A possibilidade da desconsideração da personalidade jurídica inversa no âmbito da holding familiar

No ramo do direito empresarial nos deparamos cada vez mais com empresas familiares desenvolvendo atividades de holdings.

A expressão, advém do verbo inglês to hold, que significa em tradução livre “controlar”, “manter” ou “guardar”. Importada dos Estados Unidos[1], a palavra é utilizada no Brasil para caracterizar empresas que desenvolvem atividades não operacionais e que, em linhas gerais, controlam e participam de outras sociedades, “segurando” ou “mantendo” a administração de bens, como quotista ou acionista.

Nas palavras do jurista Modesto Carvalhosa “são constituídas ou para o exercício do poder de controle ou para a participação relevante em outras companhias, visando nesse caso, constituir a coligação. Em geral, essas sociedades de participação acionária não praticam operações comerciais, mas apenas a administração de seu patrimônio[2].

Como visto, não se trata de tipo societário, mas do objeto social da atividade empresária, legalmente permitido através da Lei das Sociedades Anônimas (Lei n. 6.404/1976), que dispõem em seu artigo 2º, § 3º “a companhia pode ter por objeto a participação de outras sociedades”.

Caracterizando-se como objeto social a holding pode assumir qualquer tipo societário previsto na legislação nacional, desde uma sociedade simples até uma sociedade anônima, sendo a escolha vinculada à destinação para a qual foi constituída.

Ainda, a depender do modelo societário é possível escolher o tipo de holding, o qual, de acordo com a classificação de Gladston Mamede e Eduarda Cotta Mamede, poderá ser: a) pura: possui como objetivo ser titular de quotas/ações de outra sociedade; b) mista: além de deter participação em outras sociedades, também desenvolve determinada atividade produtiva; c) de controle: criada apenas para deter o controle acionário de outras sociedades; d) de participação: apenas detém participações, não realiza o controle de outras sociedades; e) de administração: centraliza a administração de outras sociedades; f) patrimonial: constituída para ser proprietária de determinado patrimônio; e g) imobiliária: constituída para ser proprietária de imóveis. [3]

A figura, apesar de restar prevista no ordenamento pátrio há algum tempo, ainda se mostra em iminente crescimento no país, e vem se mostrando, como dito acima, cada vez mais presente no direito empresarial, inclusive no âmbito de famílias que desenvolvem algum tipo de atividade produtiva, pois além de contribuírem para o planejamento patrimonial, podem trazer benefícios no âmbito fiscal e sucessório. Gladston Mamede e Eduarda Cotta Mamede assim lecionam:

Sua marca característica é o fato de se enquadrar no âmbito de determinada família, e, assim, servir ao planejamento desenvolvido por seus membros, considerando desafios como organização do patrimônio, administração de bens, organização fiscal, sucessão hereditária etc.[4]

Neste sentido, é comum encontrar atualmente holdings familiares que realizam a gestão ou a administração do patrimônio imobiliário do núcleo familiar (holding imobiliária ou patrimonial) ou, ainda, a participação em outras sociedades empresárias da mesma família (holding de participação).[5]

Ressalta-se que, nos casos em que a pessoa jurídica é criada para gestão ou administração do patrimônio, o que se verifica é uma alteração de propriedade em relação ao patrimônio integralizado, ou seja, a sociedade passa a ser proprietária dos bens e o sócio, geralmente os patriarcas e seus filhos, titulares das quotas ou ações. Cria-se, assim, uma situação jurídica peculiar, pois embora a pessoa natural não seja mais proprietária, poderá usufruir do patrimônio como se seu fosse, aproveitando economicamente e dele podendo dispor, considerando que é o próprio administrador dessa sociedade.[6]

A aplicação para estes fins se mostra totalmente lícita. No entanto, não raras às vezes, a constituição e desenvolvimento da holding se dá com o fim de desvincular o patrimônio idôneo do núcleo familiar, das dívidas e obrigações contraídas pelos seus sócios, geralmente os genitores, caracterizando uma verdadeira ocultação patrimonial e um abuso da personalidade jurídica.

Essa situação acarreta aos credores particulares da sociedade familiar e ao próprio mercado financeiro diversos prejuízos econômicos, o que enseja a utilização de mecanismos jurídicos que coíbam tal prática.

Sabe-se que, no ordenamento jurídico pátrio vigora o princípio da autonomia patrimonial[7], do qual se extrai que o patrimônio da pessoa jurídica não se confunde com o da pessoa física, motivo pelo qual os bens particulares dos sócios não poderão ser executados, em eventual dívida da sociedade, por exemplo.

No entanto, quando se está presente a chamada disfunção do uso da personalidade jurídica no âmbito das relações jurídicas reguladas pelo Direito Civil, o qual consagra a utilização da teoria maior[8], poder-se-á mitigar a autonomia patrimonial.

Essa mitigação poderá se dar através do instituto da desconsideração da personalidade jurídica, apresentando junto ao artigo 50 do Código Civil, com redação atual dada pela Lei n. 13.874/2019, que assim dispõe:

Art. 50.  Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso.

