente pelos que sofrem as mais diversas formas de discriminação, mas por todos os povos, porque a revolução, aqui e agora, é feita de mãos dadas e deve se dar de forma conjunta e plural, conforme descreve a cantora.

Quanto a este aspecto Araújo (2016) confirma que esse caminho é possível, desde que o pluralismo jurídico seja reformulado e retomado enquanto ecologia jurídica ou ecologia de direitos e de justiças. Na mesma direção já salientava Haraway (1995, p. 23) ao afirmar que uma educação inclusiva e equitativa deve partir de uma análise científica do objeto de estudo a partir da “visão de baixo”, das periferias e dos abismos, porque “em princípio, são as que tem menor probabilidade de permitir a negação do núcleo crítico e interpretativo de todo conhecimento”, o que somente corrobora à posição adotada por Bia Ferreira de que cota, não é esmola.

A partir dessa música, o que se verifica, portanto, é que a compositora a utiliza como uma ferramenta para se posicionar de forma política e ideológica ante as questões relacionadas ao povo preto, que apesar das dificuldades vivenciadas diuturnamente, possui voz e força. Além disso, percebe-se uma posição favorável à existência de ações afirmativas, principalmente no que diz respeito às cotas, uma vez que se constroem argumentos concretos para fazer com que o ouvinte seja convencido de que essa política se faz necessária no país.

Essa força empática que a arte possui é destacada por Edgar Morin (2011. p. 113), intitulando-a como um convite ao que chama de “ética da compreensão”:

É o que ocorre quando vemos um filme, uma peça de teatro, lemos um romance. Quando estamos no cinema, a situação semi-hipnótica que nos aliena relativamente ao nos projetar psiquicamente nos personagens do filme é simultaneamente uma situação que nos desperta para a compreensão do outro. Somos capazes de compreender e de amar o vagabundo Carlito, que desprezamos ao encontrar na rua. Compreendemos que o chefão do filme de Coppola não é somente um chefe mafioso, mas um pai, movido por sentimentos afetivos em relação aos seus. Sentimos compaixão pelos presidiários, embora, longe das telas, só vejamos neles criminosos punidos justamente.

 

A música se traduz, assim, em um instrumento de educação, de conscientização, de manifesto e de resgate ético, porque através dela é possível demonstrar, com uma narrativa artística, mas eminentemente realística, as dimensões dos problemas histórico-sociais que existem no país, que por mais de três séculos se mostrou escravocrata, conforme descreve Gomes (2021).

Diante disso, considerando a música de Bia Ferreira como uma denúncia aos diversos problemas que as pessoas pretas enfrentam relacionados ao acesso à educação superior no país e que o direito, como um fenômeno social, reflete e busca solução aos complexos dilemas da sociedade, reflete-se a partir do próximo capítulo, como a ADPF 186, julgada pelo Supremo Tribunal Federal em 26.04.2012 e a Lei 12.177/2012 buscam efetivar os direitos denunciados por Ferreira (2018), a fim de que se tenha uma igualdade de maneira material e não simplesmente formal, em relação ao direito à educação de qualidade e para todos.

 

3 REFLEXÕES A PARTIR DA JURISPRUDÊNCIA E DA LEI

O debate acerca da implementação de políticas públicas que conduzam à concretização daquilo que é prescrito no texto constitucional como fundamental, percorre as mais diversas esferas teórico-científicas, chegando inevitavelmente também ao Poder Judiciário. É o que acontece no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n. 186/DF, ajuizada perante o Supremo Tribunal Federal.

A arguição, julgada aos 26.04.2012, trouxe à reflexão da Corte Suprema um caso que se tornou emblemático, ao versar sobre a constitucionalidade do sistema de reserva de vagas com base em critério étnico-racial (20% de cotas étnico-raciais) no processo de seleção dos estudantes, adotado pela Universidade de Brasília (UNB) a partir do ano de 2004.

A ação de controle concentrado de constitucionalidade foi ajuizada em 20.07.2009 pelo Partido Democratas (DEM), sob o fundamento de que ao utilizar tal critério a Universidade ofendeu o artigo 1º, caput, inciso II, artigo 3º, inciso IV, artigo 4º, inciso VIII, artigo 5º, incisos I, II, XXXIII, XLI, LIV, artigo 37, caput, artigo 205, artigo 206, caput e inciso I, artigo 207, caput, e artigo 208, V, todos da Constituição Federal.

Para tanto, o Partido, embasado por pareceres de profissionais de diversas áreas, arguiu que ações afirmativas para pretos no país não se mostram necessárias, uma vez que ninguém é excluído no país pela sua cor. Além disso, indicou-se inexistir o conceito de raça, que as desigualdades entre brancos e pretos não tem origem na cor e que entender como constitucional cota para pretos em universidades ofende o princípio da igualdade, gerando discriminação reversa aos brancos pobres, favorecendo a classe médica preta (Julgamento da ADPF n. 186, 2012, p. 4-5).

