A livre iniciativa no mercado digital sob a ótica do Direito da Concorrência

Ao longo dos anos, o meio virtual tomou seu espaço na rotina humana, sobretudo em razão da rápida evolução tecnológica. A internet e aparelhos eletrônicos permitiram que as pessoas ficassem interconectadas a todo o momento, consumindo produtos ou serviços. Por óbvio, o mercado não ficaria para trás na migração do consumidor do meio físico para o meio virtual.

Foi paralelamente ao surgimento do ciberconsumo que o mercado digital tomou seu espaço na rotina das pessoas. Como todo ramo do comércio, existem negócios e empresas que estão há mais tempo no mercado e possuem maior poder dominante sobre determinado produto ou serviço. No mercado digital não seria diferente.

O princípio da livre iniciativa permite que determinada pessoa tenha a liberdade de constituir seu próprio negócio, independentemente da autorização do Estado. Tal princípio está disposto na Constituição Federal em seu art. 170, tendo relação direta com o § 4º do art. 173, reprimindo o abuso de poder econômico que mine a concorrência, o domínio de mercado e o aumento arbitrário dos lucros, com clara atuação do estado na economia.

Para se possibilitar que empresas com menor poder no mercado tivessem lugar nos negócios e oportunidade de expansão justa, surgiu o direito da concorrência. Sua primeira manifestação, ainda que sutil, no Decreto-lei n. 869/1938 e, posteriormente, com a Lei n. 4.137/1962.

Para que haja uma defesa efetiva da concorrência é necessário que o interesse de saúde econômica seja aplicado na prática. É interesse do estado democrático de direito que: (i) exista a possibilidade de concorrência, havendo de fato a possibilidade de empreender; bem como (ii) coexista a satisfação do consumidor em meio à uma possibilidade de compra não viciada.

No contexto da economia digital a realização desses objetivos é dificultada. Basta a existência de um mercado digital fortemente eivado de empresas influentes que, basicamente, são algumas das maiores do mundo, dentre elas, Google, Microsoft e Amazon que dominam a maioria dos seus espaços de atuação, respectivamente.

A economia digital tem novos parâmetros para o que se chama de “Mercado digital”. Algumas características que o diferenciam são o machine learning, seus custos marginais e comumente a prestação de um serviço, a título gratuito, ou doação. Empresas que possuem maior acesso a dados, considerado combustível do aprendizado das máquinas, conseguem direcionar melhor a publicidade e atingir maior número de consumidores que empresas que têm acesso mínimo a informações.

Um dos gatilhos para o início de uma análise internacional das ações das big techs e sua relação na defesa da concorrência, seja ela visando a análise consumerista ou concorrencial, foi o caso envolvendo a Google Shopping (Caso AT.39740 Google Search), por decisão da Comissão Europeia em 27.10.2017, confirmada pelo Tribunal de Justiça da União Europeia, última instância para o caso em 10.11.2021 (https://curia.europa.eu/jcms/upload/docs/application/pdf/2021-11/cp210197en.pdf. Acesso em: 16 ago. 2022). No caso, afirmou-se que o Google, empresa dominante no ramo de tecnologia em mecanismos de pesquisa, fez uso de sua posição para favorecer serviços de comparação a empresas integrantes do seu grupo em detrimento de empresas concorrentes.

O caso trata de uma análise complexa das situações causadas pelo PLA (Product Listing Ads), que basicamente são as listagens da pesquisa na Google que aparecem com a tag “patrocinado”, em frente às outras. O mesmo caso demandou também outras grandes empresas, tais como Microsoft e de maneira mais interessante ao caso, a Buscapé, demonstrando ter grandes efeitos e causando enorme controvérsia.

A Buscapé, dentre outras empresas, se viu lesada pela atividade da plataforma da Google, que tinha posição dominante sob todos os outros métodos de pesquisa digitais (e ainda mantém tal status). A neutralidade de uma ferramenta de pesquisa teria se alterado, passando a atuar de modo a proporcionar vantagem própria.

O propósito da Google como uma empresa de busca de produtos consistia na criação de um sistema que facilitasse a compra para o consumidor final, ou seja, criar uma ferramenta facilitadora que “pula passos” e torna possível a compra em apenas um ou poucos clicks.

Casos como esse realçam a necessidade da existência de legislação específica, como existe no Brasil, ou norma aplicável à concorrência digital que, suficientemente, se difere daquela do antitruste mais clássico. Nesse mesmo contexto, advindo de um dos maiores moldes do antitruste mundial, a Comissão da União Europeia está desenvolvendo a Digital Markets Act (DMA), tendo expectativa de finalização em outubro do ano de 2022 (https://competition-policy.ec.europa.eu/sectors/ict/dma_en. Acesso em: 16 ago. 2022).

Tal legislação busca a manutenção da livre concorrência de modo que as big techs não restrinjam a entrada de outros players ao mercado, promovendo maiores possibilidades de utilização por terceiros para publicação de seus próprios produtos e serviços dentro de suas lojas de aplicativos, principalmente dos sistemas da Google, Apple e Meta, bem como, efetivamente, a possibilidade de comunicação entre os aplicativos de mensagens instantâneas, como o WhatsApp e IMessage.

A inovação, clara característica do mercado digital, torna evidente que uma grande maioria das empresas estão despreparadas para os novos desafios que ainda virão. Justamente em razão disso, se mostra imprescindível a existência de novas normas regulatórias que acompanhem a evolução do tema e e assegurem a saúde econômica, a fim de regular e proteger o mercado de possíveis atos de concentração realizados pelas empresas que já o dominam.