§ 1º Para os fins do disposto neste artigo, desvio de finalidade é a utilização da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza.

§ 2º Entende-se por confusão patrimonial a ausência de separação de fato entre os patrimônios, caracterizada por:

I - cumprimento repetitivo pela sociedade de obrigações do sócio ou do administrador ou vice-versa;

II - transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações, exceto os de valor proporcionalmente insignificante; e

III - outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial.

§ 3º O disposto no caput e nos §§ 1º e 2º deste artigo também se aplica à extensão das obrigações de sócios ou de administradores à pessoa jurídica.

§ 4º A mera existência de grupo econômico sem a presença dos requisitos de que trata o caput deste artigo não autoriza a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica.

§ 5º Não constitui desvio de finalidade a mera expansão ou a alteração da finalidade original da atividade econômica específica da pessoa jurídica.

Na exegese de tal artigo, tem-se a possibilidade, dentre outras, de utilização de três modalidades de desconsideração:

  1. a ortodoxa, prevista no caput do dispositivo, que busca transpor o véu da personalidade jurídica atingindo o patrimônio dos sócios[9];
  2. a inversa, descrita no § 3º, em que o objetivo é alcançar o patrimônio de pessoas jurídicas, no qual o sócio ou administrador cometeu determinado abuso[10].
  3. a indireta, apresentada no § 4º, a partir da qual se atinge determinada sociedade integrante de grupo econômico, quando os componentes deste coletivo se valem da personalidade jurídica para praticar abusos[11].

Frisa-se que, além das possibilidades apresentadas de forma expressa na lei[12], admite-se também, atualmente, por força da doutrina e da jurisprudência[13], a modalidade expansiva, em que se busca atingir a personalidade do sócio oculto que atua com abuso da personalidade jurídica. Ou seja, trata-se de ente – no caso seria o devedor – que normalmente não figura formalmente como sócio de empresa, mas que exerce efetivamente atos de administração nas empresas.

Assim, tomando por base as modalidades admitidas atualmente e o exemplo de abuso da personalidade citado acima, o credor que se ver lesado pelo ilícito praticado por sócio devedor, poderá se utilizar da modalidade de desconsideração inversa, a fim de que a holding familiar responda, de forma solidária e com todo o seu patrimônio, pelas dívidas contraídas pelo titular da obrigação.

Nesta linha, cita-se a título de exemplo, julgado oriundo do Tribunal do Estado de São Paulo, em que se reconheceu a confusão patrimonial entre os bens do sócio e da holding familiar, declarando a responsabilidade solidária da empresa pelas dívidas contraídas pelo sócio devedor:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. INCIDENTE DE DESCONSIDERAÇÃO INVERSA DA PERSONALIDADE JURÍDICA. DECISÃO INTERLOCUTÓRIA QUE DEFERIU O RESPECTIVO PEDIDO. INCONFORMISMO. PEDIDOS DE IMPENHORABILIDADE DE BENS E DE NULIDADE DO PROCESSO DE EXECUÇÃO. NÃO CONHECIMENTO, DADO QUE EXTRAPOLAM O DEDIDO EM PRIMEIRO GRAU. EXECUÇÃO MOVIDA PELA AGRAVADA CONTRA O AGRAVANTE PESSOA FÍSICA TENDO COMO FUNDAMENTO CONTRATO DE PROMESSA E DE CESSÃO E AQUISIÇÃO DE DIREITOS CREDITÓRIOS FUTUROS E OUTRAS AVENÇAS. PESSOA FÍSICA QUE É SÓCIO DE HOLDING FAMILIAR, CUJO OBJETO SOCIAL COMPREENDE A (I) ADMINISTRAÇÃO DE BENS PRÓPRIOS, BEM COMO A (II) PARTICIPAÇÃO EM OUTRAS SOCIEDADES, COMO SÓCIA, ACIONISTA OU QUOTISTA. EXECUTADO PESSOA FÍSICA QUE EFETUOU O PAGAMENTO DE GUIA DE CUSTAS DE RECURSO DE AGRAVO DE INSTRUMENTO INTERPOSTO PELA HOLDING FAMILIAR NOS AUTOS Nº 2145182-27.2016.8.26.0000. EXECUÇÃO DE COTAS CONDOMINIAIS MOVIDA CONTRA A HOLDING FAMILIAR, TENDO COMO OBJETO IMÓVEL CUJA PROPRIEDADE FOI-LHE TRANSFERIDA PELO SÓCIO E ORA AGRAVANTE EM 08/11/2010, A FIM DE INTEGRALIZAR AS QUOTAS DO CAPITAL SOCIAL. ATA DE ASSEMBLEIA GERAL EXTRAORDINÁRIA DE 10/11/2016 DAQUELE CONDOMÍNIO (EXEQUENTE DE DÍVIDAS CONDOMINIAIS REFERENTE AO IMÓVEL DE DOMÍNO DA HOLDING FAMILIAR) EM QUE FIGURA COMO SÍNDICO O SÓCIO E ORA AGRAVANTE PESSOA FÍSICA. FORTES INDÍCIOS DE CONFUSÃO PATRIMONIAL ENTRE OS BENS DO SÓCIO E ORA AGRAVANTE PESSOA FÍSICA E AQUELES PERTENCENTES À HOLDING FAMILIAR, O QUE CONFIGURA ABUSO DA PERSONALIDADE JURÍDICA E AUTORIZA A DESCONSIDERAÇÃO INVERSA DESTA PARA ATINGIR VALORES DA SOCIEDADE, NOS TERMOS DO ART. 50. CC C/C ART. 133, §2º, CPC. RECURSO PARCIALMENTE NÃO CONHECIDO E, NA PARTE RESTANTE, DESPROVIDO. (TJSP, AI n.  2081492-19.2019.8.26.0000, 22.ª Câmara de Direito Privado, Rel.: Alberto Gosson, J.: 11.06.2019)