Dando parecer, a Procuradoria Geral da República se manifestou pela improcedência da ação ao asseverar que a Constituição Federal de 1988 é um modelo de constitucionalismo social que não se basta em si mesmo, pois parte-se da premissa de que a igualdade, assim como os demais direitos descritos na carta, é um objetivo a ser perseguido por meio de ações ou políticas públicas, demandando inciativas concretas, sendo que a ação afirmativa para pretos além de ser uma justiça compensatória e distributiva, promove o “pluralismo nas instituições de ensino superior e a superação de estereótipos negativos sobre o afrodescendente, com o conseguinte fortalecimento da sua autoestima e combate ao preconceito” (Julgamento da ADPF n. 186, 2012, p 18).

Na mesma esteira foi o posicionamento da Advocacia Geral da União ao sustentar que ao contrário do indicado pelo autor da demanda, a discriminação racial existe e é evidente no país não podendo ser ignorada, sendo a medida adotada pela UNB correta e necessária. Pontuou-se ainda que a reserva de vagas é só uma das medidas que devem ser tomadas para o enfrentamento desse problema, uma vez que “a mera existência de outros meios mais brandos de possível adoção não é argumento apto a qualificar o sistema de cotas como desnecessário ou desmedido” (Julgamento da ADPF n. 186, 2012, p 19).

Após o ingresso da Defensoria Pública da União (DPU), do Instituto de Advocacia Racial e Ambiental (IARA), da Sociedade Afro-brasileira de Desenvolvimento Sócio Cultural (AFROBRAS), do Instituto Casa da Cultura Afro-brasileira (ICCAB), do Instituto de Defensores dos Direitos Humanos (IDDH); do Movimento Pardo-Mestiço Brasileiro (MPMB), da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), da Fundação Cultural Palmares, do Movimento Negro Unificado (MNU), da Educação e Cidadania de Afrodescendentes e Carentes (EDUCAFRO), do Direitos Humanos e Conselho Federal (CONECTAS) e da Ordem dos Advogados do Brasil (CFOAB) como amici curiae foi realizada Audiência Pública de três dias, momento no qual se procedeu um amplo debate sobre as políticas de ação afirmativa para o acesso ao ensino superior público.

Com a finalização da Audiência Pública a UNB e demais arguidos aportaram os fundamentos pelos quais adotaram o sistema de cotas raciais na universidade, apresentando inclusive dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) recolhidos no ano de 2000, de que somente 19,55% dos universitários eram pretos (pretos e pardos), enquanto a população negra correspondia a 44,66% do total da população brasileira, fato que corroborava a necessidade da implantação do sistema.

Na oportunidade foram apresentados também números em relação ao uso da ação afirmativa na Universidade, os quais se concluem que os formados pelas cotas estão em um percentual semelhante aos que entraram no sistema universal. Da mesma forma se verifica em relação ao rendimento dos alunos:

[...] desde o 2º Vestibular de 2004 já ingressaram na UnB 3.980 alunos cotistas, sendo o percentual de já formados muito semelhante aos alunos da graduação que ingressaram pelo sistema universal (7,1% dos cotistas frente a 7,9% dos que ingressaram pelo sistema universal). Da mesma forma, o rendimento dos alunos cotistas é semelhante aos dos alunos que ingressaram pelo sistema universal (Índice de Rendimento dos cotistas é de 3,6%, enquanto daqueles que ingressaram pelo sistema universal é de 3,7%, em escala que varia de 0 a 5) (Julgamento da ADPF n. 186, 2012, p 44).

Passados quase três anos do ajuizamento da demanda, após os debates realizados, em um julgamento realizado em dois dias e, por unanimidade de votos, nos termos do relator, foi julgada totalmente improcedente a arguição.

A relatoria do caso foi feita pelo Ministro Ricardo Lewandowski, o qual elaborou voto em 47 páginas, das quais ressalta-se a forma contextualizada em que demonstrou que o racismo, assim como denunciado pela cantora Ferreira (2011) e ao contrário do sustentado pelo DEM, existe e interfere na sociedade brasileira, ao ponto de ser estritamente necessária a adoção de políticas públicas que visem esses grupos.

Em seu voto o Ministro observou que o art. 5º da Constituição Federal foi elaborado pelos constituintes não só para que a igualdade formal fosse assegurada, mas para que se buscasse uma igualdade material entre todos. Contrapondo-se aos argumentos do Partido quanto à teoria da justiça distributiva ou compensatória apontou ainda que:

No que interessa ao presente debate, a aplicação do princípio da igualdade, sob a ótica justiça distributiva, considera a posição relativa dos grupos sociais entre si. Mas, convém registrar, ao levar em conta a inelutável realidade da estratificação social, não se restringe a focar a categoria dos brancos, negros e pardos. Ela consiste em uma técnica de distribuição de justiça, que, em última análise, objetiva promover a inclusão social de grupos excluídos ou marginalizados, especialmente daqueles que, historicamente, foram compelidos a viver na periferia da sociedade (Julgamento da ADPF n. 186, 2012, p 53).

Ao abordar sobre os critérios para ingresso no ensino superior, Ricardo Lewandowski asseverou que as políticas de cotas raciais no âmbito da universidade não devem ser analisadas somente partindo dos preceitos constitucionais de forma isolada, mas “à luz do arcabouço principiológico sobre o qual se assenta o próprio Estado brasileiro” (Julgamento da ADPF n. 186, 2012, p 59), o que conduz à conclusão que metodologias diferenciadas de ingresso como a de critérios étnico-raciais ou socioeconômicos são possíveis, pois asseguram que a comunidade acadêmica e a própria sociedade sejam beneficiadas pelo pluralismo de ideias, que também é um dos fundamentos do Estado Brasileiro, de acordo com o que versa o artigo 1º, inciso V, da CF/88. Nesse sentido, afirma:

As ações afirmativas, portanto, encerram também um relevante papel simbólico. Uma criança negra que vê um negro ocupar um lugar de evidência na sociedade projeta-se naquela liderança e alarga o âmbito de possibilidades de seus planos de vida. Há, assim, importante componente psicológico multiplicador da inclusão social nessas políticas. (Julgamento da ADPF n. 186, 2012, p 74).

Ainda, complementando seu pensamento o Ministro abordou o papel integrador da universidade, a forma como os instrumentos utilizados para a efetivação da política de ação afirmativa é constitucional, da possibilidade de utilização da reserva de vagas ou sistema de cotas, bem como a necessidade de que seja uma ação afirmativa transitória, que tenha proporcionalidade entre os meios empregados e os fins a serem alcançados. Assim, finaliza o voto com o seguinte dispositivo:

[...] considerando, em especial, que as políticas de ação afirmativa adotadas pela Universidade de Brasília (i) têm como objetivo estabelecer um ambiente acadêmico plural e diversificado, superando distorções sociais historicamente consolidadas, (ii) revelam proporcionalidade e a razoabilidade no concernente aos meios empregados e aos fins perseguidos, (iii) são transitórias e prevêem a revisão periódica de seus resultados, e (iv) empregam métodos seletivos eficazes e compatíveis com o princípio da dignidade humana, julgo improcedente esta ADPF (Julgamento da ADPF n. 186, 2012, p 92).

Nesses termos, como dito acima, o Plenário do Supremo Tribunal Federal, por unanimidade, decidiu pela improcedência da ADPF, entendendo que, ao contrário do exposto pelo Partido DEM, a desigualdade racial existe no país e deve ser combatida de forma veemente, inclusive por meio de ações afirmativas, a fim de que os ditames da Constituição Federal sejam devidamente observados.

As decisões emanadas dos Tribunais dificilmente são compreendidas pelo cidadão comum; entretanto, a decisão da Corte Suprema vai ao encontro das denúncias apresentadas por Bia Ferreira na música analisada acima, na medida em que, ao se entender que a ação afirmativa relacionada as cotas raciais é conforme a constituição, reconheceu que o sistema de cotas em universidades não é uma esmola dada ao estudante que ingressa no ensino superior, mas sim um instrumento de diminuição de desigualdades, de ampliação da diversidade, de reparação e de uma superação ao sistema escravocrata que foi desenvolvido no país durante tanto tempo. A cultura cumpre assim o seu papel, em muito superando o mero entretenimento.

Tanto não se fala em esmola que, após quatro meses do julgamento da arguição, promulgou-se a Lei n. 12.177/2012, conhecida como Lei de Cotas, que estabelece, dentre outras, a reserva de vagas para o ingresso nas Universidades Federais, a qual não deixou de ser uma importante vitória às lutas do movimento preto brasileiro, que muito tem encontrado resistência por parte de diversos setores da sociedade.

Tal lei, em verdade, vem chancelar o decidido pela Corte Superior e propagar o sistema iniciado pela UNB ainda em 2004, ao determinar em seu artigo 3º que:

Em cada instituição federal de ensino superior, as vagas de que trata o art. 1º desta Lei serão preenchidas, por curso e turno, por autodeclarados pretos, pardos e indígenas e por pessoas com deficiência, nos termos da legislação, em proporção ao total de vagas no mínimo igual à proporção respectiva de pretos, pardos, indígenas e pessoas com deficiência na população da unidade da Federação onde está instalada a instituição, segundo o último censo da Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE (BRASIL, 2012).