Em que pese, portanto, a constituição de holding familiar seja uma alternativa positiva no que diz respeito ao planejamento patrimonial e sucessório do núcleo familiar, deve-se ter em mente que, a transferência do patrimônio realizado com o fim de ocultação ou blindagem patrimonial pode ser considerada um ilícito passível de coibição através da desconsideração da personalidade jurídica, instituto que vem sendo cada vez mais utilizado no âmbito judicial pelos credores, a fim de atingir o patrimônio de devedores que, de forma ilícita, ocultam o seu patrimônio.



[1] Indica-se, desde já, que o conceito de uma holding vai muito além da tradução livre apresentada neste trabalho. Autores americanos como Oscar Hardy e Walter E. Lagerquist a conceituam apenas com a sua finalidade controladora, caracterizando o que conhecemos a partir da realidade brasileira como honding pura. No entanto, na prática brasileira existem diversos tipos possíveis de holdings, suplantando os conceitos outrora importados, como indicado por Edna Pires Lodi e João Bosco Lodi. (Ver mais em: LODI, Edna Pires; LODI, João Bosco. Holding. 4. ed. rev. atual. São Paulo: Cengage, 2012, p. 20-21. Disponível em: <https://issuu.com/cengagebrasil/docs/holding_4ed>. Acesso em: 12 mar. 2022.)

[2] CARVALHOSA, Modesto. Comentários à Lei de Sociedades Anônimas. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 14.

[3]. MAMEDE, Gladston; MAMEDE, Eduarda Cotta. Blindagem Patrimonial e Planejamento Jurídico. 5. ed., São Paulo: Atlas, 2015. p. 15.

[4] MAMEDE, Gladston; MAMEDE, Eduarda Cotta. Holding familiar e suas vantagens. São Paulo: Atlas, 2017. p. 16.

[5] REZENDE, Elcio Nacur; OLIVEIRA, Marcelle Mariá Silva de. A fraude como elemento subjetivo essencial à aplicação da desconsideração inversa da personalidade jurídica nas “holdings” familiares. Scientia Iuris. Londrina, v. 23, n.2, p. 110-126, jul. 2019. DOI: 10.5433/2178-8189.2019v23n2p110.

[6] SILVA, Fernando Henrique Becker; ROWEDER, Nickolas Peters. Desconsideração inversa da personalidade jurídica e as administradoras de bens próprios. Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, v. 16, n. 32, p. 149-164, jul./dez. 2014, p. 160.

[7] COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. vol. 2. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 146,

[8] A teoria maior da desconsideração da personalidade jurídica, transcrita junto ao artigo 50 do Código Civil autoriza que o Poder judiciário mitigue o princípio da autonomia patrimonial, quando verificado o abuso da personalidade, seja por desvio de finalidade ou por confusão patrimonial. Já a teoria menor da desconsideração da personalidade jurídica, transcrita no artigo 28, do Código de Defesa do Consumidor e no artigo 4.º da Lei n. 9.605/1998 (Lei de Crime Ambientais), permite que o patrimônio dos sócios seja atingido quando há tão somente a prova de insolvência da pessoa jurídica, no pagamento de suas obrigações. (COELHO, Fábio Ulhôa. Teoria maior e teoria menor da desconsideração da personalidade jurídica. Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais. v. 65, jul.-set./2014. p. 21-30).

[9] Neste sentido: TJSP, AI n. 2037340-46.2020.8.26.0000; 11.ª C. de Direito Privado, Rel.: Renato Rangel Desinano, J.: 26.01.2021.

[10] Na mesma linha: TJPR, AI n. 0060306-79.2021.8.16.0000, 11.ª C.Cível, Rel.: Desembargador Fabio Haick Dalla Vecchia, J.: 31.01.2022.

[11] Da mesma forma: TJSP, AI n. 2263960-77.2021.8.26.0000, 38.ª C. de Direito Privado, Rel.: Spencer Almeida Ferreira, J.:07.03.2022.

[12] A possibilidade de desconsideração inversa também se encontra disposta junto ao artigo 133, § 2.º do Código de Processo Civil.

[13] Neste sentido: FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito Civil: teoria geral. 9. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015, p. 455; STF, MC em MS n. 32.494, rel. Min. Celso de Mello, j. 11.11.2013.