Em que pese a sua importância na diminuição da discriminação racial e a desigualdade no país, ante a necessidade de transitoriedade da ação afirmativa, está previsto em seu artigo 7º que, no prazo de dez anos, será promovida a revisão do programa de sistema de cotas, o que deverá acontecer no ano de 2022, quando completará dez anos de vigência.

Desde então, muitos são os posicionamentos que estão se formulando sobre a sua manutenção ou não. Em março de 2019, em Projeto de Lei 1531, o PSL-BA propôs que seja eliminado da legislação o critério racial da reserva de vagas, mantendo os benefícios apenas para pessoas em vulnerabilidade social e para pessoas com deficiência. Em outubro do mesmo ano, o PL-CE apresentou a PL 5303, que também propôs a retirada das cotas raciais, entre as ações afirmativas previstas na lei. Na contramão de tais projetos, em dezembro 2020 o PT-RS apresentou a PL 5384, buscando tornar permanente a política de cotas em universidades e mais recentemente, em julho de 2021 o Partido do PSB-MA apresentou a PL 1788, na qual se transfere para o ano de 2042 a revisão do programa. Já no Senado, o PT-RS apresentou em agosto de 2020 proposta PL 4656 que prevê uma revisão da lei permanente a cada dez anos.

Como se vê, mesmo passados dez anos do lançamento da música “Cota não é esmola” e do julgamento da ADPF 186, as cotas raciais nas universidades ainda não são objeto de amplo debate e compreensão na sociedade. Utilizando-se dos fundamentos apresentados pela Corte Suprema, entende-se que, o transcurso do tempo de dez anos da promulgação da Lei de Cotas não foi suficiente à diminuição da inferioridade em que foram posicionados no plano social, econômico e político o povo preto, mostrando-se de suma importância a permanência da lei.

É então necessário, mais do que dantes, seguir no enfrentamento da desigualdade racial existente no país, sem deixar de considerar, por óbvio, que a transitoriedade da ação afirmativa deve se dar na medida em que seja efetivamente verificada a correção das distorções históricas existentes no país e que os indivíduos sejam representados, tanto no espaço público quanto no privado, de acordo com o princípio constitucional da isonomia. Quer-se dizer com isso que, a transitoriedade do sistema não deve ser preestabelecida por um lapso de temporal estanque, devendo ser considerada sim, de tempos em tempos, a sua revisão, a fim de que se amolde a realidade da sociedade brasileira.

 

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Decorridos quase dez anos da Lei de Cotas, bem como da decisão que julgou a ADPF 186, ainda se percebe pouco conhecimento sobre o assunto das cotas raciais, principalmente no que tange à necessidade da existência de ações afirmativas relacionadas às cotas raciais nas universidades, o que somente confirma no dia a dia e é denunciado por meio da arte.

Ademais, a partir da análise dos fundamentos que ensejaram à improcedência da arguição n. 186, percebe-se o reconhecimento pelo Poder Judiciário de que o sistema de cotas raciais, além de ser conforme a Constituição Federal, não é e não deve ser considerado como uma esmola dada ao estudante que ingressa no ensino superior.

Em um país continental como o Brasil, de grande diversidade cultural, no qual a desigualdade e discriminação racial é o pano de fundo de muitos dos problemas sociais, políticos e econômicos existentes, a manutenção de ações afirmativas como a que a Lei n. 12.711/2012 propõe se mostra fundamental, pois contribuem para a democratização do ensino superior, promovendo a justiça social, a difusão dos valores sociais e alteração do padrão dominante moderno/colonial e cumprindo a vontade de legislador constituinte.

Além de compensar a discriminação culturalmente arraigada no povo brasileiro, há ainda no sistema de cotas raciais um relevante papel simbólico, relacionado ao fator psicológico e multiplicador da importância de se sentir incluído na sociedade, o que somente enaltece a ação afirmativa e faz dela um dos principais instrumentos para que, oxalá, se vença derradeiramente a discriminação racial existente no país.

 

REFERÊNCIAS

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[1] “Art. 179. A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Politicos dos Cidadãos Brazileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Imperio, pela maneira seguinte. [...] XXXII. A Instrucção primaria, e gratuita a todos os Cidadãos [...].” (BRASIL, 1824).

[2] As leis citadas no presente artigo foram extraídas do site: http://www.planalto.gov.br

[3] “O que rola com preto e pobre não aparece na TV”; “E já que tá cansada quer carona no busão Mas como é preta, pobre, o motorista grita: Não!”; “Você demorou! Não vai entrar na aula de história”; “Chega na sala, agora o sono vai batendo E ela não vai dormir; “E no natal ela chorou, porque não ganhou uma bola”; “porque preto e pobre não vai pra USP”; “Não deixe calar a nossa voz, não!”